Tipos de gentileza: os sacrifícios do amor

Por Ernesto Diezmartínez
 



Ao terminar o primeiro segmento dos três que compõem Tipos de gentileza (Estados Unidos, Grécia, Irlanda e Reino Unido, 2024), o nono longa-metragem do representante máximo da “Estranha Onda Grega”, o internacionalizado e hollywoodizado Yorgos Lanthimos , Vivian (Margaret Qualley), uma jovem de longas pernas impossíveis, sempre vestida com uma precária minissaia, levanta-se da cama onde estava descansando para pegar um teclado e começar a (mal)tonar aquele inesquecível clássico romântico dos anos setenta “How Deep Is Your Love”, escrito por Barry, Robin e Maurice Gibb, mais conhecidos como Bee Gees.
 
Lembra da música? Se no início o vocalista descreve um cenário pastoril em que o amor que se presume existir se funde com os raios do sol, com uma chuva torrencial ou com a brisa de verão, logo duvida da permanência e até da fidelidade daquele sentimento almejado. Duvida, então, do amor e entra o pegajoso refrão, implorando pela resposta à pergunta do título: “Quão profundo é o seu amor”. O autor quer saber: vivemos, diz ele à sua amante, “num mundo de tolos” que “quer nos destruir” quando deveria “deixar-nos ser, deixar que pertençamos um ao outro”.
 
Quando ouvimos Vivian de Miss Qualley cantar esta obra-prima da balada brega e romântica da era disco music dos anos setenta, ficamos convencidos de que os personagens centrais deste primeiro segmento do filme já esclareceram qualquer dúvida possível: aqui existe um amor verdadeiro, disposto a fazer qualquer sacrifício, não importa o quê. O que, aliás, não significa que o que estamos vendo seja um final feliz, mas sim a consequência lógica de uma doentia relação de poder entre dois amantes que, parece, permanecerão juntos para sempre. De certa forma, este é o denominador comum que aparece tanto no primeiro episódio, “The Death of RMF”, como nos dois restantes, “RMF is Flying” e “RMF Eats a Sandwich”: os personagens deste sombrio tríptico romântico / cômico/ onírico estão dispostos a fazer qualquer coisa por amor, mesmo que seja a mais perturbadora, obcecada e distorcida de todas.
 
Escrito pelo próprio Lanthimos em colaboração com Efthimis Filippou, roteirista regular de sua primeira e mais radical fase — aquela que vai de Dente canino (2009) a O sacrifício do cervo sagrado (2017) — Tipos de gentileza funciona como uma cruel e descarnada parábola sobre a busca do amor e nossa inevitável dependência dele. Sem compromissos de qualquer espécie, parece que Lanthimos, depois de ter sido mimado pelo establishment de Hollywood durante sete anos — cinco indicações para ele, duas estatuetas conquistadas para suas atrizes, outras três estatuetas para outros colaboradores — decidiu retornar desafiadoramente às suas origens, talvez à mais autêntica, em que a aposta em imagens completamente naturalista — por vezes até planas — é contrastada por situações e diálogos surreais, que muitas vezes conduzem ao humor/ horror mais absurdo.
 
Unida de forma precária e caprichosa pela aparição recorrente do mesmo personagem nos três episódios — um sujeito que é identificado pelas iniciais gravadas em suas roupas: RMF —, Tipos de gentileza começa com a história de um funcionário modelo (Jesse Plemons) que tem vivido a vida inteira seguindo as ordens do chefe (Willem Dafoe) até na vida privada — o que comer, o que beber, quando transar com a esposa (Hong Chao) que o chefe escolheu para ele; continua com o episódio de um policial (Plemons novamente) que está convencido de que sua esposa (Emma Stone), que acaba de ser resgatada de um naufrágio, não é sua esposa, então ele pede evidências cada vez mais extremas para provar seu amor; e termina com outro casal (Plemons e Stone novamente) que renunciou à sua vida anterior para pertencer a uma seita sexual insana que está em busca de uma messias feminina que, supostamente, seja capaz de ressuscitar os mortos.
 
Embora a ganhadora do Oscar Emma Stone apareça em todos os três episódios em sua melhor forma — especialmente no segundo segmento e perto do final —, quem acaba sendo o elemento coeso de todo o filme é Jesse Plemons — melhor ator em Cannes 2024 por esta tríade de papéis, precisamente. À medida que o filme avança, a cada novo personagem que interpreta, Plemons acrescenta diferentes traços obsessivos enquanto, curiosamente, rareia o cabelo, perde o bigode e até perde peso: o Andrew da última parte, sempre impassível e com cabelo raspado, parece uma espécie de monge budista que teve seu manto vermelho removido e vestido com roupas dois tamanhos maiores que ele. Plemons passa de amante magoado e rejeitado a amante paranoico desconfiado e daí ao amante fixo, confiante e dedicado de seus admirados gurus (Dafoe e Chau novamente). Três personagens e apenas uma verdadeira loucura.
 
Com tudo e os seus altos e baixos, inevitáveis ​​em qualquer filme episódico — o filme vai do mais para o menos, talvez pela duração de perto de três horas, talvez pelo esgotamento. Temático —, Tipos de gentileza se mostra, em todo caso, como uma lúcida ilustração cinematográfica de nossos piores demônios internos que não podem e não querem ser domesticados, como diz outra música que ouvimos no final do segundo capítulo, “Rainbow In The Dark” de Dio, no momento em que o solista nos pergunta, ao ritmo do heavy metal, se algum dia os demônios nos deixaram ir. Muito pelo contrário: escondem-se bem no fundo de nós e fundem-se, confundem e por vezes disfarçam-se de amor. Às vezes, de gentileza. 


* Este texto á a tradução livre de “Tipos de gentileza: los sacrificios del amor”, publicado aqui, em Letras Libres.

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