Maria Judite de Carvalho, a escritora das vidas silenciadas e o reconhecimento póstumo
Por Tereixa Constenla
O seu estar no mundo foi a antítese da popular
Agustina Bessa-Luís, que a elogiou como “uma flor discreta” das letras
portuguesas. Tal como recorda a neta Inês Fraga, “era daquelas pessoas que
quase pedia licença para existir, que se recusava a ocupar espaço e não queria
estar no centro das atenções, mas quando falava era penetrante e incisiva”.
Sua escrita também é assim, talhada
com preciso bisturi. Mais do que uma retratista de personagens, Maria Judite de
Carvalho escrevia como se fosse uma neurocirurgiã que mergulhasse no lugar mais
escondido dos traumas e dos desejos. Seus protagonistas são quase sempre
mulheres que se sentem velhas na casa dos trinta e que ajudam os homens que vão
abandoná-las a dar o passo sem cenas ou explicações. Vivem presas na pacata
moral da longa ditadura portuguesa, que também obrigou a escritora e o seu
marido, o também escritor Urbano Tavares Rodrigues, a uma década de exílio em
França.
São personagens com vidas “vazias
de tudo”, como descreve a protagonista do volume de contos Tanta gente,
Mariana. Inês Fraga observa que a escritora “retrata muitas mulheres
presas, vistas como seres planos e unidimensionais, atrás de suas janelas. Essa
solidão é totalmente atual. Embora hoje nos exponhamos atrás das janelas
digitais das redes sociais e não nos escondamos nas casas como as mulheres dos
anos quarenta, cinquenta e sessenta, as mulheres ainda são vistas de forma
plana. Neste jogo atual de mostrar e esconder, a solidão é um dos elementos que
não mudou.”
E é esse isolamento que, na sua
opinião, tem ligado a literatura de Maria Judite de Carvalho às novas gerações
de leitores tanto em Portugal, como nos países onde a tradução de Os armários
vazios entusiasmou os críticos. “Escrito com habilidade e astúcia”, escreve
Joyce Carol Oates em sua crítica para The New York Review, “narrado por
um observador que entra e sai do texto com o desdém de um personagem patrício
de Nabokov.”
Maria Judite de Carvalho nunca deu
entrevistas à televisão e se contam as que deu à imprensa escrita, apesar de
ter trabalhado em vários jornais como o Diário de Lisboa ou Diário de
notícias. Mais tarde, um de seus colegas se lembraria dela como alguém sobre
a qual nunca tinha ouvido falar. Seu humor mordaz só era conhecido em casa ou
em seus livros. Suas palavras, nem faladas nem escritas, nunca perdiam tempo.
Ganhou notoriedade a partir de seu
primeiro livro, o volume de contos antes referido Tanta gente, Mariana, que
foi publicado graças ao impulso do marido, que leu o manuscrito em uma viagem a
Paris e telefonou para a esposa chorando, emocionado com o poder das histórias.
Anos depois, Urbano Tavares Rodrigues lembrou, ainda com espanto, que Maria
Judite de Carvalho se considerava melhor pintora do que escritora. “Muitos
acreditam que meu avô a ofuscou e na verdade ajudou a projetá-la. Foi o seu
primeiro leitor e um grande entusiasta da sua escrita”, afirma Inês Fraga.
Famosos em Portugal são os murros
que Urbano Tavares Rodrigues deu em um crítico literário depois que este disse ser
melhor Maria Judite de Carvalho se dedicar à costura de meias e não à escrita. Ele
então o acompanhou ao hospital, temendo que as lentes dos óculos quebradas tivessem
causado algum ferimento grave e o crítico acabaria visitando-o algumas semanas
depois para agradecê-lo pelo incidente que curou parte de seus males
oftalmológicos. Reviravoltas mágicas portuguesas.
Essa opinião negativa foi
minoritária em Portugal, onde a literatura de Maria Judite de Carvalho recebeu
prêmios relevantes (Camilo Castelo Branco, Vergílio Ferreira ou o PEN Clube).
No entanto, a sua única projeção externa limitou-se então à França, onde chegou
a ser publicada pela Gallimard. Seu reconhecimento internacional é póstumo,
graças ao sucesso da tradução para o inglês de Margaret Jull Costa de Os armários
vazios, o que ajudou a ser publicada em grego, holandês, sueco, turco ou
italiano.
Este é um romance sobre traição e
segredos de família. Sua protagonista é Dora, uma viúva tão parca nas palavras
quanto nas ações. Cultiva igualmente a memória amorosa de seu marido idealista
morto e a entrega à sua única filha. Instalada no tédio, na melancolia e no
pragmatismo cotidiano, ela deixa de se preocupar consigo mesma. Está cercada de
mulheres muito diferentes dela: uma sogra extrovertida e uma filha
materialista. Três gerações que se condicionam e se observam como espelhos
daquilo que não querem ser, mas que acabam por partilhar o papel de satélite em
torno dos homens.
Ella Sher, a agente literária que
ficou fascinada pela escrita da contista e romancista portuguesa, encontra a
melhor definição do seu mundo no título de um dos seus livros, As palavras
poupadas, porque na sua obra o que mais importa é o que não é dito. Quanto
menos, melhor. Ela não escreveu do ponto de vista feminista. “Ela não era uma
rebelde como Montserrat Roig. Não era feminista nem protofeminista, retratava a
vida das mulheres subjugadas sem questioná-las, a crítica está nos nossos
olhos.” Urbano Tavares Rodrigues considerou-a uma precursora no desenho de
personagens que “são o início de uma revolta silenciosa, que antecipa as
palavras, já explícitas, das escritoras feministas que surgiriam mais tarde.”
*
Este texto é a tradução livre de “Maria Judite de Carvalho, la escritora de las
vidas caladas y el triunfo póstumo”, publicado aqui, em El país.
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