A vergonha, de Annie Ernaux

Por José Woldenberg




“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho.”1 Assim começa o testemunho/romance/reflexão de Annie Ernaux. Foi no dia 15 de junho de 1952, quando ela ainda não tinha doze anos. A mãe, de mau humor, reclamava com o pai até que ele explodiu e a ameaçou com um machado. Annie correu, pediu ajuda, chorou. Depois, saímos os três para andar de bicicleta numa área rural que ficava nos arredores. […] Nunca mais se falou no assunto.
 
O episódio, porém, jamais foi esquecido por aquela garota. “Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia.” Os pais de Annie a “adoravam”; a ameaça nunca se repetiu, mas gerou nela um alerta permanente e, sobretudo, uma vergonha indecifrável.
 
Ernaux reconstrói essa época: o seu presente de Natal, os postais recebidos, o missal utilizado, folheia os jornais antigos que falam das guerras da Indochina e da Coreia, dos filmes da época e da publicidade de vários produtos, mas “nenhum dos bilhões de fatos ocorridos poderia ser posto ao lado dessa cena sem me encher de estupor. Somente ela era a cena real.”
 
Entre o mundo e alguém, a âncora e a referência incontornável é sempre uma só. Certamente existe um “teatro de acontecimentos”, mas a própria vida os coloca em segundo plano. E há algo mais: a impossibilidade de reconstruir o passado com certeza, mesmo que tenha sido moldado por um acontecimento traumático. Ernaux escreve que “a mulher que sou em 1995 é incapaz de se ver na menina de 1952, que só conhecia sua cidadezinha, sua família e sua escola, que só tinha à disposição um vocabulário reduzido. […] Não existe memória verdadeira sobre si mesma.”
 
Não é apenas a passagem do tempo ou a profunda transformação do habitat ou a estreiteza ou amplitude do mundo conhecido, mas a própria linguagem que permite ou limita a compreensão dos acontecimentos. Na época Annie acreditava que estava enlouquecendo, 43 anos depois, quando escreve, a vida aconteceu e o que ela temia não aconteceu.
 
A autora informa qual será seu método de trabalho e não poderia ser mais eloquente: “Naturalmente não procuro fazer uma narrativa, pois ela produziria uma realidade em vez de buscar uma. Também não vou me limitar a elencar e descrever as imagens da memória, mas gostaria de tratá-las como documentos que vão iluminar uns aos outros ao serem abordados de diferentes pontos de vista. Em suma, gostaria de ser etnóloga de mim mesma.”
 
E lança-se à tarefa. Ela reconstrói o seu território, um pequeno povoado (que não nomeia precisamente) entre Le Havre e Rouen, na região normanda, com sete mil habitantes. Seu mundo resume-se à escola, à igreja, às lojas e a tudo o que lhe dá raízes e constrói um sentimento de pertencimento: um “nós” e um “eles”. Ernaux oferece um passeio pelos seus bairros, pelo centro, pelo comércio dos seus pais, numa palavra, pela “sua terra” e se detém nos modos de ser que moldam o comportamento dos habitantes da sua redondeza. “Aos doze anos eu vivia nos códigos e nas regras desse mundo, sem suspeitar da existência de outros.”
 
É o ambiente do pequeno povoado, fechado mas esperançoso no progresso, com os seus rígidos códigos de educação das crianças e as suas fofocas recorrentes (“Todo mundo vivia vigiando todo mundo.”), os seus julgamentos lapidares sobre as qualidades e defeitos das pessoas, que induziam fortemente “Ser como todo mundo.” Vive-se dentro de algumas regras de conduta socialmente consagradas que produzem sentimentos de prisão e sufocamento e que dão lugar ao medo de “o que vão pensar da gente?” É este ambiente que alimenta fortemente a vergonha pelo que aconteceu entre os pais.
 
Annie Ernaux estuda em uma escola católica particular. “De lá, era proibido olhar de qualquer janela para a rua.” Apenas os padres e um jardineiro eram as presenças masculinas. “As orações marcam o início e o término de todas as atividades escolares.” O pressuposto que dá sentido a esta educação é que nela prevalecem a ideia de pertencer “ao mundo da verdade e da perfeição, da luz”. Os antípodas do laicismo e, portanto, os do outro mundo, são confusos, maus, sombrios. As regras da escola particular estabelecem de forma clara e contundente o que é bem-visto e o que é desaprovado. “É impensável ler fotonovelas e frequentar o baile público”, apesar de que “nunca se experimenta o sentimento de uma ordem coercitiva”. A menina assimila o mundo tal como este lhe é apresentado e imposto. Claro que não se fala em sexo e as hierarquias que a idade exige são rígidas. “E: na escola você precisa ter uma boa imagem para os outros.” É o segundo círculo, que envolve a vergonha.  
 
Annie Ernaux está imersa nesses ambientes e suas fórmulas de compreensão são o que neles pulsam. Por isso, aquele incidente indelével que ninguém mais sabia ou deveria saber, a deixava confusa. “Ali tínhamos deixado de pertencer à categoria das pessoas corretas” e tinha se tornado “uma pessoa que não merecia a escola particular, sua excelência e perfeição. Entrei no território da vergonha.”
 
Um terceiro círculo se fecha sobre ela. Annie e seu pai fazem uma viagem de férias como parte de um grupo. Eles não se integram. São marginalizados, destratados. Ela se ressente do déficit de conhecimento cultural de seu pai. Sente pena do seu comportamento. O sentimento de vergonha se aviva, a impressão de pertencer a um mundo diferente dos outros se intensifica. Esses círculos opressivos despertam a ansiedade de viver outra vida. A vergonha tudo governa: vergonha de ser quem é.


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A vergonha
Annie Ernaux
Marília Garcia (Trad.)
Fósforo, 2022
88 p.

1 Esta e as demais citações de A vergonha neste texto são da tradução de Marília Garcia (Fósforo, 2022). 


* Este texto é a tradução livre de “La vergüenza de Annie Ernaux”, publicado aqui, em La Razón.

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