Pressinto os anjos que me perseguem, de Helena Jobim
Por Henrique
Ruy S. Santos
A morte é uma condição que a gente vive acordado.
Ricardo Lísias¹
Toda literatura que pretende dar conta de acontecimentos reais apresenta uma armadilha ao crítico, e mesmo ao leitor comum. E essa armadilha é tanto mais insidiosa quanto mais íntima é a natureza dos fatos narrados, como costuma acontecer na autoficção. Explico: um livro (mas também um filme, uma série de TV etc., especialmente as produções do gênero documentário), ao estabelecer de antemão seu nexo indissociável com determinados fatos, pode levar o leitor a equivocadamente assumir como baliza crítica a fidelidade da narrativa a esses acontecimentos que pretende narrar.
Ricardo Lísias¹
Toda literatura que pretende dar conta de acontecimentos reais apresenta uma armadilha ao crítico, e mesmo ao leitor comum. E essa armadilha é tanto mais insidiosa quanto mais íntima é a natureza dos fatos narrados, como costuma acontecer na autoficção. Explico: um livro (mas também um filme, uma série de TV etc., especialmente as produções do gênero documentário), ao estabelecer de antemão seu nexo indissociável com determinados fatos, pode levar o leitor a equivocadamente assumir como baliza crítica a fidelidade da narrativa a esses acontecimentos que pretende narrar.
Quando os fatos pertencem à vida pessoal do narrador, o leitor e/ ou o crítico,
caso caia na armadilha, corre o risco de neutralizar-se por total, pois nem o
critério da fidelidade à realidade é praticável, uma vez que os fatos não são
públicos nem verificáveis a priori. A sensibilidade da matéria e o
enquadramento do texto a determinados gêneros do que se convencionou chamar
literatura-verdade (o romance-reportagem, o testemunho etc.) muitas vezes são o
prego final no caixão de nossas capacidades judicativas, uma vez que, a
qualquer objeção que se faça ao livro, corre-se o risco de ouvir como resposta
que o objetivo não era fazer literatura, e sim relatar os fatos como ocorreram.
Esse é o caso, de certo modo, do livro de Helena Jobim
publicado no ano de 2000, Pressinto os anjos que me perseguem. Na obra,
narra-se o acidente automobilístico sofrido por Helena e sua lenta e dolorosa
recuperação, as dores, a depressão e os tratamentos. A narradora indica,
inclusive, seus objetivos iniciais com o livro: “o primeiro foi alertar os
jovens sobre os perigos de uma estrada, de como o corpo é frágil diante das
máquinas, e de como é terrível a dor e a limitação da liberdade; o segundo foi
mostrar, contando essa experiência que vivi, que ‘há mais coisas entre Céu e a
Terra do que sonha nossa vã filosofia’” (p. 11).²
A matéria, portanto, é extremamente pessoal e sensível,
sendo propícia ao tipo de armadilha que mencionei.
Entretanto, à guisa de cautela, é proveitoso lembrarmos que
é apenas em formas que as experiências nos são acessíveis. Assim, para nos
resguardar do ardiloso terreno a que a literatura de conteúdo pessoal pode nos
lançar, recordemos o verso de Carlos Drummond de Andrade: “O que pensas e
sentes, isso ainda não é poesia”. Não obstante toda a sinceridade do relato e
toda a pungência dos sentimentos, a concretude do objeto-texto ainda nos
inquieta enquanto forma, enquanto artefato externo ao autor e, assim,
apreciável em termos outros que não os das condutas pessoais ou da
referencialidade do que efetivamente aconteceu.
E já no prelúdio da obra de Helena Jobim (que é dividida em
duas partes, com XVII capítulos ao todo) se percebe que os mecanismos da
escrita do livro não priorizam necessariamente o relato contínuo e o realismo
rígido, como seria de esperar de um texto meramente informativo, por exemplo.
Ao narrar os momentos antes de entrar no carro que a conduziria ao acidente
fatídico, Helena cria uma atmosfera em que há uma presença opressora das forças
do destino, com uma prosa gélida como a tecer uma teia de morte e dor já
prescrita, inevitável:
“no lugar da minha morte os preparativos começam a se fazer,
o homem que vai jogar o carro contra o nosso já chamou a mulher, já fechou o
capô do carro depois de verificar a água e o óleo, limpou o para-brisa com uma
flanela amarela, volta até a casa, vai buscar alguma coisa que esqueceu,
demora, não acha e reclama, acende um cigarro, grita para a mulher, onde é que
você largou o chaveiro do carro? ela entra também na casa, e o tempo que levam
procurando as chaves e atrasando a viagem vai construindo o momento fatal
[...]” (p. 22-23).
Após o acidente, que lhe causa inumeráveis fraturas e lesões
nos nervos, Helena precisa conviver com dores insuportáveis e com a frustração
dos tratamentos nem sempre eficazes a que precisa se submeter. E assim a morte
se instaura como presença constante durante todo o livro, ameaçando ora a
deterioração física, ora o esfacelamento emocional da narradora, mas
frequentemente os dois ao mesmo tempo. A escrita, nesse caso, surge atrelada a
uma função determinada e profundamente ligada à fisicalidade da autora, que
passa a escrever apesar da dor e mesmo por causa dela, para entendê-la e
combatê-la. Há, dessa forma, um fundo de esperança que anima o ato da escrita,
que passa, assim, a ser sustentado por uma certa concepção terapêutica da
linguagem literária, uma forma de reafirmação da vida.
É essa concepção geral, proporcionada pelo acontecimento
decisivo da vida da narradora, que enforma a fatura do livro, marcada por dois
movimentos: o da presença da morte na vida, e seu inverso, o da presença da
vida na morte. As constantes passagens de um para o outro constituem o
deslocamento de que se nutre o andamento do livro, com maior ou menor sucesso
literário a depender dos episódios. Mediando essas passagens, a percepção, pela
narradora, da realidade que a cerca pré e pós-acidente (mas sempre mediada pela
visão pós-traumática a partir de onde se narra), das experiências com os
tratamentos restaurativos e da convivência com o marido, Manoel.
No primeiro movimento a que aludi, isto é, o da presença da
morte na vida, os dados externos da realidade convertem-se, muitas vezes, em
aterradores índices da frieza alheia, das coisas e das pessoas:
“Olho o consultório luxuoso, as cortinas transparentes,
sinto o ar-condicionado mais gelado. A mesa de vidro tem vários porta-retratos
de uma família sorridente. Olho o rosto [do médico], impassível.
Aparentemente esquecido de mim, da via-crúcis das minhas dores, vira-se para Neo, cordial, e convida-o para juntos tomarem um uísque ‘qualquer dia desses’” (p. 80).
O medo da não recuperação física é também o medo da perda
dos espaços, da capacidade do corpo de habitar os lugares e de dar-lhes sentido
enquanto experiência corporal. Cada acúmulo de detalhes descritivos reflete, no
estímulo distante que estes provocam, a imobilidade do corpo, causada por sua
violenta ruptura física: “Dezessete fraturas, o baço perdido, o choque
hemorrágico. O fígado e o intestino feridos. Os pulmões perfurados pelas
costelas quebradas. As moxas têm cheiro de defumador. O pequeno boxe que me
abriga fica embaçado de fumaça”. Mas logo a experiência sensorial, da frieza
inicial, passa ao sossego causado pela voz do marido: “Neo já chegou. Daqui
posso ouvir sua voz na sala de espera e seu pigarro de fumante. A voz dele
sossega o meu coração.” (p. 72). E assim a vida se faz emergir nos detalhes
sensíveis que a morte torna tão marcantes e presentes, fazendo a narrativa
pender para aquele segundo movimento que mencionei.
Neste, predomina a tentativa de escapar à dimensão física da
experiência, privilegiando a linguagem do sonho, as descrições idílicas e as
experiências de cunho sobrenatural. A narradora procura resguardar, pela
escrita e pelo recolhimento ao campo, um espaço ao máximo possível intocado
pela ação danosa do ser humano, entendida como fonte de destruição física e
mental:³
“Sítio do Poço Fundo da Maria do Carmo. Lugar sagrado, vale
fechado. No fundo dele é noite e no alto dos morros ainda é sol. Os indaiás
balançam suas palmas iluminadas. O rio margeia todos os vilarejos. E por dentro
do mato as cachoeiras ocultas de água limpa. Os pastos de capim-melado já
empendoados para abrir em maio sua camurça rosa. Micuim” (p. 99).
O motivo clássico do fugere urbem não é usado aqui
como forma de purificação moral ou social. Não há contradição irredutível entre
campo e cidade no livro, apenas a suspensão temporária dos valores e das
paisagens citadinos em decorrência do trauma, da experiência limítrofe que
esgarça a subjetividade da narradora. Foge-se da cidade, mas nem tanto, afinal,
do sítio da narradora em Poço Fundo chega-se ao Rio de Janeiro em menos de um
dia. E a própria narradora, ao final do livro, troca definitivamente as
paisagens recolhidas do seu sítio pelo cenário urbano do Recife. A naturalidade
da narradora e a poesia que enxerga também nestes espaços revelam já uma
reconciliação com a urbe e, assim, com o próprio corpo e espiritualidade,
demarcando o fim do livro:
“À noite, a favela em frente à represa tem luzes amarelas,
brancas e vermelhas. Quase digo que parece um presépio. E esses brilhos pousam
nas águas da represa, incertos.
Aqui venta muito. Mesmo com os vidros fechados, posso ouvir
o assobio desse vento passando pelas frestas das portas e das janelas. Estão
comigo meu pai e minha mãe, meu avô, o padrasto que me criou e meu irmão. E
agora também meu sobrinho João Francisco, gema de ouro que perdi tão cedo. Suas
luzes me acompanham” (p. 158).
No livro de Helena Jobim, a centralização excessiva na
experiência pessoal absorve todos os conflitos possíveis e isso tem muito em
comum com outros exemplares de autoficção. Nesse âmbito, a possível
transcendência das experiências espirituais/ sobrenaturais vividas pela
narradora (as experiências extracorpóreas, os pressentimentos, a aparição de
pessoas mortas etc.) não logra muito sucesso em alargar os pontos de vista, uma
vez que o livro não consegue dar uma forma literária a esses episódios sem cair
no clichê, fazendo muita coisa cheirar a misticismo barato.
Ainda assim, permanece a força da fantasmagoria que percorre
todo o livro, em que se sente o peso da morte em cada linha. A fidelidade débil
aos objetivos que traçara para si no início da narrativa apenas atesta a
autonomia do texto literário e do próprio sujeito enquanto se faz literatura.
Se, com isso, Helena Jobim foi sincera e fiel aos fatos, é questão que não nos
cabe.
Aparentemente esquecido de mim, da via-crúcis das minhas dores, vira-se para Neo, cordial, e convida-o para juntos tomarem um uísque ‘qualquer dia desses’” (p. 80).
1 LÍSIAS, Ricardo. A corrida. Revista Piauí, n. 65, fev. 2012. Disponível aqui. Acesso em: 20 mai. 2024.
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