Cinco poemas do romantismo inglês — pela pena dos seus mais celebrados artífices¹
Por Pedro Belo Clara
GEADA À MEIA-NOITE2
(S. T. Coleridge, 1772 - 1834)
A Geada executa o seu secreto
ministério,
Sem auxílio de qualquer vento. O grito da corujinha
Alto soa — e, escutem!, de novo, tão alto quanto antes.
Os hóspedes da minha cottage, já em repouso,
Deixaram-me à mercê dessa solidão que propicia
Abstrusos devaneios: isto exceptuando, a meu lado
Meu filho em seu berço tranquilo adormece.
Tão sereno! De modo tal que perturba
E vexa a meditação com o seu invulgar
E completo silêncio. Mar, colina e madeira,
Esta vila populosa! Mar, colina e madeira,
Com todos os incontáveis eventos da existência,
Inaudíveis como sonhos! A fina chama azul
Do fogo ardendo lento permanece e não se agita;
Apenas essa película, palpitando na grade,
Palpita ainda, o único elemento
inquieto.
Creio que os seus movimentos, nesta quietude natural,
Concedem-lhe obscuras simpatias para comigo, que vivo,
Tornando-a uma forma digna de companhia,
Cuja insignificância estremece e inquieta o Espírito ocioso
Pelos próprios humores interpretando, todo o lugar onde
Eco ou espelho a si mesmo se busca,
E do Pensamento faz um joguete.
Mas,
oh!, quantas vezes,
Incontáveis vezes, no colégio, com ânimo de crente,
Pressagioso, dirigi o olhar às grades da lareira,
Observando esse estranho palpitante! e vezes tantas
De pálpebras abertas sonhei o bem-amado
Lugar onde nasci, e a velha torre da igreja,
Cujos sinos, a única música dos pobres, repicavam
Do amanhecer ao sol se pôr, em todo o excitante dia de Feira,
Tão docemente, que desassossegam e assombram
Com um aprazimento selvagem, tombando no meu ouvido,
Articulando, quase decerto, sons de coisas por nascer!
Então contemplava, até as cenas apaziguadoras que sonhava
Embalarem-me o sono, e o sono prolongava-me os sonhos!
E assim cismava a inteira manhã seguinte,
Intimidado pelo rosto severo do perceptor, o olhar preso,
Num estudar simulado, ao livro de natação:
Salvo se a porta abrisse pela metade, e um vislumbre apressado
Arrebatasse, ainda meu coração pularia
Na esperança de ver o semblante do estranho,
Aldeão, uma tia, ou irmã muito amada,
O meu parceiro de tropelias quando usávamos roupas iguais!
Criança
amada, dormindo no berço a meu lado,
Cuja branda respiração, escutada na profunda calmaria,
Preenche os vazios intercalados,
As momentâneas pausas do pensar!
Meu filho, tão belo! Exulta o meu coração
Por terna alegria, assim observando-te
E pensando que mais profunda será a tua ciência,
Aprendida em lugares distantes! Pois fui eu criado
Na grande cidade, fechado em claustros obscuros,
E vi beleza nenhuma, somente estrelas e céu.
Mas tu, filho meu!, vaguearás como as brisas
Por lagos e margens arenosas, debaixo de penhascos
De montanhas ancestrais, e debaixo das nuvens,
Que em sua corpulência reflectem os lagos e as margens
E os penhascos das montanhas: assim verás e escutarás
As adoráveis formas e os sons inteligíveis
Daquela linguagem eterna, que o teu Deus
Pronuncia, Ele que do eterno ensina
Em tudo Eu estou, todas as coisas estão em Mim.
O grande Professor universal! Ele moldará
O teu espírito, e pela dádiva fará o pedido acontecer.
Assim,
todas as estações ser-te-ão doces,
Quer o verão vista a terra imensa
Dum verdor sem fim, ou o pisco poise e cante,
Entre tufos de neve, num ramo despido
Duma macieira coberta de musgo, enquanto o fumo sai
Dum telhado de palha, no degelo do sol; quer a queda de gotas
Do beiral se escute apenas no transe da pequena explosão,
Ou o secreto ministério da geada
Delas criar silentes pingentes de gelo,
Imóveis cintilando à quieta luz da Lua.
PASSAVA SÓ COMO UMA NÉVOA3
(William Wordsworth, 1770 - 1850)
Passava só como uma névoa
Que sonda montes e valados,
Quando, oh, de súbito uma révoa,
Um mar de Narcisos dourados;
Ao pé do lago, da ramagem,
Vibrando, dançando na aragem.
Pareciam estrelas em revista
Que piscam lá na láctea via,
Em renques a perder de vista
Orlando a margem da baía:
Dez mil cabeças vi ali,
Meneando-se num frenesi.
Dançava a água, lento par,
Tentando emular a alegria:
Não iria um poeta exultar
Com tão jucunda companhia?
Olhei — e olhei — mas sem noção
De quão preciosa era a visão:
Pois quando num torpor me deito,
Ocioso ou em contemplação,
Eis que me piscam no meu peito
Que é a bênção da solidão,
E a alma me enchem de sorrisos,
E dentro danço com Narcisos.
FORMOSA, CAMINHA4
(Lord Byron, 1788 - 1824)
Formosa, caminha qual noite
cintilante,
Sem nuvem proibindo o céu de brilhar;
E todo o louvor de coisa negra e fulgurante
Reunido em sua figura, em seu olhar;
Assim amadurado nessa luz de terno semblante,
Que os céus ao berrante dia terão de negar.
Uma sombra a mais, um clarão a
subtrair,
Teriam essa graça sem nome diminuído,
Ondulando em suas tranças, cor de corvo a reluzir,
Ou iluminando-se, suave, sobre o rosto caído;
Onde pensamentos serenos e doces podem exprimir
Quão seu lugar de abrigo é puro e querido.
Nas maçãs do rosto, na sobrancelha
desenhada,
Tão suave, tranquilo, ainda que eloquente,
O sorriso que cativa, a matiz abrilhantada,
Dizendo de dias passados numa bondade contente,
Uma mente com tudo e todos pacificada,
Um coração cujo amor é inocente.
ADONAIS (I)5
(Percy Shelley, 1792 - 1822)
É por Adonais que choro – ele está
morto!
Chorai por Adonais, ainda que as lágrimas
não libertem do gelo essa cabeça amada!
E tu, Hora tão triste, a única escolhida
para nela chorarmos, desperta as tuas obscuras irmãs,
ensina-lhes essa dor e diz: “Comigo
morreu Adonais, e até o Futuro
esquecer o Passado, o seu destino e glória
serão um eco e uma luz para sempre.”
A BELEZA EM CADA SER É UMA ALEGRIA
ETERNA
(John Keats, 1795 - 1821)
A beleza em cada ser é uma alegria
eterna:
o seu encanto torna-se maior e nunca se há-de perder
no nada; reservar-nos-á ainda um refúgio
de paz, onde adormeceremos habitados por sonhos
suaves, a felicidade do nosso corpo, uma respiração branda.
Comecemos, assim, a tecer em cada manhã
uma grinalda de flores para nos unirmos à terra,
apesar do desalento, da ausência daqueles
cuja nobreza amávamos, dos dias cheios de escuridão,
de todos os caminhos insalubres e misteriosos,
abertos para os nossos anseios; sim, apesar de tudo,
uma forma de beleza afasta o sudário
das nossas almas sombrias. Assim é o sol, a lua,
as antigas ou novas árvores cuja bênção faz germinar
a sombra sobre os humildes rebanhos; os narcisos
e o mundo verdejante que os cerca; e os límpidos rios
que para si criam um dossel de frescura
durante as estações ardentes; os silvados do bosque
enriquecidos pelo belo, nascente esplendor das rosas;
e também a magnificência do destino
que imaginamos para os mortos poderosos;
as histórias encantadoras que lemos ou escutamos:
fonte inesgotável duma imortal bebida,
que vem do limiar do céu e para nós se derrama.
E não é apenas por algumas horas
passageiras
que nos abandonamos a estas essências; assim como as árvores
murmurando à volta dum templo logo se tornam
tão amadas como o próprio templo, também a lua
e a paixão da poesia, glórias infinitas, tantas vezes
nos assombram, até serem uma luz vivificadora
da alma, e com tanta firmeza nos cingem,
para que, esteja a brilhar o sol ou se apaguem os céus,
elas existam eternamente em nós, ou morreremos.
Notas
1 Um movimento artístico e
intelectual que dominou a Europa nos inícios do século XIX. Antes, porém, já se
identificavam tendências que denunciavam o aparecimento duma nova corrente. No
que à literatura diz respeito, um dos mais destacados desses, assim designados,
pré-românticos foi William Blake. Em 1798, Coleridge e Wordsworth editam Baladas
Líricas. Dois anos depois, o prefácio de Wordsworth a nova edição dessa
obra marca, “oficialmente”, o início do movimento. Terá surgido como uma
resposta à Revolução Industrial, em parte, e ao uso extremo da razão, um legado
do Iluminismo — bem como o seu gosto pelo clássico, agora trocado pelo medieval.
Propunha, assim, e entre outras coisas, a elevação do indivíduo; a introdução
do subjectivismo; o exacerbar das emoções; o regresso a um passado simples e
pueril, ainda que glorioso; e a projecção sentimental do eu-poético na natureza
circundante. Mais tarde, na segunda geração do movimento, onde se destacaram os
restantes poetas aqui apresentados, acontece um esbatimento do deslumbre
constante que caracterizou a primeira fase do movimento, mais dada a fantasias
e floreados, permitindo agora um encontro mais autêntico com a realidade. São
também introduzidos o pessimismo e uma certa atracção/gosto pela morte. Dar-se-ia
ainda o aparecimento duma terceira geração, até o Realismo se instaurar como
movimento de ruptura e, assim, dominar o campo do pensamento e da arte.
2 Versão de Pedro Belo Clara a
partir do original em Coleridge (Evertman’s Librabry, 1997).
3 Tradução de Daniel Jonas em William
Wordsworth – Poemas Escolhidos (Assírio & Alvim, Abril de 2018).
4 Versão de Pedro Belo Clara a
partir do original em Byron (Evertman’s Librabry, 1994,17ª reimpressão).
5 Este poema e o seguinte, de John
Keats, são traduções de Fernando Guimarães em Poesia Romântica Inglesa –
Byron, Shelley, Keats (Relógio D’Água, Fevereiro de 2010, 3ª edição,
revista e aumentada).
Breve excerto dum longíssimo
poema, é a obra que Shelley compôs em memória de Keats, cuja vida fora ceifada
tão precocemente. Veja-se como o título invoca a designação Adonai, um
nome para Deus em hebraico, muito presente na Bíblia. A este parece juntar-se,
pelo génio do poeta, Adonis, figura mitológica grega que representa o
ideal de beleza masculino.
Joseph Arthur Palliser Severn. Landscape with Distant Mountains, 1899. |
(S. T. Coleridge, 1772 - 1834)
Sem auxílio de qualquer vento. O grito da corujinha
Alto soa — e, escutem!, de novo, tão alto quanto antes.
Os hóspedes da minha cottage, já em repouso,
Deixaram-me à mercê dessa solidão que propicia
Abstrusos devaneios: isto exceptuando, a meu lado
Meu filho em seu berço tranquilo adormece.
Tão sereno! De modo tal que perturba
E vexa a meditação com o seu invulgar
E completo silêncio. Mar, colina e madeira,
Esta vila populosa! Mar, colina e madeira,
Com todos os incontáveis eventos da existência,
Inaudíveis como sonhos! A fina chama azul
Do fogo ardendo lento permanece e não se agita;
Apenas essa película, palpitando na grade,
Creio que os seus movimentos, nesta quietude natural,
Concedem-lhe obscuras simpatias para comigo, que vivo,
Tornando-a uma forma digna de companhia,
Cuja insignificância estremece e inquieta o Espírito ocioso
Pelos próprios humores interpretando, todo o lugar onde
Eco ou espelho a si mesmo se busca,
E do Pensamento faz um joguete.
Incontáveis vezes, no colégio, com ânimo de crente,
Pressagioso, dirigi o olhar às grades da lareira,
Observando esse estranho palpitante! e vezes tantas
De pálpebras abertas sonhei o bem-amado
Lugar onde nasci, e a velha torre da igreja,
Cujos sinos, a única música dos pobres, repicavam
Do amanhecer ao sol se pôr, em todo o excitante dia de Feira,
Tão docemente, que desassossegam e assombram
Com um aprazimento selvagem, tombando no meu ouvido,
Articulando, quase decerto, sons de coisas por nascer!
Então contemplava, até as cenas apaziguadoras que sonhava
Embalarem-me o sono, e o sono prolongava-me os sonhos!
E assim cismava a inteira manhã seguinte,
Intimidado pelo rosto severo do perceptor, o olhar preso,
Num estudar simulado, ao livro de natação:
Salvo se a porta abrisse pela metade, e um vislumbre apressado
Arrebatasse, ainda meu coração pularia
Na esperança de ver o semblante do estranho,
Aldeão, uma tia, ou irmã muito amada,
O meu parceiro de tropelias quando usávamos roupas iguais!
Cuja branda respiração, escutada na profunda calmaria,
Preenche os vazios intercalados,
As momentâneas pausas do pensar!
Meu filho, tão belo! Exulta o meu coração
Por terna alegria, assim observando-te
E pensando que mais profunda será a tua ciência,
Aprendida em lugares distantes! Pois fui eu criado
Na grande cidade, fechado em claustros obscuros,
E vi beleza nenhuma, somente estrelas e céu.
Mas tu, filho meu!, vaguearás como as brisas
Por lagos e margens arenosas, debaixo de penhascos
De montanhas ancestrais, e debaixo das nuvens,
Que em sua corpulência reflectem os lagos e as margens
E os penhascos das montanhas: assim verás e escutarás
As adoráveis formas e os sons inteligíveis
Daquela linguagem eterna, que o teu Deus
Pronuncia, Ele que do eterno ensina
Em tudo Eu estou, todas as coisas estão em Mim.
O grande Professor universal! Ele moldará
O teu espírito, e pela dádiva fará o pedido acontecer.
Quer o verão vista a terra imensa
Dum verdor sem fim, ou o pisco poise e cante,
Entre tufos de neve, num ramo despido
Duma macieira coberta de musgo, enquanto o fumo sai
Dum telhado de palha, no degelo do sol; quer a queda de gotas
Do beiral se escute apenas no transe da pequena explosão,
Ou o secreto ministério da geada
Delas criar silentes pingentes de gelo,
Imóveis cintilando à quieta luz da Lua.
(William Wordsworth, 1770 - 1850)
Que sonda montes e valados,
Quando, oh, de súbito uma révoa,
Um mar de Narcisos dourados;
Ao pé do lago, da ramagem,
Vibrando, dançando na aragem.
Que piscam lá na láctea via,
Em renques a perder de vista
Orlando a margem da baía:
Dez mil cabeças vi ali,
Meneando-se num frenesi.
Tentando emular a alegria:
Não iria um poeta exultar
Com tão jucunda companhia?
Olhei — e olhei — mas sem noção
De quão preciosa era a visão:
Ocioso ou em contemplação,
Eis que me piscam no meu peito
Que é a bênção da solidão,
E a alma me enchem de sorrisos,
E dentro danço com Narcisos.
(Lord Byron, 1788 - 1824)
Sem nuvem proibindo o céu de brilhar;
E todo o louvor de coisa negra e fulgurante
Reunido em sua figura, em seu olhar;
Assim amadurado nessa luz de terno semblante,
Que os céus ao berrante dia terão de negar.
Teriam essa graça sem nome diminuído,
Ondulando em suas tranças, cor de corvo a reluzir,
Ou iluminando-se, suave, sobre o rosto caído;
Onde pensamentos serenos e doces podem exprimir
Quão seu lugar de abrigo é puro e querido.
Tão suave, tranquilo, ainda que eloquente,
O sorriso que cativa, a matiz abrilhantada,
Dizendo de dias passados numa bondade contente,
Uma mente com tudo e todos pacificada,
Um coração cujo amor é inocente.
Chorai por Adonais, ainda que as lágrimas
não libertem do gelo essa cabeça amada!
E tu, Hora tão triste, a única escolhida
para nela chorarmos, desperta as tuas obscuras irmãs,
ensina-lhes essa dor e diz: “Comigo
morreu Adonais, e até o Futuro
esquecer o Passado, o seu destino e glória
serão um eco e uma luz para sempre.”
(John Keats, 1795 - 1821)
o seu encanto torna-se maior e nunca se há-de perder
no nada; reservar-nos-á ainda um refúgio
de paz, onde adormeceremos habitados por sonhos
suaves, a felicidade do nosso corpo, uma respiração branda.
Comecemos, assim, a tecer em cada manhã
uma grinalda de flores para nos unirmos à terra,
apesar do desalento, da ausência daqueles
cuja nobreza amávamos, dos dias cheios de escuridão,
de todos os caminhos insalubres e misteriosos,
abertos para os nossos anseios; sim, apesar de tudo,
uma forma de beleza afasta o sudário
das nossas almas sombrias. Assim é o sol, a lua,
as antigas ou novas árvores cuja bênção faz germinar
a sombra sobre os humildes rebanhos; os narcisos
e o mundo verdejante que os cerca; e os límpidos rios
que para si criam um dossel de frescura
durante as estações ardentes; os silvados do bosque
enriquecidos pelo belo, nascente esplendor das rosas;
e também a magnificência do destino
que imaginamos para os mortos poderosos;
as histórias encantadoras que lemos ou escutamos:
fonte inesgotável duma imortal bebida,
que vem do limiar do céu e para nós se derrama.
que nos abandonamos a estas essências; assim como as árvores
murmurando à volta dum templo logo se tornam
tão amadas como o próprio templo, também a lua
e a paixão da poesia, glórias infinitas, tantas vezes
nos assombram, até serem uma luz vivificadora
da alma, e com tanta firmeza nos cingem,
para que, esteja a brilhar o sol ou se apaguem os céus,
elas existam eternamente em nós, ou morreremos.
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