Por Kit Maude
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Lydia Davis. Foto: Colin McPherson |
Seria possível dizer que a segunda
década do século XXI tem sido a da escritora estadunidense Lydia Davis. Depois da
publicação, em 2009, da reunião de seus contos, The Collected Stories of
Lydia Davis, em poucos anos passou a ser reconhecida como uma das grandes
figuras da literatura em seu país, exercendo tamanha influência que de repente
não era incomum ouvir reclamações de professores nos cursos de escrita criativa
de que todos os alunos queriam escrever parecido com ela. Mas esse sucesso não
veio do nada. Davis já era uma figura respeitada em seu meio; filha de um casal
de escritores — Robert Gorham Davis e Hope Hale Davis — e uma tradutora de
prestígio, sempre teve consigo um público, embora não muito grande, fiel para sua
obra.
As razões pelas quais um escritor
de repente se torna um fenômeno editorial enquanto outros não são muitas vezes
um mistério. Mas este não é o caso aqui. Davis especializou-se num tipo de
conto, brevíssimo, um experimento literário que costuma confundir editores e
incomodar os críticos, notoriamente desconfiados dos jogos “afrancesados” (é
impossível negar, por exemplo, que Lydia Davis foi influenciada por Maurice
Blanchot, entre outros vários outros escritores europeus). Outras razões aqui
incluem a falta crônica de reconhecimento para as mulheres e também o fato de
escrever, tal como a sua amiga Lucia Berlin, sobre temas que poderiam ser
descritos, erradamente, é claro, como “domésticos”.
Contudo, no final da segunda
metade do novo milênio, estas condições desfavoráveis mudaram substancialmente; escritoras antigas e
contemporâneas estavam sendo “descobertas” a torto e a direito e a tão temida “autoficção”, também uma categoria da escrita davisiana, estava em ascensão. O fator que provavelmente fez pender a balança a favor do ressarcimento da dívida foi apenas
o tamanho dos seus contos reunidos. Um calhamaço de textos elegantes, por geniais
que sejam, sempre corre o risco de se perder, mas publicada por uma grande
editora certamente atrai maior interesse. E neste caso, esse interesse foi
recompensado e muito mais: Davis revelou-se como uma das escritoras mais
interessantes da primeira metade do século.
Enquanto o ex-marido de Davis,
Paul Auster, obteve sucesso refazendo efetivamente os mestres europeus, dando
aos seus conceitos um acento estadunidense, a escritora combinou esse exemplo
com suas experiências como tradutora e acontecimentos de sua vida de uma forma
mais sutil e inteligente.
Usando observações agudas da vida
cotidiana, textos e diálogos entrecruzados e um uso lúdico, mas sublime, da
linguagem, ela criou uma obra rara, mas superlativa, que provavelmente só
poderia ser apreciada plenamente com a imersão total oferecida por uma edição
reunindo todos os contos que escreveu. A chave da sua escrita é a sua escolha refinadíssima
de palavras e frases e o que poderia ser chamado de uma poética do nervosismo,
alimentada pela sua apreciação das dificuldades nas relações pessoais e da
sociedade burguesa em geral.
Já consagrada, Davis deu
continuidade ao seu projeto com os contos brevíssimos nas antologias Nem vem
(2014) e Our Strangers e duas coletâneas de ensaios — One (2019)
e Two (2021) que oferecem uma aula magistral de como ler a sua própria
obra ao enfocar seu trabalho de tradução, ingrediente importante para a sua
escrita.¹
Our Strangers saiu em 2023;
o conto que dá título ao livro encapsula a essência da alienação íntima do
universo de Davis, neste caso a ideia de que pessoas que são efetivamente
estranhas para nós também podem ser “nossas” apenas por viverem em o mesmo
bairro.
Os contos revelam um
desenvolvimento fascinante da escrita de Davis em que a energia bruta dos
textos das décadas anteriores se suavizou para dar lugar a focos mais objetivos
e intelectuais, embora mantenham o seu ar lúdico e uma fixação essencialmente
ingênua com o visível. Seus personagens não estão mais procurando seu lugar no
mundo, eles o encontraram e geralmente esse lugar é upstate New York.
Eles são bem acomodados, sentimentalmente, financeiramente e profissionalmente,
e isso logicamente reduz o nível de urgência.
Também vemos Davis mais disposta
do que nunca a desvendar a maquinaria de sua escrita; vários textos corrigem ou
ampliam textos que apareceram anteriormente no livro, e até mesmo em antologias
anteriores. Outros são puramente Davis, pegando situações cotidianas e expondo
seu absurdo inerente. Claro: sempre, mas sempre, expresso em prosa original.
Davis viu algo que considera “interessante”, que neste ponto podemos tratar
como um eufemismo para “mágico”.
Notas da tradução
1 No Brasil, os leitores têm
acesso ainda ao romance O fim da história (Trad. Julián Fuks, José
Olympio, 2016) e os contos de Tipos de perturbação (Trad. Branca Vianna,
Companhia das Letras, 2013), o primeiro livro de Lydia Davis publicado por
aqui.
* Este texto é a tradução livre de “Para conocerla mejor a Lydia Davis”,
publicado aqui, na Revista Ñ.
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