Por Pedro Fernandes
“Mas como não sou prosador de
ofício e sim poeta do meu tempo, sem odes e odisseias, minhas linhas são magras
almejando ser graciliânicas em um dia excepcional qualquer.”
|
Armando Freitas Filho. Foto: Ricardo Borges |
As aspas são de Armando Freitas
Filho e estão num texto em que o poeta nascido no Rio de Janeiro a 18 de
fevereiro de 1940 responde, diante de uma mesa em constante expansão de acúmulos,
à pergunta “Preciso ou não arrumar minha mesa?” — título que integra o livro
Só
prosa (2022). As linhas magras, graciliânicas, compôs uma obra extensa e singular para a poesia. Nos vários registros que deixou, encontramos como recorrente,
uma expressão miúda, contornada por uma timidez, e que se enraíza numa poesia
cujo tempo se abriu para a dúvida ante a constância do sujeito e das coisas.
Nos registros de imagem, que
também a partir da sua geração, encontrou o mesmo campo de importância e divide
significação com os materiais verbais, é singular uma fotografia de Rogério Carneiro em vivas cores
realizada em 1982 e que se tornou um desses registros singulares
para a história da literatura brasileira; aparecem com Armando Freitas Filho, Cacaso,
Charles Peixoto e Ana Cristina Cesar. Em versões do mesmo filme, muito
provavelmente, o fotógrafo captura noutra sequência a primeira personagem do registro
portando o pequeno volume do recém-publicado
Longa vida (1982).¹
As figuras que ocupam esses retratos
são parte do núcleo do que passou a se chamar ainda no calor da sua irrupção como
Poesia Marginal. Nessa altura, o nome que nos interessa nesse breve perfil, já atuara
em outras duas frentes e mesmo encontrando seu lugar entre esses novos poetas não
se fez seguidor de nenhum grupo restrito. Armando Freitas Filho é dos poetas
que preferem a liberdade própria.
As outras duas frentes, antes da
Poesia Marginal, foram: sozinho, quando, custeado pelo pai e por intermédio de
José Guilherme Merquior, publica o
primeiro livro
Palavra, em 1963; e depois como integrante da Instauração
Práxis, a convite de Mario Chamie, um movimento que, na efervescente era da
poesia brasileira, antagonizava com a Poesia Concreta e no qual Armando Freitas
Filho milita até meados dos anos setenta. É desse período os livros
Dual
(1966),
Marca registrada (1970) e
De corpo presente (1975).
Ou seja, até encontrar sua turma e
se tornar uma das suas figuras de destaque, Armando Freitas Filho estabelecera
os rumos de sua obra. O poeta dizia que sabia se repetir apenas variando as palavras; que seu projeto literário se construía
“meio no escuro”; como escreveu para o encarte do CD gravado pelo Instituto
Moreira Salles: “A poesia assim pensada não apresenta resultado cabal. As
soluções são virtuais e se deixam ver e ouvir através de atmosferas distintas
que misturam, aleatoriamente, cálculo e acaso.”
Mas, às apalpadelas, a obra em
errância seguiu o curso do poeta. Se este nunca se alienou por um grupo específico,
sua poesia também não quis se fixar numa estética específica e pela constância
de mais de seis décadas se marcou por pequenas modulações que acompanharam ora
os desenvolvimentos e variâncias do subjetivo, como é assente na lírica, das
relações deste eu com o pequeno mundo que o rodeava, a começar pela mesa de
trabalho, seus instrumentos e as pessoas que elegeu como seu centro de afeto.
“A poesia evolui como Deus é
servido. Na época moderna ela é a fala entredentes dos veículos de massa. Do
sussurrado, do sugerido, da entrelinha.” A observação levantada quando já
publicara
Mademoiselle Furta-Cor (1977),
À mão livre (1979), o
referido
Longa vida (1982),
3X4 (1985) — com o qual recebera o
primeiro Prêmio Jabuti —,
De cor (1988),
Cabeça de homem (1991),
Números
anônimos (1994), e se preparava para apresentar
Duplo cego (1997), assinala
de alguma maneira como sua presença se integrou tão bem na rede diversa que agitava
os ventos da poesia no Rio de Janeiro. Afinal, a qualidade de Armando Freitas
Filho era, em parte, a dessa geração: a individualidade do fazer poético, sem
incorrer a bulas, tratados, manifestos.
A liberdade criativa, a renovação
do interesse na palavra e prática literária sem determinações ideológicas serviram
de espaço próprio para a poesia de Armando Freitas Filho. Os da sua geração assumiram
ativamente a postura de se colocar à margem das linhas que se afirmavam como a
tradição poética da literatura brasileira, mas, no caso do poeta em destaque,
isso se manifestou sem deixar de manter um interesse — mais tarde convertido em
culto — na obra dos notáveis Carlos Drummond de Andrade, João
Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar²; ele leu
A luta corporal
emprestado de um amigo e para não perder os poemas fez para seu uso um exemplar
manuscrito, gesto que serviu para se inteirar da dicção poética de Gullar e
para sua aprendizagem.
Nos primeiros livros é visível a
proximidade com esses poetas. O esforço de expurgo das influências se nota
também a partir do seu contato com a poesia marginal e muito embora não tenha
servido para contorná-los, a obra de Aramando Freitas Filho consegue participar
com força própria na expansão dos valores poéticos dos seus mestres,
continuando-os, tal como funciona a formação do interminável universo literário. Ao olhar a própria poesia, observou que sua obsessão se faz presente por meio de três
temas: vida, morte e amor. “Vida num
sentido geral, desde a mais pedestre até a mais metafísica; morte
que, infelizmente, em algum momento atinge cada um de nós; e
amor que, para mim, é uma luta, uma guerra sublime que venho
travando ao longo de toda a vida. Acho que vida, morte e amor,
por mais absurdos que sejam, são rotineiros, na existência de cada
um. Por isso, me considero um poeta do real.”
É visível ainda que a sua poesia,
reiterando o ponto inicial dessas considerações, denuncia a fragilidade do
poema na representação ou transformação da vida e faz isso, mesmo assim, no
interior do próprio gênero, salvando-o da dissolução fatal para os meios de
linguagem de massa cada vez mais presos numa objetividade estéril e perigosa ou
reativando o circuito lírico, como é possível verificar em
Arremate
(2020), um livro em que o poeta entra em contato com as forças indeléveis do
tempo, aprofundando-se no interesse pela memória e seus arredores, acrescentando-se aqui um olhar para o corpo que na velhice começa a deixar de corresponder ao pulso cerebral; neste livro cede
aos andamentos irascíveis de ódio que irrompe outra vez como modelo dominante na
pólis
a partir de 2019.³
Esse mesmo tempo entregou para outros
a organização da sua obra completa, um esforço que o poeta se permitiu na
passagem do 40º ano da estreia literária:
Máquina de escrever reuniu os
livros até então publicados e o inédito
Numeral/ Nominal com o qual recebe
outra vez o Prêmio Jabuti. Antes dessa antologia saíram, entre outros,
Duplo
cego (1997),
Fio terra (2000, Prêmio da Biblioteca Nacional) e
depois,
Raro mar (2006),
Lar (2009),
Dever (2014, outra
vez Prêmio da BN),
Rol (2016), o já referido
Arremate e o
previsto
Respiro. Um trajeto em que, como afirma Mariana Quadros, “o
registro da vida nutriu-se sempre do curto-circuito entre o cálculo rigoroso e
o desejo intenso de captar a instabilidade do vivo.”
Aos nomes de sua formação, Armando
Freitas Filho acrescentou os de uma irmandade muito própria. E é inevitável um
perfil, por simples que seja, não tocar no trabalho que desempenhou depois da
morte da amiga Ana Cristina Cesar. Foi ele quem mais contribuiu para a
sobrevida da poeta quando se dedicou a levar adiante o seu nome e a sua obra;
além de ensaios dedicados à obra da poeta, vários poemas dispersos pelos seus
livros, organizou e prefaciou o primeiro livro póstumo da amiga, “Inéditos e
dispersos” (1985), seguido de “Escritos da Inglaterra” (1988), “Escritos no
Rio” (1993), “Correspondência incompleta” (coorganizado com Heloisa Buarque de
Hollanda), “Crítica e tradução” (os dois em 1999) e “Ana Cristina Cesar: novas
seletas” (2004). Se a poeta irradiou como estrela cadente a vida de todos que
conviveram com sua presença, em Freitas Filho, Ana C. se fez fulgurante permanência.
Tal gesto, é de alguma maneira a
continuidade do seu fazer poético se compreendermos que o ímpeto de sua poesia foi,
como registra Viviana Bosi, o de agarrar a vida, o corpo, a coisa. “A lírica de
Armando”, observa a autora, “existe sob o signo da tensão, pois aspira a
fundir-se à expressão mais íntima do mundo, fora e dentro de si, reconhecendo,
no entanto, tal impossibilidade, pedra inaferrável que impede o encontro; e se
debate, fazendo do poema o arabesco nervoso desse impulso.”
Afinal: “Escrever é uma espécie de
jogo de palavras cruzadas lírico”;
Escrever é arriscar tigres
ou algo que arranhe, ralando
o peito na borda do limite
com a mão estendida
até a cerca impossível e farpada
até o erro — é rezar com raiva.
Notas
1 As fotografias integram o acervo de Ana Cristina Cesar no Instituto Moreira Salles (IMS) e podem ser vistas
aqui e
aqui, respectivamente.
2 Manuel Bandeira também aparece com recorrência nas referências de Armando Freitas Filho, mas a relação com esses é mais visceral. Em entrevista publicada na revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, confessa que: “Minha grande façanha intelectual foi me encantar com
Bandeira, mas preferir Drummond, quando tinha 15 anos.”
3 Em entrevista a Luciano Trigo
publicada no jornal Gazeta do povo, o poeta desdiz a afirmação de
engajamento apenas com os poemas da seção “Em papel jornal”, de Arremate:
“no golpe militar de 1964 estava presente com um grupo de amigos. Todos nós
tínhamos 23, 24 anos e participamos de protestos variados. No fim do golpe, os
poemas citados acima [“A flor da pele” e “Corpo de delito”, de À mão livre]
foram prova disso: arrematadoras. No quinquagésimo aniversário do golpe militar
tanto a Unicamp quanto a UFRJ imprimiram poemas meus e de outras pessoas em
estandartes que foram espalhados pelos campi. Além destes, há poemas
engajados também em Dual, de 1966, e Marca registrada, de 1970.
Neste, tive que cortar alguns porque me avisaram que eu podia ser preso.”
Foram essenciais para este
texto
Bosi, Viviana. Armando Freitas
Filho: “objeto urgente”. In Poesia em risco. São Paulo: Editora
34, 2021.
Cohn, Sérgio; Mello, Marcelo Reis
de (eds.). Armando Freitas Filho. Antologia (1963-2013). Rio de Janeiro:
Azougue, 2018. Coleção Postal.
Francisco, Severino. Entrevista
com Armando Freitas Filho. Cerrados, Brasília, n.5, p. 204-211, 1996.
Melo, Tarso de. “Minha poesia, meu
corpo e minha sombra procuram um modo de sobreviver ao real”. Cult,
São Paulo, 21 jul. 2020.
Quadros, Mariana. Ponto final fictício.
In Freitas Filho, Armando. Arremate. São Paulo: Companhia das
Letras, 2020.
Comentários