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Maureen Bisilliat. Do livro A João Guimarães Rosa (1974). |
Sagarana está inflada de
lugares da terra,
Guimarães Rosa é um conjurador e organizador desses lugares. Modos, movimentos,
plantas, falhas: tudo isso formalizado nesse estilo elementar que faz e refaz
as histórias do livro.
Sagarana nos conduz até o ponto de
descuidado da
leitura, à injúria que nos coloca fora-do-tempo (para usar um termo
psicanalítico aqui), ou seja, maneja nossas afecções ao nascimento de um novo
espaço, de modo que gozamos de uma forma de prazer textual atualizada.
Sagarana
— e menos ou mais toda a obra de Rosa — qualifica outro tipo de execução no
plano do que seja um
tropo. Ele consegue obsidiar a historicidade
literária e reunir diversas linhas; aliás, perfazendo o bolsão das práticas
exteriores à literatura.
Comum que, de certo modo, o principal no interior do bojo da
literatura rosiana seja o regionalismo. Os caracteres do elemento que está em
histórias como
A hora e a vez de Augusto Matraga,
O burrinho pedrês,
Sarapalha e
Corpo fechado — focando, respectivamente, no caipira, no animal, na doença
(sobre-humana) e no misticismo popular —, reúnem não apenas o local, mas uma
imaginação sobre o local. Quero falar que as visões de João pelo sertão mineiro
são visões tipicamente formadas por uma conjuntura de eficácia simbólica. Ele
acredita, por escrever, que é de fato assim (ou seu efeito se aproxima do
objeto). O resumo fica sendo um uso de dialeto das regiões em que se instala a
sua proposta, mas antes de tudo falas com signos arbitrários. Esse é o mote
criativo.
Aqui, o efetivo estabelece conexões produzidas por múltiplas
variedades semânticas, às vezes até mesmo numa dianteira pré-conceitual. Aí
vale, irresistivelmente, a outra via da mão dupla: o leitor precisa aparecer
para interpretar os causos, ver que sua significação é o outro grau. Muito do
que pode vir ao ambiente da interpretação recorre, principalmente, ao
intuitivo, ao pensamento pré-racional. Ora, isso faz parte da metafísica
implícita nos textos de
Sagarana. Sua posição é um ato forjado pela
negação da
megera cartesiana, indo além, como indicava Guénon, passando
a considerar diferentes planejamentos de consciência, vindas de outras
individuações corpóreas. Em outras palavras, a palavra fala o homem, e não o
contrário. A linguagem é remetida às variantes de contenção do mundo. A
linguagem é mágica.
A imagem e a prosódia poéticas de Rosa transitam entre as
veredas das platitudes modernas e as das longitudes medievais. Elas não deixam
o ritmo exangue. Longe disso: ele prefere confluir e ampliar um cenário,
fazendo das tripas coração: a sua intenção é deixar vivíssima o montante do
texto. Toda palavra enunciada por ele, apesar de logicamente autocrática,
luzidia, brilha. Uma pseudo-abstração, um segredo explícito.
Minha hipótese segue assim: o acometimento em pensar a terra
(o solo) é uma questão, um princípio para pensar a linguagem.
Não foram os fatos que compuseram a língua, porém a língua,
bem relacionada ao fenômeno do pensamento — que incorre nas intuições sobre
Minas Gerais —, é ela mesma profundamente feitora de composições sintagmáticas:
nonada, circunstristeza, enxadachim (para citarmos
Grande sertão: veredas).
Línguas noutra língua.
Muito provavelmente, o embrião que denotou o aspecto mora na
infância de Rosa em Cordisburgo, cidade afastada dos grandes centros, e
posteriormente nos estudos em Belo Horizonte, depois, no fim da década de 1930,
no seu trabalho como diplomata na Alemanha. Isso em si carrega um rebuliço de
significantes que refratam sua cosmovisão, adentrando no terreno da criação
literária. Misto do toque universal e do local, ele quebra a dualidade e monta outra
expressão, mas respeitando, claro, o índice terrano de Minas. Afinal, é notável que o desejo de prosa de Guimarães seja exonerar a modernidade a cargo de um sonho heroico do nativo, por um caso da patente indígena via interpretação regionalista (através da literatura).
Um exemplo: na novela
Minha gente, essas proposições não
são escondidas. Elas precisam, aliás, ficar em demonstração em muitas
oportunidades, vazando desde o embate marcado — no começo — entre Santana e o
interiorano José à situação macrológica que impera no resto da história
(eleição, as relações interpessoais, o cotidiano). As menções da
Odisseia,
do budismo, do carcará e de cantigas sertanejas fazem um ambiente que não cessa
em dizer: isso é ser sagarano.
Eu estou pendendo a ver que as ilações universais de Rosa
servem como subterfúgio para cantar a terra, terra construída a partir mesmo
dessas desavenças com o fora. O estilo marcante de sua prosa condiciona, para
ser lembrado, uma não-hierarquização enunciativa: os dizeres daqueles que eram
analfabetos escoam justamente num espaço em que o estereótipo da revolução
prosaica à Joyce configurou, unindo fala e escrita.
Uma revelação de um recurso bastante único dessa novela é o
clímax autopoiético. O jogo de xadrez que anda pela narrativa incide
diretamente nas peças de montagem dos episódios. A posição do bloco-narrador
persiste num ritmo em que os personagens — do vaqueiro ao menino — funcionam em
torno de um ponto objetivo: o utensílio do
nomos.
Nomos significa partir de um princípio, partição de
dada espacialidade no qual o uso é originário (ou chega perto de ser, dado que
a palavra guarda muitas conotações). O que quer dizer que exista uma lei
intrínseca no interior da poética rosiana. Lei que abarca a regulação de
diálogos e cenas, também na construção de temas, personagens e linhas
semânticas. É irreal e mentirosa a aceitação da confluência do primitivo
modernismo europeu — num sentido de alimentar o sonho da quebra do apelo
tradicional — em Guimarães Rosa. Ele, por sinal, antecipa a volta do
autor,
que fincou sua base a partir do entorno dos anos 1970: pós-modernamente
falando, existe uma preocupação exagerada em relação à localidade. Rosa é um
dos que enunciam uma arte pós-europeia.
Podemos supor, no todo, que a geração pós-oswaldiana reclina
na ação de se inteirar nas contingências dos vagalumes do
povo — os seus
casos, as suas instituições, as suas misérias e alegrias, as suas mitologias —,
mas povo inventado. É como se ele pudesse constituir um mundo à parte,
refratando o corpo na ideia, a matéria no espírito.
Minha gente é composta
pelo substantivo que substitui ‘nós’ e ele precisa do pronome possessivo
‘minha’ para instaurar uma abertura que afirma que “as vozes da comunidade
pertencem a mim e eu próprio pertenço à comunidade”. As profundas gerais —
linkada às partes da Bahia e Goiás — formam um terreno profícuo que nenhum
outro autor conseguiu remendar em questão de regioinventidade. A sua marca é
parcialmente deslocada, mas o rastro (imagem emergida do foco
acontecido em
algum lugar indeterminado) inteiramente segurado e calcado pelo som das
patas de um cavalo, que deixa seus sinais por onde o vaqueiro passa.
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