Sara Gallardo: uma língua a meio caminho
Por Diego Di Vincenzo
Sara Gallardo. Arquivo revista Anfíbia. |
Pouco depois de começar a ler Eisejuaz
(1971), o quarto romance da escritora argentina Sara Gallardo, sucede a
experiência de uma leitura no abismo, porque, fragmentada na dicção de seus
personagens, aparentemente incoerente, ancorada numa forma estranha de construir
as frases, entrecortada, repetitiva, mas fascinante.
“Que livro estranho e belo você concebeu!
Não imagino como isso lhe ocorreu, nem como você se atreveu a empreendê-lo. Que
audácia!”, escreveu Manuel Mujica Láinez, amigo da escritora e especialista em ousadias
linguísticas. E isso pela cadência que possui essas abduções da linguagem
comum, principalmente na forma de organização das frases. Réplicas de diálogo
que prosperam na direção invertida, na sugestão, na incompletude. Uma linguagem
a meio caminho, que não se diz tudo, como se desfizesse convenções e outras
formas de hierarquia e controle linguístico.
Eisejuaz é o nome sagrado pelo
qual Lisandro Vega é conhecido em sua comunidade; ele é um líder da comunidade wichi
da região dos weenhnayek, grupo que habita o Gran Chaco nas duas margens do
Pilcomayo: o departamento boliviano de Tarija e o noroeste da província
argentina de Salta, e cuja segunda língua é o espanhol.
Lisandro desce do país andino até
o engenho La Esperanza, na província de Jujuy, fundado em 1882 por um saltenho
e um inglês, lugar onde se refugiavam as missões anglicanas radicadas no Chaco
paraguaio desde o fim do século XIX, às quais Lisandro segue “por causa do
Evangelho” até Embarcación, um povoado por onde perambulavam os qom e os wichi,
entre outros grupos, como nômades e caçadores, e cuja estação ferroviária dinamizava
uma área de cruzamentos que perderia importância com o fechamento da ferrovia e
a construção de um hospital regional na cidade saltenha de Oran.
Neste aspecto, o romance abre
alguma filiação com as narrativas de fronteira do século XIX e, em particular,
com a excursão de Lucio V. Mansilla à comunidade ranquel. Além disso, o trem é um
farol de “civilização” e de mobilidade moderna. E também possibilita a leitura
do “mensageiro”, do “enviado civilizatório”: viajantes, cronistas, expedicionários
militares. Lisandro também é um “enviado” do Senhor.
Através de um discurso carregado
de estrabismo, a palavra remitifica língua, ou seja, poetiza-a através do
desarranjo da forma, do desvio da convenção gramatical, para retornar a algo da
consciência mítica original das culturas americanas. Esta aspiração não está
muito distante dos projetos poéticos de filiação órfica com os quais Baudelaire
lê as correspondências do universo ou Rimbaud acessa o desconhecido. Lisandro
Vega, seu protagonista, é empurrado para experiências rituais e perceptivas,
além das de sonho, por meio da cebil, semente que depois de moída é fumada.
Os diálogos revelam em breves
intervenções a espessura do simbólico (significados que podem ser lidos em
alguns animais, redemoinhos de água, plantas, sol, vento), que vão além do
puramente racional. Ao contrário da metáfora, a mais figurativa das linguagens,
o símbolo lança significados num mar de interpretações variadas que não são
inteiramente traduzíveis na linguagem. O símbolo necessita de uma linguagem que
seja também simbólica como a da poesia ou a do mito. E o mito se materializa como
linguagem no ritual. Na repetição e nos números.
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Eisejuaz
Sara Gallardo
Mariana Sanchez (Trad.)
Relicário Edições, 2021
Relicário Edições, 2021
230p.
* Este texto é a tradução de “Sara Gallardo: una
lengua a medio camino”, publicado aqui, em Revista Ñ.
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