Dorian Gray: a representação do sujeito contemporâneo
Por Herasmo Braga
Sem ser generalista ou peremptório,
mas o reconhecemos que um dos traços fundamentais, marcadores dos grandes
textos literários se encontra na perenidade e na constante atualização da obra
diante de diversos contextos da contemporaneidade. Esses aspectos se fazem
presentes, por exemplo, em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.
Impressiona como a leitura do sujeito, ao tempo da escrita, final do século XIX,
diz muito do sujeito do século XXI. E isso não apenas nos defeitos e dilemas,
mas sobretudo no modus pensandi que perpetua na contemporaneidade. O ser
hodierno de Dorian expressa deveras o da atualidade.
Ao se remeter ao diálogo traçado em
um momento do romance entre Dorian e o Lord Henry, enuncia-se o sentimento
típico de hoje: “‘Ser bom é estar em harmonia com o nosso eu’”, ele respondeu,
tocando a haste fina de seu copo com os dedos pálidos, pontudos. ‘A discórdia é
sermos forçados a estar em harmonia com outros. A nossa própria vida — é o que
importa’”. Esse caráter individualista de autossuficiência constitui um mantra
ou mesmo uma verdade que, desde o surgimento das concepções modernas, impõe ou
mesmo estabelece. Todo sujeito moderno é defensor da ideia de que toda
construção interna se deveu apenas a ele e, portanto, os outros mais o
atrapalharam na sua constituição do que, de repente, de fato, auxiliaram.
Sob a égide de tamanha devoção e
exclusividade de si, os sujeitos contemporâneos se projetam como modelos e
estilos a serem copiados e reverenciados pelos demais. A mesma postura também é
vista em Dorian Gray, como se pode atestar noutra passagem: “Na verdade, havia
muitos, em especial entre os jovens, que viam — ou imaginavam ver — em Dorian
Gray a materialização de um personagem com que muitas vezes sonharam nos dias
de Eton ou de Oxford, um personagem que combinava algo da cultura real do
estudioso com toda a graça, distinção e os modos perfeitos de um cidadão do
mundo. Para eles, Dorian parecia pertencer ao grupo dos que Dante descreve como
tendo procurado ‘tornar-se perfeitos pela adoração da beleza’”. Exaltar as
qualidades próprias e tê-las como referências são pequenas coisas aguardadas
pelos hedonistas de hoje, que se promovem com auxílio das plataformas digitais
por meio das redes sociais. Adita-se a essa contemplação de si como símbolo de
algo promissor, tem-se a desenfreada necessidade de sempre expor algo,
manifestar-se sobre qualquer questão por mais desconhecimento que se tenha. De
preferência, polemizar para atrair mais seguidores cultuadores da autoimagem
imaginada de si.
Destarte, todas as coisas devem
atuar em prol de elevar cada vez mais esses sujeitos, pois, assim como para
Dorian: “a própria Vida era a primeira, a maior das artes, e para ela todas as
demais artes não pareciam ser mais que preparo”. Destaca-se nesse traço que,
apesar da busca idealizada de si, tudo deve girar para fortalecer os traços
individualistas e das exigências do agora, e, por enquanto, ainda não posso
manter a eterna juventude no ponto biológico, faço-a valer no comportamento e
nos adereços agregados ao corpo que transformam essa jovialidade diante da vida
ser real. Tudo serão, portanto, quando bem sucedidas, ações condizentes ao
devido preparo, que se atinge a permanência da mocidade, e quando ocorrem
intempéries, elas servirão para o estabelecimento da aurora do ser. Na
inocência do comportamento, não há mínima percepção que a exclusividade, o
diferencial, o destaque, não são direcionados apenas para um ou alguns, mas
para muitos. Esse processo moderno da individualidade com ascensões, e ser
tomado como modelo, é propagado para todos. Assim, o imaginado para si nada
mais é do que o padronizado para muitos. Desenvolve-se uma cultura homogênea
com a consequente perda de singularidades. Desse modo, ocorre o aparente
paradoxo: todos os diferentes acabam sendo os mesmos iguais.
Esse despertar alienante, em que
inúmeros se submetem espontaneamente no tempo vigente, ocorre por meio de
narrativas, como essa trajetória do protagonista Dorian Gray. Pela leitura e o
entendimento da personagem, reconhece-se que acentuada individualidade promove
de fato a perda de singularidades. O indivíduo que se imagina liberto e é
contra qualquer possibilidade de cercear a mínima liberdade é exatamente o ser
facilmente controlado e manipulável. Dessarte, supõe-se senhor de si, como Gray
assim se considerava; na prática, acaba sendo os manipulados por Dorian Gray,
tornando-se agentes da própria destruição e da perda completa de si. Esse
sentido evidencia-se no seguinte trecho da obra: “Quanto a ser envenenado por
um livro, não existe nada disso. A arte não tem influência sobre a ação. Ela
aniquila o desejo de agir. Ela é soberbamente estéril. Os livros que o mundo
chama de imorais são livros que mostram ao mundo a sua própria vergonha”.
Essas ideias poderiam ser analisadas
sob dois contextos aparentemente distintos. O primeiro contexto da obra destaca
a produção escrita, que inflama os sujeitos à intensidade da vida, é
realizadora de aprendizagens por despertar nos sujeitos vivências sem
fronteiras que são desestimuladas por obras doutrinadoras de padronizações
morais. O segundo contexto, como da própria realização literária de Oscar
Wilde, pode expressar as fissuras propagadas pelos meios de condução de uma
vida moderna ou pós-moderna na plenitude. Denuncia-se, portanto, as ilusões e
os estabelecimento de mesmidade superficial para todos.
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