A substância enfrenta ou repete a visão masculina?

Por Alonso Díaz de la Vega



 
Em seu ensaio fundacional de 1973, “Women’s Cinema As Counter-Cinema”, a crítica feminista Claire Johnston denunciou a mitologia masculina que ainda subjuga as mulheres na tela. Graças ao fato de os homens as conceberem como estereótipos, os imaginários de diretores, roteiristas, produtores, até mesmo diretores de fotografia e editores, são transferidos para a tela na forma de ingênuas que seduzem os homens com sorrisos, ou feras sexuais que sufocam as suas vítimas como súcubos. As imagens, aliás, não param por aí, na abstração, pois reforçam os preconceitos dos espectadores. Nos últimos anos, as indústrias mais poderosas do mundo tentaram, sem entusiasmo, mudar estas representações, mas muitas vezes a solução não são mulheres complexas como as mulheres comuns, mas sim fantasias utópicas que, ao reduzirem a feminilidade ao estritamente heroico, são também opressivas e fomentam ideias como a de que as mulheres governantes consertariam o mundo. Margaret Thatcher diria que este é realmente o caso; também os atuais candidatos presidenciais nos Estados Unidos, que se recusam a condenar criminosos de guerra como Benjamin Netanyahu (Kamala Harris) e Vladimir Putin (Jill Stein).
 
Johnston tinha tão claro isso sobre este último que em seu texto acaba atacando o ícone feminista Agnès Varda por seu longa-metragem Le bonheur (1965), uma alegre representação de uma fantasia masculina sobre um homem que tem tudo com uma mulher, procura outra, e a original fica felizmente substituída após seu aparente suicídio. “Não há dúvida”, diz Johnston, “de que o trabalho de Varda é reacionário: na sua rejeição à cultura e ao colocar a mulher fora da História, os seus filmes marcam um retrocesso no cinema feminino”. Ela não é a única que pensa assim sobre Le bonheur — um filme importante, apesar de tudo —, e com razão. Embora Varda tenha feito filmes abertamente feministas como L'une chante, l'autre pas (1977), ela também voltou aos seus velhos hábitos com uma expressão romântica da pedofilia: Kung-fu Master! (1988), onde Jane Birkin se apaixona por um menino.
 
O objetivo de tudo o que foi dito acima é sugerir que, de acordo com a própria teoria feminista do cinema, não é impossível para uma diretora ser possuída pela mitologia masculina: Liliana Cavani e Catherine Breillat, entre outras, também foram acusadas disso. Cada pessoa viva hoje cresceu num sistema patriarcal, e é inevitável que essa doença crônica ainda permaneça nas nossas artérias e corações. Mas há casos e casos.
 
Desde seu primeiro longa-metragem, Revenge (2017), a cineasta francesa Coralie Fargeat cercou-se de uma retórica de positividade feminista que protege os filmes da crítica, exceto em raros mas corajosos casos. Em sua estreia, uma garota passa de uma figura feminina complacente que ri nervosamente quando assediada para se tornar Mad Max por meio de um estupro. Haverá quem celebre esse arco — e houve —, mas não é perturbador que um evento traumático de agressão masculina seja o que transforma a protagonista em uma figura que não é apenas forte, mas também punitiva? Isso por um lado, porque, por outro, a câmera de Fargeat recorre à atriz Matilda Lutz como Michael Bay a Megan Fox: ela gira até ficarmos tontos; olha-a de cima a baixo para nos lembrar incessantemente que reúne não apenas características heroicas, mas também intenso apelo sexual. Leni Riefenstahl, a fundadora do cinema fascista, também observou os corpos desta forma no seu documentário Olympia (1938).
 
A substância (2024), o mais recente filme de Fargeat, deu origem a uma campanha publicitária focada no tema da beleza e do envelhecimento. As estrelas, Demi Moore e Margaret Qualley, insistem durante as entrevistas na poderosa mensagem feminista de A substância; no entanto, as imagens contradizem claramente a intenção de forma evidente. Ao vê-lo, me perguntei se não era, no fundo, uma paródia do cinema utópico feminista, mas talvez seja algo mais sinistro: não uma burla, mas uma expressão franca de um mundo que se satisfaz com alguns detalhes de representação — dirige, escreve, produz e edita uma mulher; outras duas protagonizam —, sem prestar muita atenção às incoerências de seu discurso cinematográfico.
 
Moore interpreta em A substância Elisabeth Sparkle, apresentadora de um programa de exercícios de sucesso no estilo Jane Fonda, que é repentinamente demitida por Harvey (Dennis Quaid), um nefasto executivo de televisão. Elisabeth não é mais a jovenzinha que conquistou o olhar do público e é preciso substituí-la por alguém de idade menor. Depois de um acidente causado por ver como alguns trabalhadores retiram sua imagem de um outdoor, Elisabeth acaba no hospital, onde um atraente jovem enfermeiro lhe dá informações sobre um produto chamado “A Substância”, que poderia resolver seus problemas. Elisabeth faz um pedido e recebe um pacote com instruções: ao se injetar com o fluido misterioso, seu corpo expulsará uma sósia mais jovem, que deverá guardar a versão original em um lugar seguro e alimentá-la durante sete dias; terminada a semana, você deverá realizar o mesmo processo, mas ao contrário. Se seguir as instruções, tudo ficará bem; caso contrário, seu corpo original pagará as consequências, como uma espécie de Dorian Gray.
 
 
Sue (Qualley), a sósia, tem um corpo absolutamente adaptado à exigência patriarcal: cabelos longos, pretos e cacheados, enormes olhos azuis, pernas longas e fortes, e um longo etecétera para que ninguém me acuse de ser peremptório, mas é o estilo de Fargeat que nos obriga a olhar com desejo para Moore e Qualley. Uma após outra, e outra, e outra mais, até não ter mais nada a fazer a não ser repetir planos, Fargeal observa seios, nádegas, curvas, sorrisos, de uma forma que evoca o videoclipe produzido pelo mais misógino glam metal e funk mais sensual. Embora me oponha à proibição do desejo nas imagens, pergunto-me: como é que satisfazer o olhar do espectador heterossexual durante um filme inteiro de mais de duas horas constitui uma estratégia subversiva?
 
Voltando à teoria feminista do cinema, há um conceito de Laura Mulvey — o olhar masculino — que tem sido mal interpretado, pois não significa a mera sexualização da figura feminina na tela, mas a montagem que passa da imagem da mulher atraente ao de um homem olhando para ela, com a qual o público se identificará, invalidando assim o espectador heterossexual. As críticas lésbicas questionaram Mulvey, pois elas também desejam o corpo feminino e não se sentem excluídas por se identificarem com o observador masculino. O desejo não é um problema em si, mas devido à sua hegemonia: o que é urgentemente necessário é que mais mulheres explorem corpos masculinos, como fazem os cineastas gays, de Julián Hernández a Alain Guiraudie. Mulvey, mais subversiva e filosófica, optou por fazer filmes como Enigmas da Esfinge (1977), que destruíam o desejo ao eliminar o enredo e experimentar as possibilidades da imagem: o patriarcado cinematográfico tinha pavor da vanguarda.
 
Fargeal, por sua vez, responde às ferramentas do cinema masculino utilizando-as até alcançar a saturação (daí a minha dúvida se A substância era realmente um ataque às utopias feministas). O roteiro também não faz muito para denunciar o sistema patriarcal porque tende a culpar Elisabeth por sua gradual e anunciada punição. Embora Fargeat ilustre Harvey no início como uma figura grotesca, através de planos que enfatizam seu repugnante modo de se comportar à mesa, esse mesmo asco é logo transferido para Elisabeth, que assume uma forma monstruosa a cada violação das instruções de uso de A Substância. Mesmo em Revenge eram os corpos masculinos que mais sofreram mutilações — embora o corpo feminino também tenha se saído bastante mal —, mas em A substância Fargeat se delicia em olhar para a imensa cicatriz de Elisabeth após expulsar Sue de suas costas, ou para seus dedos envelhecidos e flácidos que a impede de se levantar de uma cadeira. Nem mesmo Mario Bava, uma das grandes figuras do misógino giallo italiano, puniu tanto, nem com tanto prazer, suas destripadas personagens femininas.
 
A repulsa que Elisabeth produz chega a um ponto excessivo que evoca as imagens da Troma Entertainment, estúdio independente americano que em seus primórdios se comportou paralelamente ao estilo punk de Richard Kern, cuja intenção era ofender o conservadorismo através de imagens humorísticas explícitas e exageradas, de violência. Em filmes como O vingador tóxico (1984) ou Tromeu & Julieta (1996), o diretor Lloyd Kaufman — fundador e atual presidente da Troma — deleitava-se com protagonistas deformados e mortes espetaculares, inclusive de crianças, sob um senso de humor francamente malévolo. Há quem acuse a Troma de ser sexista pela forma como trata a sexualidade e as mulheres, mas Fargeat recorre a convenções semelhantes sem qualquer ironia envolvida; em vez disso, ela as repete.
 
Vale, por tudo isso, focar em Demi Moore. Embora Fargeat seja obcecada por sua figura — muitas vezes sem roupa — e por seu rosto, Moore não é apenas um objeto para a câmera. A intensidade que irrompeu mesmo nos seus papéis aparentemente mais triviais domina os enquadramentos em A substância, não como se estivesse noutro filme — ela interpreta o castigo de Elisabeth como se fosse seu —, mas como se a sua atuação fosse uma atuação autônoma, pouco motivada pela trama. Fargeat nos sacode com monstruosidade para nos obrigar a desfrutar o filme, mas Moore, mesmo se tornando uma deformidade ao estilo Troma, se destaca entre o sofrimento e a maquiagem para nos dizer: ainda estou aqui. Sua biografia é de infortúnio e resistência — ela emergiu da marginalização e do abandono de sua família para ser a atriz mais bem paga de Hollywood — e por isso ela é capaz de dar a este filme tudo que Fargeat sequer consegue conceber: coerência. Está em Moore, na sua atitude indestrutível, na sua raiva descontrolada e na sua triste aceitação da derrota, onde as boas intenções do filme se concretizam e a própria história de beleza e fama é revelada. 


* Este texto é a tradução de “The Substance enfrenta o repite la mirada masculina”, publicado aqui, em Gatopardo.

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