Um exórdio em Decameron

Por Eduardo Galeno

Maestro di Jean Mansel. Gerbino embarca no navio da filha do rei de Túnis. Ente Nazionale Giovanni Boccaccio.


 
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O exórdio é o pulo apresentador, demonstrativo, antecipando o corpo de uma enunciação. E estou certo de que ele, se não fosse pela adesão corriqueira das escritas modernistas pela dinamite-signo — que tem seu poder armado naquela querela de negação —, passaria perto do que formulamos hoje como ‘normal’ nas poéticas (ao menos em vias originalmente comuns). É nítido, porém, que o exórdio, em matéria aristotélica, é muito mais retórico, exibido no para-além da literatura, que qualquer outro ponto. Apesar disso, nós — que ficamos habituados à introdução — temos em mão vários e vários exemplos de práticas letradas que usaram e abusaram desse ornamento. Desde a entrada de Homero na boca de Ulisses à saída de Camus na loucura de Mersault, esses movimentos se declararam na clareira do dia. Não seria diferente em Boccaccio. Persistência, quase no fim do tempo medieval, que ele busca no opus Decameron: insistência da moralização. Melhor: invenção de uma prática moral. O exórdio experimenta, nesse tipo, um lugar de estratégia linear: eu mostro a ti o que vai acontecer, eu te dou pistas do que você vai ver. É o que acontece nos contos boccaccianos, precisamente na quarta novela. Ela estrutura, em três vezes, três momentos: um começo, um desenvolvimento e um fim. O meio (ou medium) e o fim estão em constante aproximação, é claro, com o exórdio. Diria que eles refazem, antes, um percurso que já fora estabelecido (afinal, dentro dos trâmites do exterior, essa guinada de um modo para o outro não seria outra coisa que uma repetição). Essa ponte é um corte-clichê: Boccaccio tira, não se sabe de onde e nem quando exatamente (porque, afinal, as letras em si mesmas são lugares desterritorializados), informações-estereótipo. O exórdio é uma delas. Ele informa o aspecto útil de vários enunciados, todos eles bem arquitetados. Podemos dizer que ele constrói o tecido, (pode) faz(er) um texto. Sua função é adestrada como inteira, embora muitas vezes seja requerida às pressas, às vezes ocorrendo sequer no começo do enunciado. Pois bem: é o exórdio da quarta novela da quarta jornada. Ele apresenta a história de dois jovens, Gerbino (neto do rei Guilherme) e a filha do rei Túnis, que se apaixonam um pelo outro no redemoinho de idealidades que os impregnam através das famas da beleza e do valor, duas típicas do romance pré-moderno. “Amáveis senhoras”, diz Elissa, a narradora do conto, “são muitos os que creem que o Amor desfere suas setas somente quando inflamado pelo olhar e zombam dos que defendem que é possível apaixonar-se só por ouvir falar da outra pessoa; que estão enganados é coisa que ficará clara pela história que pretendo contar. Com ela lhes será mostrado que a fama não só fez isso, sem que os enamorados jamais se tivessem visto, como também que levou ambos a uma morte miserável.” O resto da narração é imbricado diretamente a esses subtecidos: Justiça, Esperança, Honra. O que faz com que ele saia e convença no fim, juntamente aos outros tópicos do eixo temático (amores com fim infeliz), é muito porque no exórdio há a assimilação teleológica, um tipo de expectativa pré-constituída que o ouvinte já precisa ter em si. Isso restitui, então, por que a Retórica clássica se repartia em duas ocasiões: res e verba. O material discursivo preenche a questão do assunto e é moldado, enfim, pelo estilo: teremos o entimema “o Amor é destruidor, logo é ruim”? Nada mais falso para uma ficção medieval. Se pensarmos bem, há uma varredura, sim, na conceitualização do Amor enquanto maneira de conceber o outro, mas ele é sugerido como crueldade: “maldito seja o ponto onde o amor nasce de tal maneira que a vida inteira Ele a domina à vontade” (rima de Guido Cavalcanti, contemporâneo das novelas). Referidas as questões, me parece que no gênero epidítico (loas ou vitupérios a algo ou alguém) também se acopla o judiciário (sê justo ou injusto). Caso: o amor que nasceu da junção entre dois filhos da soberania e que termina em tragédia. Em outras linhas de posição, o plano do tema do conto de Elissa, na pena de Boccaccio, é uma defesa discursivo-persuasiva de uma premissa, locução servida por fora da razão textual, apesar de tê-la como base. Isso significa que a escrita de Boccaccio sofre à maneira de dois ou mais elos que ou querem fazer mudar a dinâmica que de quem as recebe ou, de modo exageradamente aberto, deixar passar intencionalmente (a Retórica como norma) uma fala, uma posição, uma certificação do logos de determinada comunidade (a sociedade cristã do medievo e quasi-renascentista). É por esse motivo que produções como a do Decameron apenas focam sua importância se submetidas à heurística dos tempos perdidos: funções e perfis: tínhamos heróis e donzelas na representação das altas patentes. Eles foram transferidos pela aglutinação de ladrões e prostitutas no mesmo espaço (que já não é um espaço, na verdade, e sim dilatação de lugares). O contexto que o exórdio experimenta é multiplicado. Talvez nós nunca tivemos uma superação catastrófica de práticas que parecem velhas; mudamos conforme a música foi trocando. Pensemos em introduções com motivos toda vez que lermos um conto de quase mil anos. Vejamos a logografia se espelhando na psicagogia, os efeitos do discurso se tornando os efeitos da alma e Boccaccio respeitando tanto o céu como a terra.
 

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