Umberto Eco: a verdade está dentro das bibliotecas

Por Bruno Padilla del Valle
 
“O conjunto das bibliotecas é o conjunto da memória da humanidade.”


Umberto Eco. Foto: Leonardo Cendamo


 
Memória vegetal é o conceito que Umberto Eco (1932-2016) cunhou para se referir àquela porção, poderia dizer material, da memória cifrada nos livros, cujo habitat natural são as bibliotecas, tanto públicas como pessoais, que podem estar abertas a outros leitores. Segundo o escritor, semiólogo e filósofo italiano, a questão da memória, que tantas perguntas suscita nesta era de virtualidades e nuvens, foi adianta por Isaac Asimov no seu conto futurista “A sensação de poder” (1958), em que uma falha geral na informática obriga a se recorrer à única pessoa no mundo que ainda é capaz de realizar operações matemáticas “de cabeça”. O documentário Umberto Eco: a biblioteca do mundo (2022) tem como tema central esse vínculo entre literatura e memória, que ganha forma nas estantes de sua famosa coleção de livros.
 
O filme começa com o próprio autor ladeado por dezenas de estantes repletas de livros enquanto atravessa um longo corredor e depois uma sala muito grande. “A biblioteca é ao mesmo tempo o símbolo e a realidade de uma memória coletiva”, diz ele, e em seguida cita Dante quando descreve Deus: “Vi num único livro o que no universo se dispersa”. O autor da Comédia concebe o Todo-Poderoso como a biblioteca de todas as bibliotecas, séculos antes de Borges imaginar a sua Babel. Estas declarações fazem parte do encontro realizado em 2015, um ano antes da morte de Eco, com o cineasta Davide Ferrario, por ocasião da gravação de uma videoinstalação encomendada pela Bienal de Arte de Veneza e precisamente intitulada Sulla memoria. Foram apenas alguns dias de entrevistas, mas foram suficientes para que o escritor piemontês convidasse a equipe de filmagem para conhecer sua biblioteca. A cena resultante tornou-se icônica quando a notícia de sua morte se tornou conhecida em 19 de fevereiro de 2016 e os noticiários de todo o mundo a reproduziram.
 
O documentário de Ferrario abre com esse eco internacional e o grande acontecimento que representou na Itália. “Grazie, Prof.”, lemos em um banner no dia de seu funeral, e no filme parece que estamos participando de uma master class póstuma. Saltamos para o verão de 2022 e a câmera nos coloca novamente diante da coleção de livros que desenvolveu durante três décadas, e que sua família decidiu doar à Biblioteca Nacional Braidense (Biblioteca di Brera) de Milão e à de a Universidade de Bolonha. Antes de fazê-lo, avisa a Ferrario para que, se assim o desejar, faça um registo desse legado no lugar onde foi o refúgio de Eco. Acima de tudo, gostava de se entrincheirar na sala dos volumes antigos, sem qualquer tecnologia, apenas com sua flauta e seus tesouros literários. Tinha luvas, mas não usava: os livros precisam ser tocados.
 
Não é dito no documentário, mas sabe-se que Eco se orgulhava de não ter lido a maior parte dos cerca de 30 mil volumes. Mais do que a acumulação, sua paixão eram as infinitas possibilidades de conhecer o que não conhecia. Essa ignorância que cresce à medida que lemos, como um bom amante do paradoxo, fascinava o grande pensador, escritor e criador de uma espécie de antibiblioteca ou, como ele mesmo a definia, de uma “biblioteca semiológica, curiosa, lunática, mágica e pneumática”. Nela se acham temas tão diversos como a alquimia, os teatros químicos, o ocultismo, os hieróglifos, a demonologia, as línguas universais ou a alma dos animais. “O poder da linguagem não é dizer o que existe, mas descrever o que não existe”, dizia destes livros excêntricos cujo valor reside no fato de, a partir da periferia literária, da diversidade ou mesmo da incongruência, serem capazes de recriar mundos completos, impossíveis e, portanto, muito mais interessantes.
 
Entre outras, o documentário mostra-nos as obras de Athanasius Kircher, um jesuíta do século XVII que escreveu — ou conjeturou — muito, e sobre muitas coisas, sem necessariamente ter um grande conhecimento delas, mas recorrendo a uma “fome enciclopédica” e a algumas imagens fascinantes que dão corpo às suas fantasias delirantes com linguagem científica, numa confusão entre o verdadeiro e o falso que era outra das fraquezas de Eco. Também descobrimos no seu altar Thémiseul de Saint-Hyacinthe, autor de um tratado de erudição sobre um assunto poema banalíssimo em torno do qual desenvolve um ambicioso aparato crítico, fazendo com que o pensador italiano reflita acerca do “murmúrio artificial dos livros”, aquele que nos dispensa de lê-los. O melhor do filme de Ferrario é como, ao abrir-nos as portas da sua biblioteca, ele também nos abre as da sua mente e da sua imaginação, que relemos à luz destas fontes tão originais e da sua (des)organização: os familiares desvendaram o aparente caos que responde, na verdade, a uma coerência ordenadora muito pessoal e ao trabalho seletivo de uma vida.
 
Eco defendia, precisamente, que as bibliotecas deveriam estar vivas, não só porque se passa por eles e se repensa continuamente como ele fazia, mas porque são compartilhados (como fazia); questão que, em sua opinião, diferencia um bibliomaníaco de um bibliófilo. Ele, claro, sempre se encontrou nessa segunda categoria, e é por isso que neste documentário admite que “sentimentalmente, o livro é insubstituível” na sua versão impressa em comparação com a memória eletrônica ou a memória de silício, que cada vez tende a ser menos necessária. Ao acreditar que conquistamos uma memória imensa, perdemo-la pela sua incompreensibilidade, conclui, apelando para uma tarefa essencial de filtragem com a sua habitual lucidez: “Este mundo está sobrecarregado de mensagens que nada dizem”. Mas a literatura é outra coisa.
 
Por isso defende que o importante, em todo caso, é a aproximar-se dos livros (“A vida que se conquista pela leitura não discrimina entre a grande literatura e a de entretenimento”), e também reivindica quadrinistas-pensadores tão brilhantes como Charles M. Schulz ou seu amado Quino. Sobre a habitual questão que diz respeito aos hábitos de leitura, afirma: “Ter curiosidade intelectual significa estar vivo. Mas, acredite, não há muitas pessoas vivas neste mundo”. Esse humor sarcástico e cortante permeia os fragmentos de entrevistas e depoimentos de Eco que compõem o cerne do documentário e mostram um autor confortável no papel de orador, um analista sem subterfúgios, mas com grande senso de humor.
 
Apesar do que a presença destas imagens de arquivo — e áudio — possa significar em termos cinematográficos para o documentário, a sua organização em cena é elegante e sofisticada. Além de uma extensa carreira como documentarista, entre os quais se destaca o multipremiado La strada di Levi (2006), e alguns filmes menores, mas interessantes, como Dopo mezzanotte (2004), o cineasta Davide Ferrario (Casalmaggiore, 1956) também pode ser reconhecido por sua carreira como escritor, crítico e distribuidor na Itália de títulos de Fassbinder, Wenders, Sayles e Seidelman. Umberto Eco: a biblioteca do mundo poderia ter sido um documentário estático ao concentrar o foco nesses templos da literatura, mas em vez disso torna-se muito dinâmico graças à presença consciente da câmera na sua entrada nas salas da memória literária.
 
Bibliotecas antigas ou modernas, recônditas ou espaçosas, mas todas grandes à sua maneira, como as mencionadas acima e a Comunale de Imola, a Stadtbibliothek de Ulm, a Stiftsbibliothek de Saint Gallen, a Vasconcelos da Cidade do México ou o Binhai de Tianjin. Um passeio enriquecido pela música de Carl Orff (essa “Gassenhauer” que sempre nos remete à obra-prima de Malick, Terra de ninguém) e de Fabio Barovero, embora como o próprio Eco nos lembra, a verdade só está no silêncio. O silêncio da leitura, o silêncio destinado a ser preservado nas bibliotecas. 


* Este texto é a tradução livre de “Umberto Eco: la verdad está ahí dentro (de las bibliotecas)” publicado aqui, na revista Mercurio.

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