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Ilustração: Afonso Cruz. |
1 Até quando procuraremos “mestres”?
Procurar “mestres” é tão ineficaz
quanto apegar-se ao cânone. Há algum tempo, a palavra “cânone” tem sido usada
para designar as obras de autores que merecem destaque da crítica acadêmica ou
da imortalidade das coleções de “clássicos” nas editoras. Mas o desafio ao
cânone nasceu com o próprio cânone. Desde o início, este foi percebido como um
clube exclusivo do qual se rejeitava aqueles que escreviam da periferia,
incluindo as mulheres. Em
O cânone ocidental (1994), Harold Bloom,
autoridade no tema, reclama da existência de uma certa “Escola do
Ressentimento”, oriunda de uma “trama acadêmico-jornalística” interessada em
refutar o cânone para promover “supostos (e inexistentes) programas de mudança
social”. Refere-se, claro, ao feminismo e a outros grupos ligados às
reivindicações raciais que, mais de trinta anos antes, se tinham estabelecido
como eixos do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e no Ocidente.
Procuram-se os mestres na
literatura assim como os fanáticos religiosos seguem os profetas. E essa busca
tende a ser articulada no gênero masculino e singular. Para José Miguel Oviedo,
quatro nomes refletem a maturidade alcançada pelo conto no século passado: Jorge
Luis Borges, Julio Cortázar, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. Entre os 35
mestres do conto propostos em sua
Antologia crítica do conto
hispano-americano do século XX, apenas duas são mulheres: Elena Poniatowska
e Rosario Ferré. O livro publicado em 1997 e republicado vinte anos depois — no
auge da “Escola do Ressentimento” — sublinha a condição periférica dessas
mulheres ao incluí-las na seção final, identificada como “Outras direções: a
partir do
boom”. Quer dizer: não só são estranhas à maturidade do gênero
breve, como estão tão afastadas da tradição que vão em outra direção. Não estou
interessado em propor aqui uma lista de “mestres” do conto. A recomendação de
Horacio Quiroga, no seu famoso decálogo, de acreditar num mestre, “como no
próprio Deus”, parece inútil e, o mais perigoso, complexa. Por que um autor (ou
autor) iniciante deveria imitar Borges? Lê-lo, sim; deter-se nos mecanismos de
suas ficções, compreendê-los, mas nunca o imitar. Quem iria querer ler uma cópia
de Borges quando se tem o original? A chave está na palavra “leitura”. Para
Ricardo Piglia, é assim que se constroem as “genealogias”. Isto, parece-me, é
mais útil do que consagrar mestres... ou mestras.
2 O que significa fazer
“genealogias” da escrita?
Significa apostar na leitura.
Piglia usou a palavra “genealogia” para se referir ao conjunto de antecessores
literários de um escritor. Como ninguém cria literatura no vácuo, quando
escrevemos temos consciência da poética a partir da qual queremos ser lidos. Em
poucas profissões como esta, são tão importantes os precedentes das ideias ou
de onde saem as ferramentas do próprio estilo. O próprio Piglia contou das suas
genealogias durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara em 2010, ano
em que publicou o seu romance
Alvo noturno. “Um escritor constrói
genealogias imaginárias, algo que os críticos não fazem”, explicou. “Fala-se
dos autores com os quais se sente identificado”. O melhor exemplo disso foi
Borges: “Quando todos falavam de Thomas Mann ou de Fiódor Dostoiévski, Borges
insistia em Robert Louis Stevenson ou C. K. Chesterton, escritores então considerados
menores que ele colocava no centro da discussão. Porque se alguém lia Borges a
partir de Dostoiévski, não sobrava nada de Borges”. Com essa estratégia, o escritor
preparava a imaginação de seus leitores para abrir espaço para seus próprios
textos.
Falar de genealogias coloca ênfase
nos textos, não em quem os produz. Oferece mais ferramentas do que a noção
canônica de Oviedo para compreender a narrativa breve produzida na atualidade.
Não se propõe imitar ninguém, mas sim sugerir os textos de outros como portas
abertas para a própria arte narrativa. Lemos as obras de outros, especialmente
daqueles que nos precederam no ofício, para encontrar soluções para os
problemas que os textos impõem.
Um acontecimento que ainda não foi
suficientemente noticiado é a edição dos
Contos completos de Piglia, publicada
em 2021. Aí se encontram as suas primeiras peças publicadas na década de
sessenta, onde são evidentes as influências de autores como os extremos no
estilo que são Henry James e Ernest Hemingway, ou Macedonio Fernández e, claro,
Borges. Chega aos seus últimos textos no gênero, misturados com as suas
“histórias pessoais”, que vão de 1969 a 2017. O percurso descreve um
caleidoscópio de formas híbridas, capazes de ultrapassar os limites do conto
canônico. Piglia consegue isso a partir de formas narrativas abertas que se
misturam com o ensaio, a crítica ou a autoficção ou a partir de conteúdos
heterodoxos, em que vai desde o conto histórico e policial, ancorados em
gêneros mais ou menos precisos da tradição literária, até gêneros muito livres
da ficção teórica ou do jornalismo, por exemplo. A intensa heterogeneidade de
sua narrativa breve deixa um sulco aberto para que os que cultivam o conto
possam semear nossos textos.
3 Piglia… E o que fazemos com
Bolaño?
Roberto Bolaño foi um movimento literário
de um homem só. Isso é inegável. É por isso que tendemos a pensar que a semente
de toda a narrativa espanhola deste século está na sua obra. É possível que
seja esse o caso no romance. Sinto muito pelos bolañistas, mas o autor chileno
tem menos influência que o argentino entre os cultivadores dos gêneros curtos na
atualidade. Não conheço nenhuma evidência crítica de que suas ideias sobre a
construção do conto sejam estudadas com o mesmo deleite que a teoria formulada por
Piglia, explicada em
Formas breves (1986), segundo a qual um conto
sempre conta duas histórias, uma está na superfície e a outro é sentida subterraneamente.
É verdade que em sua época Bolaño cometeu o mesmo excesso de Quiroga ao propor
um decálogo do gênero. No caso dele são doze “conselhos” para “a arte de
escrever contos”; ele faz isso a partir da paródia, como um bom filho da
pós-modernidade. Mas nem daí ele escapa da pressão de nomear mestres. “A
verdade da verdade é que com Edgar Allan Poe todos teríamos contistas de sobra”,
escreve ele no ponto nove; “pensem no ponto número nove”, observa no ponto dez:
“É preciso pensar no nove. Se possível: de joelhos”. O que é menos claro é se
Bolaño soube reconhecer que tinha um mestre entre os seus contemporâneos, que
nasceu doze anos antes e morreu catorze anos depois dele: Piglia.
As duas semelhanças mais óbvias
entre eles estão no uso de personagens recorrentes e na estrutura das narrativas.
Emilio Renzi e o comissário Croce são fundamentais para a compreensão da
poética de Piglia e aparecem em contos, ensaios ou romances como transcrições
do escritor. Em Bolaño tratamos de personagens menos transcendentes, que saltam
entre contos e romances, ou vice-versa, como Lalo Cura no conto homônimo de
Putas
assassinas (2001) que reaparece em
2666 (2004), ou Joanna Silvestri,
que vai do romance
Estrela distante (1996) à coletânea de contos
Chamadas
telefônicas (1997). Os contos de Bolaño se resolvem em epifanias, o que
implica sua construção a partir de uma história que se conta e outra que se
intui, seguindo a teoria do autor argentino. A diferença é que enquanto nos
textos de Piglia o oculto se revela no final, nos de Bolaño a epifania se
resolve com o vazio. É um jogo de espelhos semelhante ao dos seus romances e
está ligado ao tema fundamental da sua obra, a violência. Com este vazio,
propõe-se mostrar que por trás da violência inexplicável não há nada mais do
que um abismo, talvez mais violência.
4 Uma genealogia pode ser
construída com dois nomes?
Claro que não. Menos quando
apontam apenas para homens, mesmo que sejam Piglia e Bolaño. Só um acadêmico
como Oviedo, formado na antiquada tradição dos mestres, pode imaginar uma
matriz masculina na qual se gestam os movimentos estéticos. Em todo caso, aqui
não me interessa a posição da crítica, mas sim o exercício literário como
autor. Não sobraria nada das obras dos que hoje escrevem contos se elas nos
fossem lidas a partir de Piglia ou de Bolaño. Isso apenas obscureceria as
nossas intenções. Proponho antes expandir o conceito de genealogia com uma
metáfora vegetal. A imagem de uma árvore genealógica. Pensemos na narrativa breve
deste século como um baobá de tronco robusto de onde emergem quatro enormes galhos.
Dois pertencem a Piglia e Bolaño. Num outro localizarei a obra da autora catalã
Cristina Fernández Cubas e no restante, as coletâneas de contos da argentina
Clara Obligado.
Quase posso ouvir as objeções de
certas pessoas. É conflitante fazer uma trança filogenética que inclua
Fernández Cubas e Obligado ao lado de Piglia e Bolaño, eu entendo. A razão para
isso não é porque são mulheres. Nem significa que os seus contos sejam inferiores.
É porque estão mortos e por isso que percebemos as suas contribuições para a
literatura como projetos encerrados. Fernández Cubas e Obligado continuam
escrevendo, é verdade: nos últimos vinte anos publicaram suas melhores obras. É
de se esperar que com o passar do tempo suas contribuições ao gênero se
aprofundem e se projetem fortemente para além das fronteiras da sua língua.
Fernández Cubas sintetiza as
características próprias da história oral e escrita na Espanha, atualizadas na
releitura de Poe e Henry James. Da estrutura clássica do conto de horror
anglo-saxônico, assume a aparência de um elemento perturbador na vida
cotidiana. Através deste recurso, o fantástico torna a visão do mundo mais
complexa e revela as suas fissuras. Embora existam poucas conexões entre esta
autora e a narrativa da América Latina, as histórias da boliviana Giovanna
Rivero e da equatoriana María Fernanda Ampuero apresentam uma irrupção
semelhante do sinistro na vida cotidiana. A diferença é que em suas obras há
uma nuance política herdada de Bolaño: uma ideia de violência como
característica inevitável e sinistra da realidade.
Com a intenção de narrar nosso
mundo múltiplo, Obligado apresenta seus livros de contos como conjuntos
fractais. Esta estrutura indica o que significa ser uma autora migrante — uma
argentina na Espanha — que ela identifica como “literatura excêntrica”. Propõe
assim uma reflexão intensa sobre o deslocamento: o da pessoa, suas leituras, a escrita
e a recepção da obra. É assim que ele enfrenta o seu desenraizamento a partir da
criatividade. Em suas coletâneas de contos
As outras vidas (2006),
O livro
das viagens equivocadas (2011) e
A morte joga dados (2015), ela rompe
com a estrutura da linear narrativa e também na ordenação do livro, para
subverter a leitura e forçá-la a ser recomposta a partir de múltiplos lugares e
pontos de vista.
A heterodoxia de Obligado na
concepção do livro de contos e dos textos que os compõem interessa-me porque
sublinha o efeito abrangente, situando-o entre os gêneros do romance e do
conto. Com esta estratégia, anuncia um caminho a ser seguido por outros
escritos. Em tempos em que as pinturas já não se limitam ao espaço do quadro,
em que certas músicas perderam a melodia e em que a ida ao cinema é feita a
partir do sofá de casa, por que é que o tradicional livro de contos
sobreviveria?
Na literatura acabamos com tudo. Faltava
romper com o livro.
Agora, já podemos outra vez
recompô-lo.
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