Os nomoi sagaranos da minha gente

Por Eduardo Galeno

Maureen Bisilliat. Do livro A João Guimarães Rosa (1974). 


 
Sagarana está inflada de lugares da terra, Guimarães Rosa é um conjurador e organizador desses lugares. Modos, movimentos, plantas, falhas: tudo isso formalizado nesse estilo elementar que faz e refaz as histórias do livro. Sagarana nos conduz até o ponto de descuidado da leitura, à injúria que nos coloca fora-do-tempo (para usar um termo psicanalítico aqui), ou seja, maneja nossas afecções ao nascimento de um novo espaço, de modo que gozamos de uma forma de prazer textual atualizada. Sagarana — e menos ou mais toda a obra de Rosa — qualifica outro tipo de execução no plano do que seja um tropo. Ele consegue obsidiar a historicidade literária e reunir diversas linhas; aliás, perfazendo o bolsão das práticas exteriores à literatura.
 
Comum que, de certo modo, o principal no interior do bojo da literatura rosiana seja o regionalismo. Os caracteres do elemento que está em histórias como A hora e a vez de Augusto Matraga, O burrinho pedrês, Sarapalha e Corpo fechado — focando, respectivamente, no caipira, no animal, na doença (sobre-humana) e no misticismo popular —, reúnem não apenas o local, mas uma imaginação sobre o local. Quero falar que as visões de João pelo sertão mineiro são visões tipicamente formadas por uma conjuntura de eficácia simbólica. Ele acredita, por escrever, que é de fato assim (ou seu efeito se aproxima do objeto). O resumo fica sendo um uso de dialeto das regiões em que se instala a sua proposta, mas antes de tudo falas com signos arbitrários. Esse é o mote criativo.
 
Aqui, o efetivo estabelece conexões produzidas por múltiplas variedades semânticas, às vezes até mesmo numa dianteira pré-conceitual. Aí vale, irresistivelmente, a outra via da mão dupla: o leitor precisa aparecer para interpretar os causos, ver que sua significação é o outro grau. Muito do que pode vir ao ambiente da interpretação recorre, principalmente, ao intuitivo, ao pensamento pré-racional. Ora, isso faz parte da metafísica implícita nos textos de Sagarana. Sua posição é um ato forjado pela negação da megera cartesiana, indo além, como indicava Guénon, passando a considerar diferentes planejamentos de consciência, vindas de outras individuações corpóreas. Em outras palavras, a palavra fala o homem, e não o contrário. A linguagem é remetida às variantes de contenção do mundo. A linguagem é mágica.
 
A imagem e a prosódia poéticas de Rosa transitam entre as veredas das platitudes modernas e as das longitudes medievais. Elas não deixam o ritmo exangue. Longe disso: ele prefere confluir e ampliar um cenário, fazendo das tripas coração: a sua intenção é deixar vivíssima o montante do texto. Toda palavra enunciada por ele, apesar de logicamente autocrática, luzidia, brilha. Uma pseudo-abstração, um segredo explícito.
 
Minha hipótese segue assim: o acometimento em pensar a terra (o solo) é uma questão, um princípio para pensar a linguagem.
 
Não foram os fatos que compuseram a língua, porém a língua, bem relacionada ao fenômeno do pensamento — que incorre nas intuições sobre Minas Gerais —, é ela mesma profundamente feitora de composições sintagmáticas: nonada, circunstristeza, enxadachim (para citarmos Grande sertão: veredas). Línguas noutra língua.
 
Muito provavelmente, o embrião que denotou o aspecto mora na infância de Rosa em Cordisburgo, cidade afastada dos grandes centros, e posteriormente nos estudos em Belo Horizonte, depois, no fim da década de 1930, no seu trabalho como diplomata na Alemanha. Isso em si carrega um rebuliço de significantes que refratam sua cosmovisão, adentrando no terreno da criação literária. Misto do toque universal e do local, ele quebra a dualidade e monta outra expressão, mas respeitando, claro, o índice terrano de Minas. Afinal, é notável que o desejo de prosa de Guimarães seja exonerar a modernidade a cargo de um sonho heroico do nativo, por um caso da patente indígena via interpretação regionalista (através da literatura).
 
Um exemplo: na novela Minha gente, essas proposições não são escondidas. Elas precisam, aliás, ficar em demonstração em muitas oportunidades, vazando desde o embate marcado — no começo — entre Santana e o interiorano José à situação macrológica que impera no resto da história (eleição, as relações interpessoais, o cotidiano). As menções da Odisseia, do budismo, do carcará e de cantigas sertanejas fazem um ambiente que não cessa em dizer: isso é ser sagarano.
 
Eu estou pendendo a ver que as ilações universais de Rosa servem como subterfúgio para cantar a terra, terra construída a partir mesmo dessas desavenças com o fora. O estilo marcante de sua prosa condiciona, para ser lembrado, uma não-hierarquização enunciativa: os dizeres daqueles que eram analfabetos escoam justamente num espaço em que o estereótipo da revolução prosaica à Joyce configurou, unindo fala e escrita.
 
Uma revelação de um recurso bastante único dessa novela é o clímax autopoiético. O jogo de xadrez que anda pela narrativa incide diretamente nas peças de montagem dos episódios. A posição do bloco-narrador persiste num ritmo em que os personagens — do vaqueiro ao menino — funcionam em torno de um ponto objetivo: o utensílio do nomos.
 
Nomos significa partir de um princípio, partição de dada espacialidade no qual o uso é originário (ou chega perto de ser, dado que a palavra guarda muitas conotações). O que quer dizer que exista uma lei intrínseca no interior da poética rosiana. Lei que abarca a regulação de diálogos e cenas, também na construção de temas, personagens e linhas semânticas. É irreal e mentirosa a aceitação da confluência do primitivo modernismo europeu — num sentido de alimentar o sonho da quebra do apelo tradicional — em Guimarães Rosa. Ele, por sinal, antecipa a volta do autor, que fincou sua base a partir do entorno dos anos 1970: pós-modernamente falando, existe uma preocupação exagerada em relação à localidade. Rosa é um dos que enunciam uma arte pós-europeia.
 
Podemos supor, no todo, que a geração pós-oswaldiana reclina na ação de se inteirar nas contingências dos vagalumes do povo — os seus casos, as suas instituições, as suas misérias e alegrias, as suas mitologias —, mas povo inventado. É como se ele pudesse constituir um mundo à parte, refratando o corpo na ideia, a matéria no espírito. Minha gente é composta pelo substantivo que substitui ‘nós’ e ele precisa do pronome possessivo ‘minha’ para instaurar uma abertura que afirma que “as vozes da comunidade pertencem a mim e eu próprio pertenço à comunidade”. As profundas gerais — linkada às partes da Bahia e Goiás — formam um terreno profícuo que nenhum outro autor conseguiu remendar em questão de regioinventidade. A sua marca é parcialmente deslocada, mas o rastro (imagem emergida do foco acontecido em algum lugar indeterminado) inteiramente segurado e calcado pelo som das patas de um cavalo, que deixa seus sinais por onde o vaqueiro passa.

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