Afire, ou o cinema como possibilidade de salvação

Por Alonso Díaz de la Vega




 
Que estranho é o cinema de Christian Petzold! E não por razões aparentes. Se prestarmos alguma atenção, dá um ar convencional: seu estilo é econômico e rejeita tanto o minimalismo que enfatiza a passagem do tempo, quanto o (pós)modernismo que explora a forma cinematográfica através de cortes, planos e sons notórios. Na filmografia de Petzold, como no cinema clássico, a câmera não é percebida, a narrativa e os atores assumem a liderança, mas às vezes ficamos desconcertados: Transit (2018) se passa na França ocupada pelos alemães, mas aparecem carros e roupas da atualidade; Barbara (2012) e Phoenix (2014), que junto com Transit compõem uma trilogia sobre o amor esmagado pela história, mantêm um diálogo com o Novo Cinema Alemão e sua radicalidade, enquanto Undine (2020) é uma fábula romântica entre um humano e um criatura aquática, embora não tenha efeitos especiais e se distraia refletindo sobre a história de Berlim.
 
Em Afire (2023), filme mais recente do diretor alemão, seu classicismo culmina através de um aspecto, a esta altura, inusitado: um estudo de personagem sob os princípios da dramaturgia clássica. O cinema contemporâneo busca livrar-se completamente da ênfase na gramática e na psicologia individual e, portanto, busca a espontaneidade e a saturação. Um filme que se expressa através da tragédia ou da comédia clássica é anacrônico porque, pelo menos entre os cineastas mais aventureiros, existe uma consciência abundante de que o cinema é uma arte de imagens e que o que tem a dizer será transmitido através de planos e montagens. Mas se isso já é a norma, não é hora de se diferenciar voltando a escrita?
 
Nos anos 1960, houve uma importante controvérsia entre os intelectuais do cinema europeu: a modernidade, dizia a ala progressista representada por Pier Paolo Pasolini, estava mais alinhada com o cinema soviético — um cinema de poesia pela sua montagem estimulante, pelos seus planos anômalos e pela sua narração vaga — do que com Hollywood, cujas formas orientadas para narrar sem outra intenção que mostrar personagens e seus espaços, ainda eram apreciadas no cinema em prosa de Éric Rohmer. No final, os modernistas de esquerda como Pasolini e Jean-Luc Godard prevaleceram, mas com o tempo o cinema hegemônico aprendeu com eles e agora Hollywood assumiu as estratégias mais estimulantes. Por isso, os minimalistas dominam o cinema marginal, pois contrastam a aceleração da imagem comercial com o espanto subversivo de Robert Bresson. Petzold está no meio, propondo um cinema que não canse ao público mediante uma velocidade ou a outra, mas que se propõe a entretê-lo, a comovê-lo, mas sem manipulação: é o cinema em prosa de Rohmer.
 
Note-se que o grande diretor francês negou as categorias de Pasolini porque assumia o cinema como uma entidade diversa: sempre existiram imagens poéticas e prosaicas, e a distinção entre uma época do cinema e outra não se baseava no conflito entre estas duas formas, mas na modernização de cada uma. Nesse sentido, Petzold consegue com Afire um cinema em prosa verdadeiramente contemporâneo, rompendo por vezes o classicismo com a montagem, mas preservando a sua devoção ao ato de narrar e o desejo de oferecer ao público identificação e catarse.
 
Afire é estrelado por Leon (Thomas Schubert), um jovem romancista que se retira com seu iluminado amigo Felix (Langston Uibel) para a casa de campo da família deste último para trabalhar em um manuscrito. Felix prepara um portfólio de fotografias, mas também reserva tempo para aproveitar o verão — única estação em que os alemães veem o sol — ao contrário de Leon, uma figura fabulosa. Se Oscar Wilde escreveu sobre um gigante egoísta, Petzold descreve em Afire o ogro elitista: taciturno, invejoso, negativo, ostentativo de seu intelecto e relutante em colaborar nas tarefas domésticas. Leon muitas vezes se recusa a sair de casa a pretexto de trabalhar, quando na verdade passa o tempo arremessando uma bola ou dormindo.
 
Por conta de uma confusão, a mãe de Félix também empresta a casa para Nadja (Paula Beer), uma jovem que imediatamente chama a atenção de Leon. Ele olha para ela com um fascínio avizinhado do medo: sua liberdade, sua leveza e sua generosidade se opõem absolutamente a Leon, que a cada rejeição de Nadja, mas também de Felix e de um novo amigo — o guarda costeiro Devid (Enno Trebs) —, vai exasperando o público. Resumindo, Petzold não tem má-fé em relação ao seu protagonista. Através do humor e de um arco de educação sentimental, o diretor nos mostra como às vezes o mundo bate à porta do ogro até ele levá-lo para sair. Pode parecer grosseiro, mas Petzold fez Shrek (2001) para — e sobre — intelectuais.
 
A influência de Rohmer pode ser detectada no verdor que envolve os protagonistas e no clima de férias em que se passam muitos de seus filmes, mas também está presente na dramaturgia, que parte de um princípio essencial: ação denota personagem. Leon se expressa em cada uma de suas ações e Thomas Schubert aproveita a oportunidade para fazer de seu corpo um significado persistente. A princípio, o carro de Leon e Felix quebra, então eles são forçados a voltar para casa a pé. Leon se move desprezado e responde à brincadeira de Félix atacando-o, como uma brincadeira, embora a raiva de ter sido forçado a se exercitar apareça em seu rosto vermelho.
 
Numa cena em particular, os olhos intensamente azuis de Leon transmitem mais inveja e desespero do que a beleza normalmente associada a eles. Nadja recita Der Asra, do poeta alemão Heinrich Heine, e Leon a vê magoada ao descobrir que a vendedora de sorvete que a dispensou no dia anterior seu manuscrito é uma acadêmica literária. Petzold utiliza aqui diversas ferramentas visuais que rompem com a impressão de um filme sem muita imaginação formal, a começar pelo plano reverso. Seu mentor, o cineasta Harun Farocki, escreveu certa vez que o contraste de duas faces é a unidade fundamental do cinema, e nesta cena de Afire fica claro o porquê: não é necessário que Leon fale para entendermos seu desconforto; a alegria de Nadja ao recitar em um plano colide com a raiva do ogro devastado no outro, e as emoções irrompem sem a necessidade de palavras para descrevê-las.
 
Outro detalhe importante é o ritmo, já que a trama para no breve recital e Petzold deixa de narrar, ou seja, deixa de nos contar ações que constroem a história de Leon para se dedicar a olhar, hipnotizado, para Nadja. Paula Beer é tratada por seu diretor como uma das grandes estrelas do cinema clássico, cujos rostos atraentes, mas acima de tudo carismáticos, bastavam para encher um quadro e o coração de seu público. Este é um exemplo de montagem clássica que se contrasta com alguns saltos — cortes que brincam de uma ação para outra dentro do mesmo plano —, espalhados ao longo do filme para zombar de Leon, de suas expectativas e de seu caráter odioso. O primeiro deles interrompe a chegada à majestosa floresta com a imagem abrupta e decepcionante do carro quebrado.
 
Os símbolos de Afire também participam das estratégias clássicas do cinema em prosa: na aparente tranquilidade da floresta nasce um incêndio. Não se trata apenas de chamas literais que destroem toda a vida, mas também da violência dentro de Leon. Petzold apega-se à forma clássica da tragicomédia e rejeita a modernidade de um filme que justifique o seu protagonista. Se nas redes sociais sobram termos mal aplicados da psicologia para sugerir que o paciente não é quem precisa mudar, mas sim o seu ambiente, Petzold responde com uma trama em que não há desculpas para viver no erro, e é por isso o símbolo de fogo: o que queima por dentro acabará queimando tudo por fora. Como disse antes, Afire é catártico e, em meio a um panorama de filmes que fogem da trama, do conhecimento ou da sinceridade sob a influência da ironia pós-moderna, oferece-nos um importante retorno à era clássica, quando o cinema representava uma oportunidade de olhar para nós mesmos na tela e de evadir (se prestássemos atenção) a tragédia. Eram filmes, como Afire, que nos colocavam diante de um espelho na esperança de algo mais importante do que divertido: procuravam nos salvar de nós mesmos. 


* Este texto é a tradução de “Afire, o el cine como posibilidad de salvación”, publicado aqui, em Gatopardo.

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