Bambino a Roma, de Chico Buarque

Por Pedro Fernandes
 
O romance de Chico Buarque publicado no ano de celebração do seu octogésimo aniversário é um retorno ao tipo memorialístico iniciado com O irmão alemão, livro no qual recontou os bastidores de descoberta e procura de Sergio Günther, o filho nascido do enlace amoroso de Sérgio Buarque de Holanda com Anne Ernst. Em Bambino a Roma é outra a busca do escritor, por um certo menino que existiu durante os dois anos em que o pai se mudou com a família para ser professor de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma.
 
O interesse por uma pequena fração da infância é uma peculiaridade dessas memórias ficcionalizadas, afinal, o mais comum entre os escritores que se propuseram cumprir esse itinerário é o desenvolvimento do amplo painel da primeira fase da nossa existência, atendendo o desejo, sempre idílico, que se forma em certa passagem da vida. E essa escolha de Chico Buarque é, como qualquer uma, motivo para algumas questões. Perguntamo-nos por que, especificamente, esse e não outro recorte temporal ou ainda qual interesse em recuperar seus episódios fundadores. As respostas para essas interrogações podem variar de um leitor para outro ou mesmo de uma leitura para outra.
 
O primeiro entendimento é um tanto óbvio, mas nem por isso dispensável. A memória se ocupa dos episódios marcantes, daqueles que nos acompanham a vida inteira e interagem com nossas circunstâncias no presente e recuperá-los é, simultaneamente, fixá-los na nossa história e uma maneira de compreender o vivido, ainda que o memorialista se apresente, como é o caso do autor de Bambino a Roma, liberto de quaisquer pretensões que não as de se deixar conduzir pelo afloramento das situações reabilitadas no estratagema do fluxo da atividade mnemônica, sempre ancorada entre os atos de recriar e inventar, ou do exercício de reencontro com o passado pela geografia revisitada no presente, como demonstra os quatro últimos capítulos do livro.
 
No âmbito de uma vida incomum — devido a posição ocupada essencialmente pela figura paterna que neste romance aparece sombreado pela imagem luminosa e recorrente da mãe — talvez seja difícil precisar o mais relevante, mesmo que a escolha, para não cair em certo tom de superioridade, seja por esgravatar o trivial, o que pode ser comum para outros. Ao dedicar atenção aos anos de estadia em Roma, o escritor consegue equilibrar o inusual, consequente da vida incomum, com o mais corriqueiro. Por exemplo, todo prestígio e a ambiência intelectual, de alguma maneira partícipes da consciência do narrador acerca do seu lugar, o do distinto filho da família Buarque de Holanda, acentuados em seu país de origem, são reduzidos à condição comum no estrangeiro; isso favorece ao próprio memorialista na reconstituição do mundo despretensioso e livre da infância, os tons com os quais se organizam Bambino a Roma.
 
A contínua troca de cozinheiras, certamente mão-de-obra barata vinda da Sardenha e num país em que as dolorosas cicatrizes do longo inferno que foi a Segunda Guerra Mundial, patente na quantidade enorme de homens mutilados ou de mulheres vestidas de pesado luto, a casa simples e antiga, húmida, habitada de mobília pesada e sem grandes luxos, os contrastes em relação aos colegas de escola e algumas das famílias que o transeunte brasiliano visita, na certa um produto exótico aos olhos estrangeiros, são alguns dos elementos que contribuem para a nova disposição da família e seu protagonista.
 
A estadia numa outra cultura e língua, que no caso de Chico Buarque, se mostra duplamente complexa, porque a formação escolar não é dada nem em brasileiro e nem em italiano, mas em inglês e num convívio extremamente diverso — com professores irlandeses ou estadunidenses e colegas de turma dessas nacionalidades, mas também ingleses, e japoneses, e todos em passagem — é talvez o corte mais marcante para o menino que parece adotar como estratégia de sobrevivência certa expressão da malandragem. Nem é do exotismo que o pequeno tira proveito, mas da sua qualidade de sempre disponível ao convívio, facilitado pelo distanciamento da ordem familiar: o pai encontra-se imerso dia e noite na sua máquina de escrever, a mãe desdobra-se no andamento da casa e os irmãos mais velhos possuem cada um a sua vida própria.
 
O protagonismo desse bambino se completa com o presente de uma bicicleta niquelada. A partir desse acontecimento podemos vê-lo se deslocar com facilidade entre as aventuras por uma Roma simultaneamente bucólica e perigosa. O transporte se torna o elemento que serve de guia não apenas para os itinerários geográficos do passado, mas, no presente, é o instrumento que funciona no ordenamento dos acontecimentos reinventados e que formam parte do fio narrativo. É a madeleine, com um diferencial de Proust, porque este é um objeto avesso à memória sedentária. E isso diz muito do próprio estilo adotado por Chico Buarque neste romance: ao olhar contemplativo impõe-se o registro da ação e esta, por sua vez, imprime rapidez a um relato que manifesta integralmente um eu voltado para o exterior e não para o interior, recuperando certo tom de crônica tão recorrente na literatura brasileira.
 
Os registros dos dois anos da infância passados em Roma são continuamente mediados pelos acontecimentos históricos, capturados em sua grande parte pelos jornais, o rádio e algum fiapo de diálogo dos adultos. Também nisso, Chico Buarque testemunhou alguns acontecimentos dentre os mais marcantes na história europeia, italiana e brasileira. São episódios como: a morte de líder soviético Josef Stálin; os últimos anos do papado de Pio XII; o caso Wilma Montese, a jovem de 21 anos encontrada morta numa praia de Ostia; a Copa do Mundo de 1954, a primeira com cobertura pela televisão; e o suicídio de Getúlio Vargas que tirou o país do anonimato para os italianos. Mas toda aura da história é despida por um ponto de vista que, embora deslocado do tempo dos acontecimentos, é a lente com a qual acessa seu conteúdo revelando certo aspecto irrisório, circunstância entre circunstâncias, como quem primeiro experimenta o acontecimento que só mais tarde fixa-se como fato grandiloquente no tempo histórico.
 
O narrador de Bambino a Roma, indiretamente revelado em certa passagem pela mãe como um “contador de vantagens” — depois de lhe dizer que dançou o hit do momento “Hi-Lili, Hi-Lo” com a célebre atriz de cinema Alida Valli, mãe de Carlo De Mejo, colega de turma de Chico Buarque nessa época e quem o convida para um dia dançante em sua casa —, é um amante da anedota. Mesmo os recortes históricos, outra linha que organiza os acontecimentos da narração, aparecem envoltos nesse tom, totalmente livre do efeito documental, como é o caso do episódio de explosão do cadáver de Pio XII na cerimônia de seu sepultamento acontecida daí a três anos depois de quando participa com a família de uma visita aberta ao papa no Vaticano.
 
Por isso, pode-se ler o romance como um breve anedotário. Dissemos que o bambino revelado nessas páginas reconstitui parte de suas feições no modelo do malandro, logo, a anedota é o modelo discursivo que funciona de maneira mais adequada para o relato. E sobram as situações que justificam essa leitura: o episódio com Alida Valli é apenas um deles e a este podemos acrescentar as constâncias de aparecer pelado propositalmente para as empregadas e até excitado para a professora de italiano do pai; as estratégias para driblar e aborrecimento da vida escolar; as artimanhas de se comunicar com os colegas estrangeiros pelo uso da linguagem vulgar; ou a espionagem da irmã nua pela fechadura do quarto.




O tom anedótico contribui para a leveza, dissolvendo aquelas circunstâncias que poderiam cair no pieguismo melodramático facilmente encontrado nas centenas de obras de corte autobiográfico ou autoficcional neste Século de Narciso. É exemplo disso o relato, disposto quase à entrada da narrativa, da bolinagem sexual praticada pelo professor irlandês mister Welsh:
 
“Foi na escola americana, em Roma, que mister Welsh passou a mão na minha bunda. Ou melhor, em bom inglês, mister Welsh usava passar a mão na minha bunda, no tempo em que eu ainda vacilava no emprego do passado contínuo. Eu tinha uns nove anos e estranhava um pouco aquele cacoete do professor, mas em todo caso não me opunha a que ele passasse a mão a gosto. Não foi logo de primeira, mas na segunda ou terceira vez que me debrucei à sua mesa ele inventou de me bolinar por dentro da calça com a mão esquerda, enquanto com a direita corrigia a lápis minha redação. Apesar das minhas pequenas faltas gramaticais, ele apreciava bastante os meus textos, que nada deviam aos dos meus colegas anglófonos de nascimento. Eu era o único latino da classe, onde predominavam alunos americanos com um ou outro inglês, sendo irlandês o próprio Welsh. Em algum momento, porém, começou a me incomodar aquela mão suada descendo mais e mais pelo meu rego. Aquela umidade de repente me pareceu pecaminosa, tanto quanto o seu modo dissimulado de agir por trás da mesa, fora da vista dos alunos que faziam o dever em suas carteiras. Um dia decidi deixá-lo de procurá-lo, acreditando que a qualquer momento ele me chamaria de volta. Mas não, mister Welsh agora passava os ditados sem me olhar na cara, às vezes pulava meu nome nas chamadas de presença e atendia demoradamente outros alunos à sua mesa.”
 
Mas, é rara a obra em que o autor discorra sobre si sem se infiltrar por certa pabulagem. Embora seja própria da natureza do anedotário, aqui se mostra, nas vezes em que aparece, como um defeito narcísico do contador de vantagens. Ao contar da repreensão sofrida por um espectador porque cantava baixinho a trilha sonora de O cangaceiro — filme brasileiro de Lima Barreto com diálogos criados por Rachel de Queiroz e premiado no Festival Internacional de Cannes —, o narrador assim descreve: “A ordem me acertou como uma bofetada, pois eu estava cantando no tom e não incomodava ninguém. Se eu era um bom cantor, responderia por mim a cozinheira lá de casa que sempre me pedia para cantar Luna Rossa, me prevendo um futuro glorioso nos festivais de Sanremo.” O que discorre não é falso, porque conhecemos o destino dessa personagem, mas soa pedante, como quando recorre a certo didatismo forçado para explicar a posição dos jogadores numa partida de beisebol.
 
Esses deslizes são compensados com alguns episódios ternos, alguns indiciando a vertente literária que demonstrada ainda na juventude se estabilizaria a partir de quando o escritor publicou o seu primeiro romance, Estorvo, em 1991. A vocação para música se deixa notar no gosto desmedido pelas marchinhas de Carnaval em voga, um refrão do livro, e pela admiração que mantém pela irmã Miúcha, quem, numa estadia com a família, levou o Brasil porta adentro para a casa habituada ao silêncio ou às músicas das rádios italianas. E a literatura começa no amor juvenil por uma Sandrene; esse encontro o leva a escrever duzentas folhas de uma longa história de amor perdida porque a pretendente teria se desfeito do manuscrito. Sinaliza-se na tentativa abandonada de compor um diário dos dois anos de estadia em Roma, com incentivo da própria mãe. Depois, o convívio com o pai imerso na máquina de escrever e nos livros ou na admiração discreta revelada quando descobre numa livraria a edição italiana de Raízes do Brasil.
 
Ao se referir à imagem de um sonhado livro de memórias a nascer do diário de Roma e que de alguma maneira se materializa nesse Bambino a Roma, Chico Buarque entrega, se não o método utilizado neste romance, uma imagem valiosa para sua compreensão. Ao descrever o papel de parede do quarto que divide com os irmãos, observa numa passagem em que se deixa entrever a parede verdadeira recoberta com uma imagem que era a imitação de um muro de tijolos: “Meu sonhado livro de memórias”, reflete o narrador, poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde.”

Na errância por essa Roma perdida, testemunhada nos últimos quatro capítulos do romance, o autor repara no reuso arquitetônico dos lugares de outro tempo, uma coisa distinta do que acontece no Brasil como sua ficção observa tão vivamente em Leite derramado, para referir um dos livros mais recentes do escritor. Aqui, busca-se o apagamento do passado por um presente plastificado. No caso romano, sobram as fachadas de outra época, mas o interior pode ter sido modernizado com o conforto do presente. De alguma maneira, oferece-se os indícios para que a atividade imaginativa se manifeste como alternativa mediadora entre os tempos e capaz de recompor através dos pequenos indícios e resquícios redivivos na e pela memória. 

Muda-se o tom da narrativa. Agora é o autor em tentativas de escafandrista, envolvido pelo gesto recorrente do uso da memória pela literatura de Chico Buarque. O que o presente revela é quase integralmente desconforme com o passado: o modesto palazzo onde viveu entre 1953 e 1955, por exemplo, não é mais mantido pela mão-de-obra do interior da Itália e sim africana, e embora de alguma maneira preservado não é mais a casa de família e sim o ponto de encontros sexuais. Mudam-se os lugares também pelos usos e mudam-se as pessoas. O reencontro com Amadeo, um alcoólatra, morador de rua, que parecia esperar pelo retorno do brasiliano para morrer não sem antes mandá-lo à merda, é um exemplo. 

Ou isso não aconteceu e esse reencontro de amigos ou passeio de bicicleta alugada saíram do como se, o elemento motriz da criação literária. Tudo pode ser, como insinua, também matéria de invenção sua fabricada no conforto do seu escritório no Rio de Janeiro — uma suspeita que faz o suposto tornar acontecimento a partir do retorno a geografias e acontecimentos pretéritos. O livro como um jogo de espelhos, a trapaça do malandro e da própria ficção. Assim, o livro de agora, embora não seja o preterido livro de memórias da infância, perfaz, como na fabulação de criança, o livro de memórias possível construído a partir da imaginação à maneira daquela cidade redesenhada pelo autor no verso do grande mapa de Roma.


Ligações a esta post:
>>> O irmão alemão, aqui referido, foi duplamente resenhado no Letras: por Alfredo Monte, tão logo o livro foi publicado, em 2014; e depois, no ano seguinte, por Rafael Kafka — os textos estão aqui e aqui, respectivamente.

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Bambino a Roma
Chico Buarque
Companhia das Letras, 2024
168p.

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