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Mostrando postagens de setembro, 2024

Armando Freitas Filho, poeta do seu tempo

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Por Pedro Fernandes   “Mas como não sou prosador de ofício e sim poeta do meu tempo, sem odes e odisseias, minhas linhas são magras almejando ser graciliânicas em um dia excepcional qualquer.” Armando Freitas Filho. Foto: Ricardo Borges As aspas são de Armando Freitas Filho e estão num texto em que o poeta nascido no Rio de Janeiro a 18 de fevereiro de 1940 responde, diante de uma mesa em constante expansão de acúmulos, à pergunta “Preciso ou não arrumar minha mesa?” — título que integra o livro Só prosa (2022). As linhas magras, graciliânicas, compôs uma obra extensa e singular para a poesia. Nos vários registros que deixou, encontramos como recorrente, uma expressão miúda, contornada por uma timidez, e que se enraíza numa poesia cujo tempo se abriu para a dúvida ante a constância do sujeito e das coisas.   Nos registros de imagem, que também a partir da sua geração, encontrou o mesmo campo de importância e divide significação com os materiais verbais, é singular uma fotografia de R

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

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Por Pedro Fernandes Ronaldo Correia de Brito. Foto: Hélia Scheppa   Uma vez próximo ao desfecho de Rio sangue irrompe mais um dos muitos regatos que constituem o todo complexo de uma história que ambiciona contar a formação do interior do Nordeste brasileiro, quando os portugueses amargam as primeiras crises econômicas com a colônia fundada em 1500 e iniciam o processo de avanço pelos sertões. Neste breve fio, situado mais próximo do nosso tempo, encontramos um interessado em contar a história que vimos lendo e entre os problemas levantados no e a partir do diálogo com a prima, uma professora primária, está a ausência de uma obra literária capaz de, perfazendo o poder da épica, contar das inúmeras batalhas assumidas entre colonizadores e indígenas até a posse dos territórios em nome da Coroa. Recuperamos essa passagem porque nela parece que encontramos o interesse do próprio Ronaldo Correia de Brito com este romance.   Embora a personagem referida não esteja totalmente ignorante, sua

Umberto Eco: a verdade está dentro das bibliotecas

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Por Bruno Padilla del Valle   “O conjunto das bibliotecas é o conjunto da memória da humanidade.” Umberto Eco. Foto: Leonardo Cendamo   Memória vegetal é o conceito que Umberto Eco (1932-2016) cunhou para se referir àquela porção, poderia dizer material, da memória cifrada nos livros, cujo habitat natural são as bibliotecas, tanto públicas como pessoais, que podem estar abertas a outros leitores. Segundo o escritor, semiólogo e filósofo italiano, a questão da memória, que tantas perguntas suscita nesta era de virtualidades e nuvens, foi adianta por Isaac Asimov no seu conto futurista “A sensação de poder” (1958), em que uma falha geral na informática obriga a se recorrer à única pessoa no mundo que ainda é capaz de realizar operações matemáticas “de cabeça”. O documentário Umberto Eco: a biblioteca do mundo (2022) tem como tema central esse vínculo entre literatura e memória, que ganha forma nas estantes de sua famosa coleção de livros.   O filme começa com o próprio autor ladeado p

Os nomoi sagaranos da minha gente

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Por Eduardo Galeno Maureen Bisilliat. Do livro A João Guimarães Rosa (1974).     Sagarana está inflada de lugares da terra, Guimarães Rosa é um conjurador e organizador desses lugares. Modos, movimentos, plantas, falhas: tudo isso formalizado nesse estilo elementar que faz e refaz as histórias do livro. Sagarana nos conduz até o ponto de descuidado da leitura, à injúria que nos coloca fora-do-tempo (para usar um termo psicanalítico aqui), ou seja, maneja nossas afecções ao nascimento de um novo espaço, de modo que gozamos de uma forma de prazer textual atualizada. Sagarana — e menos ou mais toda a obra de Rosa — qualifica outro tipo de execução no plano do que seja um tropo . Ele consegue obsidiar a historicidade literária e reunir diversas linhas; aliás, perfazendo o bolsão das práticas exteriores à literatura.   Comum que, de certo modo, o principal no interior do bojo da literatura rosiana seja o regionalismo. Os caracteres do elemento que está em histórias como “A hora e a ve

Maria Judite de Carvalho, a escritora das vidas silenciadas e o reconhecimento póstumo

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Por Tereixa Constenla Antes de completar 15 anos, Maria Judite de Carvalho (1921-1998) acumulou toda a tristeza do mundo. Em espaço curto de tempo perdeu os pais e um irmão, mas antes desses acontecimentos já tivera que se habituar a viver sem eles e adaptar-se à severidade das diferentes tias que a criaram em Lisboa. Entre a perda e a repressão, forjou-se a personalidade de uma escritora enigmática que sempre se esquivou da exposição pública, apesar dos aplausos que a sua obra obteve em Portugal desde a publicação do seu primeiro livro, em 1959.  O seu estar no mundo foi a antítese da popular Agustina Bessa-Luís, que a elogiou como “uma flor discreta” das letras portuguesas. Tal como recorda a neta Inês Fraga, “era daquelas pessoas que quase pedia licença para existir, que se recusava a ocupar espaço e não queria estar no centro das atenções, mas quando falava era penetrante e incisiva”.   Sua escrita também é assim, talhada com preciso bisturi. Mais do que uma retratista de personage

Boletim Letras 360º #602

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Mircea Cărtărescu. Foto: Leonhard Hilzensauer LANÇAMENTOS   A editora Mundaréu regressa à obra de Mircea Cărtărescu e publica livro mais desafiador do escritor romeno .   O nome do protagonista deste romance poderia bem ser o próprio Cărtărescu. Mas, em vez de escritor de renome internacional e multitude de prêmios, é um professor do ensino público em um bairro periférico de Bucareste. Ainda jovem, um malfadado sarau literário enterrou de vez suas pretensões literárias, restou apenas um diário para atestar o escritor que ele poderia ter sido. Trata-se, então, de autoficção de um duplo imaginário do escritor? Sua vida se resume a ir da escola para casa. Uma casa enorme, em forma de navio, construída por um cientista sobre um solenoide — um gerador de campo magnético que atrai todos os temas e obsessões literárias do escritor Cărtărescu, transformando a rotina do professor primário, para além do nonsense educacional e do terror do sistema de saúde, em um caracol de reflexões sobre perce

Kafka, o uruguaio

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Por Alejandro Zambra Mario Levrero . Ramiro Alonso.   Certa vez Mario Levrero definiu sua obra como uma tentativa de traduzir Kafka para o espanhol. Especialmente em seus começos esta influência é importante, e há também passagens em seus últimos livros que lembram o Kafka dos Diários , mas creio que, por assim dizer, Levrero era muito mais uruguaio que kafkiano. Gosto de pensar que a tradução fracassou e que, graças a esse fracasso, Levrero acabou escrevendo uma obra pessoalíssima que ao longo dos anos encontrou seus leitores, não sei se numerosos, mas certamente bastante fiéis.   Também gosto do desconcerto provocado por O romance luminoso . Ainda há críticos que advertem “isso não é um romance”, como se sentissem obrigados a informar sobre o limite de garantia estatal para depósitos. Ademais, o próprio Levrero disse nas primeiras páginas do livro: “Um romance, atualmente, é qualquer coisa que se coloque entre capa e contracapa.” Levrero se mostra desejoso ou então resignado a escrev

Solitária, de Eliana Alves Cruz

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Por Renildo Rene Eliana Alves Cruz. Foto: Eduardo Anizelli   É um romance de espaços. Sua condição prévia de leitura é examinar o destino das famílias vítimas de violências/ crimes — sumariamente ocorridos no dia a dia — do ambiente doméstico enquanto percorre o dispositivo mais significativo do racismo brasileiro: a arquitetura das residências urbanas e a condição contemporânea do “quartinho da empregada”. Em seu quarto romance, Eliana Alves Cruz se volta para o período histórico ainda não retratado nos anteriores, o século XXI, e coloca em tela cheia uma narração intrigante para a literatura contemporânea, cheia de personagens simbólicas, metáforas recorrentes e uma narrativa envolta no enredo policial.   Mabel e Eunice, filha e mãe, guardam histórias particulares no Edifício Golden Plate, lugar do trabalho materno que constitui o centro de relações, desgostos e decisões de suas vidas ao longo de um bom tempo. Na organização dos eventos, a primeira narra a apresentação mais geral dos