Por Alejandro Zambra
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Mario Levrero. Ramiro Alonso. |
Certa vez Mario Levrero definiu
sua obra como uma tentativa de traduzir Kafka para o espanhol. Especialmente em
seus começos esta influência é importante, e há também passagens em seus
últimos livros que lembram o Kafka dos
Diários, mas creio que, por assim
dizer, Levrero era muito mais uruguaio que kafkiano. Gosto de pensar que a
tradução fracassou e que, graças a esse fracasso, Levrero acabou escrevendo uma
obra pessoalíssima que ao longo dos anos encontrou seus leitores, não sei se numerosos,
mas certamente bastante fiéis.
Também gosto do desconcerto
provocado por
O romance luminoso. Ainda há críticos que advertem “isso
não é um romance”, como se sentissem obrigados a informar sobre o limite de
garantia estatal para depósitos. Ademais, o próprio Levrero disse nas primeiras
páginas do livro: “Um romance, atualmente, é qualquer coisa que se coloque
entre capa e contracapa.” Levrero se mostra desejoso ou então resignado a
escrever um romance (ou o que seja) sobre o desejo de escrever um romance.
Em
El discurso vacío [O
discurso vazio], um breve livro de 1996, faz-se visível a rota que conduzirá
até
O romance luminoso (uma rota que na verdade começa dez anos antes,
com
Diario de um canalla [Diário de um canalha], um texto que segundo
Elvio Gandolfo é o ponto de virada de Levrero). A história de
El discurso
vacío é ínfima: já que não conseguiu mudar a vida, Levrero tenciona —
modestamente — mudar a letra, motivo que o leva a preencher páginas procurando
“reformar” sua prosa manuscrita.
Esta “autoterapia grafológica” não
está relacionada, ao que parece, a um desafio literário: o livro não pretende
concretizar o livro sobre nada de Flaubert, nem reivindicar o método
surrealista, mas simplesmente investigar a relação entre letra e personalidade.
“Devo permitir que meu eu se alargue por meio do influxo mágico da grafologia”,
diz Levrero, e são sérias, divertidas e abundantes as tentativas caligráficas
incluídas no livro: “B B B B B B B B B B B B Bem, outra vez havia esquecido a
maneira de escrever o B. O problema é que esqueço por onde devo começar a
traçá-lo, e se não sai de forma espontânea, pensando é que não consigo. Há um
truque em alguma parte, e ainda não o descobri.”
O autor escreve “Usted” [Você]
apenas porque precisa praticar o U maiúsculo e aprofunda sem medo na
superfície, consciente de quem sabe inaugurar, como diz, “uma nova época do
tédio como corrente literária”. Para além dos exercícios, porém, o livro inclui
fragmentos de um diário no qual o autor registra a vida cotidiana com zelo
microscópico. Levrero olha-se no espelho com frequência, como revela esta
passagem digna de um relato sobre desordens alimentares: “Não odiava esse corpo
gordo e disforme pelo que era, e sim que meu corpo houvesse se transformado
precisamente nisso porque eu já o odiava previamente.”
Mario Levrero não escrevia para
impressionar os estudantes de teoria literária ou para deixar os críticos
desconsertados, mas sim para cumprir mandamentos internos e caprichosos.
Enquanto seus contemporâneos seguiam validando versões rotineiras do grande
romance latino-americano, ele construía uma literatura nova, irredutível aos
padrões de leitura então vigentes; uma obra cética em face dos rumos do boom e
adversa, em geral, a toda pressão normalizadora, pois Levrero não queria fundar
ou confirmar ou refutar mitologias: queria escrever somente, solitariamente.
Março, 2009
* Tradução de Guilherme Mazzafera. O
texto “Kafka, el uruguayo” encontra-se compilado no volume No leer (Editorial
Anagrama, 2018).
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