Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Por Pedro Fernandes


Ronaldo Correia de Brito. Foto: Hélia Scheppa


 
Uma vez próximo ao desfecho de Rio sangue irrompe mais um dos muitos regatos que constituem o todo complexo de uma história que ambiciona contar a formação do interior do Nordeste brasileiro, quando os portugueses amargam as primeiras crises econômicas com a colônia fundada em 1500 e iniciam o processo de avanço pelos sertões. Neste breve fio, situado mais próximo do nosso tempo, encontramos um interessado em contar a história que vimos lendo e entre os problemas levantados no e a partir do diálogo com a prima, uma professora primária, está a ausência de uma obra literária capaz de, perfazendo o poder da épica, contar das inúmeras batalhas assumidas entre colonizadores e indígenas até a posse dos territórios em nome da Coroa. Recuperamos essa passagem porque nela parece que encontramos o interesse do próprio Ronaldo Correia de Brito com este romance.
 
Embora a personagem referida não esteja totalmente ignorante, sua afirmativa precisa ser ponderada, porque a nossa literatura reiteradas vezes assumiu interesse pelo vasto espaço escuro da nossa história; ainda que do ponto de vista do homem de formação ocidental, como um José de Alencar ou um Gonçalves Dias, para citar dois exemplos, se fabulou a posse da terra e dos seus habitantes ou mesmo os seus modos guerreiros no tempo anterior e posterior ao da chegada dos portugueses a esta parte do mundo. E não é o caso de uniformizar a diversidade de circunstâncias, mas os processos de ocupação seguiram mais ou menos a mesma cartilha ainda repetida dentro ou fora do Brasil, antes e depois do colonialismo nas Américas. Mas, o observado por d. Ritinha de Brito no diálogo como o primo escritor não é vão. Muitas vezes esse ponto de vista foi afetado de idealizações onde faltava clareza acerca da vida colonial; e, no caso dos sertões nordestinos é impreciso, na literatura, o lugar de andamento dos processos de colonização aí praticados, que, sabemos, assumiu variações em sua estratégia de mando e domínio ao curso dos interesses e circunstâncias imediatas; a posse, no nosso caso, embora tenha repetido as mesmas práticas, não se guiou por cartilha.
 
A dificuldade de acesso ao tempo colonial no sertão nordestino é vária. Os registros, em parte significativa, são de memória e da oralidade, por isso mesmo, não são claros; e se não oferecem precisamente os acontecimentos daqueles tempos, esses saberes muitas vezes morrem com a morte dos portadores das vozes que contavam. As mais próximas de nós, as remanescentes mantidas entre a geração dos nossos avós, continuam avançar para o mesmo destino escuro do tempo de silêncio e esquecimento alcançado pelas vozes dos que aqui estavam ou dos que aqui chegaram. No mesmo diálogo referido anteriormente, o primo de d. Ritinha, ao que parece, mobilizado por certa nostalgia do passado que ele mesmo não viveu, atribui a perda dos bens imateriais e simbólicos à imposição da escrita e das estruturas de pensamento interessadas em suplantar a oralidade e as formas culturais então vigentes.
 
Ora, talvez reste apenas à literatura, com seu poder demiúrgico, a tarefa de refazer pela imaginação o inóspito mundo perdido que nos trouxe até o presente. E Rio sangue é, repetimos, um esforço nesse sentido. Não épico, porque as nossas circunstâncias são muito distintas daquelas que favoreceram a força da narrativa heroica e nos dias correntes restaram apenas os resíduos dos modos como os clássicos cantaram o seu passado mítico. Mas é um esforço possível no campo da escrita, alguma salvaguarda do esquecimento.  Logo, podemos nos colocar na contraposição, ao lado de d. Ritinha, quando defende que: “A escrita não é mera expressão da fala, primo, também é registro da história. A mortandade dos povos originários do sertão foi narrada pelos poucos sobreviventes até se perder da memória, como se perderam as línguas que eles falavam. Sem documento escrito, desapareceu.”
 
O romance acompanha, da partida à danação, dois núcleos de um mesmo ajuntamento familiar que deixa Portugal e se instala entre as capitanias de Pernambuco e do Ceará. A estes soma-se uma variedade de tipos que reaviva nos estamentos sociais da colônia uma tentativa mal-ajambrada da ordem na Corte. Abaixo da Igreja, o colonizador e após este o povo, constituído de uma massa amorfa de escravos, perseguidos, delinquentes, aventureiros, fugitivos e os povos que já aqui habitavam. O romancista, embora não ignore essa diversidade, simplifica tudo entre dois tipos: colonizadores e colonizados. Não raro, transfere para eles a questionável divisão entre maus e bons, respectivamente, repetindo uma prática falsa e utópica, predominante entre nós, de reparação histórica pela criminalização de quem mesmo se perdeu nos fumos do tempo. O problema colonial não é nosso; são nossas as perpetuações de sua herança, mas isso é outro aspecto que não deveria interessar a um romance como este sob o risco de cair em anacronismos.
 
O organizador dos acontecimentos, Joãozinho Leandro Correia, no diálogo com a prima, entende que “não há outra maneira de escrever esse romance senão deixar que cada um fale do seu jeito, como melhor lhe aprouver, mesmo que ao final ninguém se entenda.” E este motivo, parece, ainda mais relevante para não se incorrer num justiçamento histórico; se todos devem falar à sua maneira, o romancista deve também se despir do que d. Ritinha chama de “indignação com os métodos da conquista.” Quer dizer, a simplificação é um problema situado na fronteira contrária à própria consciência interna do romance, em parte desobedecida na arrumação do conteúdo romanesco porque esse organizador dos acontecimentos não deixará de imprimir seu ponto de vista exterior.
 
As duas famílias portuguesas alcançam a colônia quando os primeiros ciclos da cana-de-açúcar começam a entrar em crise, forçando os colonizadores a entrarem, cada vez mais, no interior dos territórios, à procura de meios e climas favoráveis a novas culturas, como encontrarão na criação de bovinos. Aqui, as divisões, movidas pelos interesses econômicos e de posse irradiam à formação do Nordeste brasileiro: Fernando e Josefa trocam o engenho pela vida urbana no Recife e ingressam no comércio. Pouco sabemos dos quatro filhos desse casal — Dimas, de quem se diz possuir interesses homossexuais na adolescência, Inês e os gêmeos aparecem em segundo plano.
 
De Antônio e Anacleta, assistimos o padecimento com a ruína do engenho Tracunhaém e o andamento dos dois filhos homens — e não de Ana Maria, quem se casa com Bernardo. João casa-se, por arranjo entre famílias, com Catarina e depois da primeira filha vê-se envolto no imbróglio amoroso com a viúva Brites Manoela, no Recife; e José, avança pelo sertão como uma criatura híbrida entre a fortaleza de vaqueiro, a fragilidade de homem religioso e, mais tarde, a sapiência de um homem de justiça, amasia-se com uma índia, com a qual forma uma extensa prole de filhos e instaura uma espécie de reino de bonança, a fazenda Umbuzeiro, à vista grossa do poder eclesiástico.
 
Embora o romance não se descuide dos demais núcleos familiares e suas derivas quase intermináveis, acompanha com maior interesse, pelo motivo que já conhecemos, os desdobramentos com o padre vaqueiro. Nesse núcleo centram-se as representações de alguns dos tipos que deram origem ao sertão nordestino: ao português e à índia, juntam-se os escravos. E é nesse último grupo que se destaca Fabião, uma figura que, à maneira do seu senhor, multiplica-se entre dois ofícios, conjugando a atividade de vaqueiro com a de menestrel. A personagem é visivelmente inspirada no potiguar Fabião das Queimadas — aliás, referido com esse nome no desfecho do romance — escravo que conseguiu pagar pela alforria e se destacou como cantador e tocador de rabeca.
 
Embora o romance se beneficie da pequena fortuna documental e com ela recupere personagens históricas, não pratica o interesse de recomposição do passado, apenas dele se utiliza como amálgama para o imaginativo acerca dos caracteres e dos acontecimentos narrados; ou seja, não é possível admitir Rio sangue no filão dos chamados romances históricos. Os motivos são muitos. A escassez de fontes robustas e o apagamento das fontes orais são dois deles, além, é claro, sendo uma obra de ficção, interessa ao autor não o acontecido e sim o como aconteceu. Deve-se a isso, certamente, envolver o plano historiográfico com o seu interesse pela vasta enciclopédia das histórias populares na conformação do romanesco.
 
No romance, a índia Páscoa/ Micaela está continuamente metida com o tear, compondo uma interminável quantidade de redes; seu movimento é o do romancista, quem, no tece e tece dos fios narrativos, nos revela um romance de rico colorido. Os acontecimentos da biografia das personagens estão continuamente envolvidos por uma variedade de narrativas populares: as que foram trazidas com os colonizadores, as histórias familiares e as que formam o imaginário católico, as hagiografias e as histórias bíblicas; as dos indígenas; as dos africanos escravizados; os causos saídos dos anedotários populares; as histórias de exemplo, as histórias de mal-assombro e as histórias de Trancoso; as parlendas, as cantorias, as pelejas, os aboios; os folhetos; as adivinhas; as lendas; as crendices etc. Tudo isso porque ao interesse de contar o destino familiar dos Alves Carvalho, junta-se a história do povoamento do sertão nordestino e que esta se revele a partir da voz de suas personagens. Diferente do interesse historiográfico ou da narrativa contada pelos letrados depois do aparecimento da verdade histórica, a expressão dos subalternos não deixou de privilegiar o comezinho e o imaginativo, seja a recorrência ao mágico, ao fabuloso e ao maravilhoso, quer dizer, o material ideal para a literatura.


      
Essa estratégia de composição romanesca favorece à complexa riqueza buscada pelo romancista, mas é também um problema porque, tornando-se um procedimento repetitivo, é previsível, e não raras vezes enfadonho ou soa forçado, como se em um quebra-cabeças o jogador colocasse a peça no lugar indevido. Exemplo disso é a reiteração do drama do negro cooptado de sua terra para um exílio forçado e a condena ao martírio pelo trabalho fatigante ou, ainda nesse expediente, as várias inserções de maus-tratos dos senhores no desterro de seus escravos. Esses casos favorecem o que dissemos antes: a elaboração de uma dicotomia inverossímil das relações coloniais centradas na simplificação do senhor mal e do servo bom. Uma dessas situações envolve um diálogo entre José e Fabião acerca do desejo sexual: sufocado nos imperativos carnais pela índia, o padre interroga o seu escravo por que o negro, ao contrário dele, não é atacado do desejo pelas mulheres e este responde utilizando-se como justificativa a sua condição de escravizado. A pergunta que resta é, nesse caso específico, como uma coisa tem a ver com a outra.
 
A conjuntura que implica um estágio permanente de violência no período colonial independe da escravidão, sendo esta uma parte da ordem vigente, integrada, portanto, na dinâmica social; a sociedade, nesse caso, se institui como estamento opressivo em que todos estão implicados num complexo condenatório: o colonizador também é um desterrado, visto que imposto a uma condição de mando e servilismo à Coroa ou daquelas necessidades prementes, como fica claro no motivo que empurra os Alves Carvalho para a vida na colônia. As causas estão dadas, mas por algum motivo, ficaram inexploradas pelo romance ou demonstradas como se a violência colonial derivasse exclusivamente de um puro capricho e de um deleite dos sentidos para o homem branco e não como um princípio limitado ora pela sua condição ora pela mentalidade dominante. Veja-se o caso do padre José, duplamente condenado sem crime, primeiro a se dedicar ao sacerdócio, depois a arribar para o sertão a serviço dos interesses econômicos e expansivos do império. Não é que isso justifique o rol de violências que inflige contra a índia, mas as circunstâncias impelem para os acontecimentos adiante. Reduzir isso ao nós contra eles é, mesmo num romance, afugentar a complexidade dos dilemas.
 
E porque pontuamos um dos problemas de Rio sangue, vale mostrar outros aspectos que, para o nosso entendimento, ofuscam a qualidade da obra: assim como as repetições dos motivos narrativos de algumas histórias, a alguma dificuldade no entrelaçamento de narrativas, incomoda a frugalidade do desenvolvimento de circunstâncias que mereciam uma exploração mais cuidadosa. O dilema do padre vaqueiro que depois do desejo de posse de Páscoa se descobre tomado pelo desejo carnal que o arrasta para o descumprimento do celibato sacerdotal, uma réplica do dilema (mais bem elaborado) encontrado em O missionário de Inglês de Sousa, é um exemplo disso. Como o episódio se desenvolve a galope perde-se a elaboração de um dos sentidos entre os principais advindos com o título do romance: como o sangue da roubada virgindade da índia pelo padre implica as várias nuances de posse constituídas no interior da violência colonial. O frugal das circunstâncias é mau para a própria composição das personagens que, mesmo em raras exceções, se convertem em tipos fáceis, caricaturais, rasos, destituídos de complexidade interior. Soa fora de prumo para quem engendrou retratos tão vivazes com os que encontramos em Estive lá fora.  
 
Um romance do porte de Rio sangue cobra ainda um cuidado redobrado de outros dois feitores do livro que agora parecem ter se tornado figuração em muitas editoras brasileiras: o revisor e o editor. Vários usos de linguagem estão fora do tempo remontado pelo romanesco ou mesmo alguns costumes parecem estranhos; sobram ainda certos vícios de linguagem. É verdade que isso pode ser justificado por aquele organizador dos nossos dias que cuida da feição geral do que se conta, mas resolvidas essas escolhas duvidosas, alcançaríamos outra feição (melhor) para o romance.
 
Cansam as repetições dos motivos fabulares, mas cansam mais ainda certo uso uniforme de terminologias que se colocam na contramão de uma visível riqueza linguística fomentada pelo escritor. Esse descompasso finda enfraquecendo as fímbrias da dicção do romanesco: fez questão de, escravizado, indígena, povos originários são alguns exemplos facilmente recortados de simplificação vocabular. Um romance que lida com o tempo de censura do Santo Ofício parece que foi supliciado por um desses censores dos tempos vigentes chamados delicadamente de leitores sensíveis. Adestrar a linguagem para atender o imperativo mercadológico segundo o qual é preciso higienizar a língua jamais devia se tornar recorrência, por mínima que seja, na literatura.
 
No diálogo entre Leandro e d. Ritinha, o romancista se interroga ante os muitos possíveis na conformação do romance: “como fugir ao jornalismo, à urgência em denunciar esses milhares de crimes, que não são julgados nem punidos e depressa as pessoas esquecem? A literatura sucumbe aos noticiários, não há como fechar os olhos ao que nos cerca. Ao mesmo tempo, cobra-se dela voltar a ser menos realista, mais ficção. O que fazer diante de tantos caminhos abertos?” As dúvidas são as de todo escritor assaltado nos nossos dias pelo excesso de informação. Mas a resposta é simples: embora possam andar de mãos dadas, a atividade cívica difere do trabalho com a palavra. E exemplo maior encontramos em Machado de Assis.
 
Nessa mesma sequência das dificuldades com Rio sangue, irrita-nos certo didatismo desnecessário, oferecido pela narração ou pelas personagens. Ponto exemplar, nesse sentido, encontramos mesmo naquela passagem em que o romance encontra, enfim, seu ponto alto. Certa feita, o narrador explica-nos que as mulheres viúvas encerradas nos seus lares por imposição dos costumes espiam o mundo de fora através dos muxarabis; à afirmativa junta-se logo a emenda professoral de que muxarabis são “as treliças de madeira inclinadas introduzidas pelos mouros na península Ibérica que deixam um pequeno espaço à passagem do ar e da luz e não permitem que as mulheres sejam vistas por homens caminhando na rua.” Desnecessário: uma obra literária jamais deve subestimar seu leitor, da mesma maneira que deve obedecer apenas aos princípios da própria obra. 
 
Os fios narrativos são muitos, mas Rio sangue se alimenta de uma obsessão: o número dois. Isso se nota desde a geografia, passando pela disposição do tempo e dos desenvolvimentos das personagens: as capitanias Pernambuco e Ceará, litoral e sertão, campo e cidade, passado e presente, bons e maus, os pares de irmãos Fernando/ Antônio, José/ João, o lavrador e o comerciante, o sedentário e o viandante etc. Ou seja, justifica-se, de alguma maneira, a escolha pela redução da ordem social conforme observamos anteriormente, mesmo que não se desfaça o problema da mimesis. Como o passado mais profundo, o da experiência das personagens é sempre trazido ao presente da narrativa pelo ponto de vista delas, caímos noutro maniqueísmo: contraposto ao tempo de violência gratuita que uniformiza o presente de desterro, o tempo anterior é toda vez encoberto por certa névoa do idílico, quando, na prática, a perda do paraíso e o enfretamento entre os segmentos humanos datam da origem imemorial dos tempos, como, aliás, defende o romance ora lido.  
 
Esses problemas, mas também o excesso de personagens e enredos, dificultam encontrarmos aquele ponto em que o funcionamento do romance começa a oferecer sentido para o leitor. Por isso, leitor, paciência. E não se deve desprezar uma observação feita pelo escritor em alguns depoimentos acerca deste romance e marcada indiretamente logo à entrada do livro no registro de três efemérides — “nos quarenta anos da peça Baile do Menino Deus/ nos vinte anos do livro de contos Faca/ nos quinze anos do romance Galileia”. Com a publicação de 2024, Ronaldo Correia de Brito esclarece concluir uma trilogia reversa e insuspeita em que este romance funciona com Galileia como as duas margens entre as quais transcorre os acontecimentos dos contos reunidos em Faca. Isso explica a forma sui generis de Rio sangue: um romance tendendo ao conto ou um conto tendendo ao romance. E não é possível desconsiderar outra presença essencial: o aproveitamento da forma teatral como se pode evidenciar na leitura de alguns dos capítulos finais, estes, sim, magistralmente bem construídos.
 
É quando notamos que a errância familiar é parte na tentativa de esclarecer o conflito envolvendo as famílias dos Rodriguez e dos Ferreira Ferro (outra vez o número dois) e este é o fio essencial do romance; em seu entorno ou de maneira atravessada proliferam, como se num livro das mil e uma noites, os muitos segmentos que compõem o organismo da obra. No que podemos designar como a primeira parte do livro (intitulada “Conte-me uma história”) cada história funciona como um conto: possui começo, meio e fim. Isso faz com que o que usualmente denominamos enredo corra subterraneamente para se revelar apenas nas últimas partes do livro quando encontramos com o interesse da vingança dos irmãos de Catarina contra João por difamação de traição que marido impetra contra a esposa, dentre outras razões que só convém mencionar entre os que já leram o romance, no rol de estratégias para se desfazer do casamento e escapar rumo à Turquia com a amante Brites Manoela — acontecimento recontado em “Me contaram essa história”. Este é também, para não nos desfazermos da imagem do rio, o ponto nascente e a partir do qual aquele romancista, Joãozinho Leandro Correia, quer explorar.
 
A decisão pelo fragmento não se deve apenas a uma imposição temporal, a dificuldade de acessar o tempo total ou a necessidade de revelá-lo através do ponto de vista original, mas se firma como uma estratégia narrativa que tanto almeja se abrir para a voz do outro quanto reimprimir na ordem do romanesco a correnteza das histórias orais que ricamente irrigaram o imaginário dessa parte do Brasil; qualquer um de origem rural sertaneja e nordestina, educado pela voz, à luz noturna da lamparina em chão de barro ou de cimento das suas casas, encontrará entre as narrativas trazidas pelas personagens de Rio sangue ou mesmo o mote de violência incrustrado nos dilemas familiares, o eco ou a história alguma vez ouvida. Leandro Correia especula o episódio trágico e o reimagina no tempo impreciso ao ponto de virar lenda e enquanto isso um pequeno também chamado José, de cinco anos, tudo escuta fingindo-se centrado num livro velho, “a História sagrada, com ilustrações do francês Gustave Doré” — um quadro singelo que recria o ato primordial e fundacional da arte de contar, do passado deste romancista interessado em narrar o dilema familiar e, por conseguinte, do próprio Ronaldo Correia de Brito.
 
E é ao dilatar a ordem dos acontecimentos nucleares do romance (no sentido mais estrito, uma vez que é a história de amor impossível seu fio essencial) que o romancista encontra o como apresentar a formação possível da história de seu próprio povo, gestada, sim, como o restante do drama humano, em banho de sangue: o martírio dos santos, que a má e sofrida senhora de engenho Anacleta lê continuamente; ou mesmo a redenção da humanidade pela crucificação de Jesus, acontecimento basilar de parte da nossa cultura; os sofrimentos de toda espécie, isto é, a vida, do nascimento, seus domínios, à morte, o tormento, a usura, a danação e a salvação, passam pelo sangue. Interessado nas linhas mestras que imprimiram a constituição do nosso imaginário, como o pensamento cristão, Ronaldo Correia de Brito ambiciona inscrever a história de seu povo como uma parte indelével nos grandes circuitos sígnicos, como é o religioso, e isso, mais que a sucessão interminável de violências e agruras derivada do jogo de disputas entre o homem, é a noção de infinito que advém da junção entre sangue e rio apresentada desde o título deste romance. Um rio de sangue corre em várias direções a formação do sertão nordestino, mas este é um dos muitos afluentes que constituem a história universal dos povos.
 
Como é possível observar, a força suprema deste romance é um princípio básico da grande obra de arte, que, no caso da obra literária, é se integrar aos objetos mais significativos já uma vez produzidos pela literatura: encontrar o particular no universal e vice-versa. Rio sangue mobiliza as fronteiras do romanesco para reunir em seu interior um imenso manancial de criações, algo da natureza original dessa forma narrativa. Mas, não é apenas um receptor de outras formas. Este é romance-laguna. Constituído dos elementos do romance tradicional e do qual se separa por uma fina contenção, seu interior é irrigado pela passagem de vários rios, o erudito e uma quantidade afluentes chamada de narrativas arcaicas.
 
Enquanto passa o curso dos rios, o romance, como a longa narrativa que vimos construindo desde a nossa origem imemorial, não termina, é suspendido. Por isso, ainda cabe no seu interior mais uma das histórias que aí deságuam — e nesse caso bem ajustada porque acabamos de entrever o destino do impasse amoroso entre João e Catarina e o que se contará articula-se diametralmente apenas pelo sopro espiritual dos acontecimentos. Seu Nicolau é o contador educado pela experiência de ver e ouvir nas andanças dos seminômades que trafegavam o sertão de rés a lés. Arranchado no Umbuzeiro, o velho é interpelado pelos outros tropeiros a contar uma de suas histórias. Ele se esquiva alegando que prefere cair no sono e descansar o corpo cansado da viagem, mas não deixará de oferecer aos ouvidos atentos um causo que perfaz o dilema que o romance acabou de contar. É o narrador/ organizador/ autor que assim observa: “O velho reluta, contar histórias é uma empresa trabalhosa, puxa pela memória, exige que se remendem esquecimentos a pedaços da narrativa pessoal. Mas também é uma maneira de continuar vivo e trazer de volta algo que se perdeu.”  
 
Emendamos. Foi a arte de narrar que em algum tempo deu às nossas faculdades mentais a condição criativa capaz de nos distinguir humanos e para descobrirmos a realidade como múltipla e não segmentar, isso que agora quer se impor até mesmo pela literatura, um terreno já não a salvo dos tentáculos da idiocracia. São essas histórias que, como rios subterrâneos, correm na dimensão oculta que chamamos imaginário; como o mito, de alguma maneira, elas nos explicam, nos definem e vez ou outra irrompem no solo do nosso tempo sem que muitas vezes saibamos destrinçar os motivos para tanto porque encontramos metidos na longa sonolência do agora. Cada época é limitada em sua própria órbita de pensamento. O gesto nobre de Rio sangue é o de, no nosso tempo, nos despertar, porque sempre coube a arte de narrar o escape das limitações; como seu Nicolau, Ronaldo Correia de Brito mergulhou na grande noite do tempo e enquanto distribui suas narrativas nos aponta uma das nascentes capaz de nos revelar quem somos para nós mesmos e para os outros e essa talvez seja a qualidade maior desse romance.


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Rio Sangue
Ronaldo Correia de Brito
Alfaguara, 2024
320p.

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