Wisława Szymborska, leitora de livros inúteis

Por Laura Sofía Rivero


Wisława Szymborska. Foto: Henryk Hermanowicz


 
Para além das máquinas
 
Sabemos que todos temos gostos duvidosos. E, mesmo assim, é difícil imaginarmos um regente de orquestra ouvindo música de massa ou um Prêmio Nobel de Literatura lendo livros de autoajuda. Ao que consta, e é verdade, que Wisława Szymborska (Prowent, 1923-Cracóvia, 2012) fez a última coisa e não apenas numa ocasião: durante mais de trinta anos ela transformou a leitura voraz dos livros mais inesperados num projeto pessoal — instruções de yoga, compêndios de grafologia —, e resenhou pontualmente em sua coluna “Leituras não obrigatórias”.
 
Não é segredo que muitos pensam na resenha como um gênero apreciado apenas pelos verdadeiros críticos e os escritores que encontram nas maquinações uma oportunidade de se congratular com os do grêmio ou de sair de problemas financeiros. Quando Szymborska precisou deixar seu emprego na redação de Vida literária, o editor-chefe Władysław Machejek ofereceu-lhe a chance de escrever resenhas para, precisamente, compensar sua nova falta no orçamento pessoal. Ela não se deixou seduzir pela proposta, até que surgiu a ideia de dedicar aquele espaço aos livros “da última prateleira”: todos aqueles exemplares que chegavam ao escritório e ficavam acumulando poeira por falta de relevância ou mérito artístico. Dicionários, livros de história, reedições de clássicos, divulgação científica, livros de receitas culinárias... Aquele “papel inútil” que ninguém ousava olhar, nem ler e muito menos comentar, Szymborska fez disso o centro das suas reflexões.
 
No início ela escrevia sobre aqueles livros que as editoras mandavam como cortesia à revista, mas aos poucos foi se convertendo numa caçadora de excentricidades. Estava autorizada a comprar cinco exemplares por mês às custas da redação. Seus conhecidos, leitores ávidos de sua coluna, também lhe enviavam opções — um catálogo de pássaros poloneses, guias turísticos — na esperança de que enchessem os olhos da resenhista. Apenas duas regras marcavam a seleção do material de Szymborska: não se interessava por livros de política ou escritos por amigos. O que começou como um pedido enfadonho do ex-chefe acabou se tornando um prazer que ela explorou não só em Vida Literária — onde tudo começaria — mas se expandiria, com certas pausas e regularidade variada, em outras revistas: Odra, Pismo e no Jornal Eleitoral de junho de 1967 a 2002.
 
Como ela mesma mencionou, havia decidido falar sobre esses refugos excêntricos porque mesmo “o pior dos livros pode oferecer o que pensar de uma forma ou de outra”. No início de sua aventura, Szymborska queria fazer resenhas da maneira tradicional: dizer onde o livro havia errado ou certo, como ele se relacionava com a tradição de seus antecessores. Contudo, ao descobrir-se impotente para executar esse propósito com sucesso, ele modificou seu plano; Por isso, as “Leituras Não Obrigatórias” raramente ofereciam uma avaliação do livro, mas a leitura tornou-se um gatilho para pensar qualquer assunto com absoluta liberdade criativa.
 
Szymborska delimitou este terreno ilimitado com um compromisso formal: os textos tinham que ser breves e procurava que tivessem apenas um único parágrafo — se não conseguisse, acrescentava reticências — para criar a sensação de que tinham sido escritos de uma só vez, como se fosse uma ideia movendo-se pela página com a espontaneidade da apresentação oral. Esta decisão permitiu-lhe dar liberdade à livre associação de ideias. Por isso, a sua resenha de A grafologia ao ataque torna-se um ensaio sobre o nosso desespero em conhecer os outros rapidamente e não em profundidade; seu comentário sobre o livro de física Os sete estados da matéria torna-se uma queixa acerca dos limites do conhecimento humano.
 
Quem alguma vez pensou que a escrita jornalística está destinada a ser prisioneira da pressa e dos males da urgência — tão alheia à lentidão e ao sedentarismo que exigimos da arte — encontrará uma surpresa nas Leituras não obrigatórias: espaço onde a escrita é sempre fresca, sempre fértil; prova de que não existe meio tão adequado como uma coluna para verificar o calibre da criatividade de um autor que é capaz, como destacou Alfonso Reyes, de transformar a necessidade em virtude.
 
A vida literária como um jogo
 
Ao folhear estas páginas escritas por Wisława Szymborska ao longo de três décadas o que chama a atenção é o espírito lúdico capaz de unir livros tão díspares como Cem minutos para a beleza com o Gilgamesh, Observando e transformando minha casa com O cotidiano da nobreza polonesa no século XX XVII ou o Poema do Meu Cid com a Autobiografia de Chaplin.
 
Na realidade, esta forma de abordar os livros com absoluta liberdade teve antecedentes importantes no trabalho editorial que Szymborska realizou antes de escrever a sua coluna. Remonta às maneiras incomuns com as quais sempre exerceu e se relacionou com a crítica. Em seu primeiro cargo na secretaria da redação de O farol de Cracóvia, Szymborska chegou a escrever breves resenhas sobre teatro que já mostravam sua engenhosidade. Anos depois, ingressaria na linha de frente da revista Vida literária como encarregada da seção de poesia onde trabalhou de 1953 a 1966. Esse cargo a instalaria no inferno tão temido por qualquer editor: a árdua tarefa de rejeitar colaborações não solicitadas enviadas por inúmeros poetas. No entanto, ela enfrentaria essa provação exibindo sua criatividade.
 
Contam que, já cansada de receber em seu escritório um escritor insistente que implorava para ser publicado na revista, Szymborska pediu a Józef Maśliński — outro editor da Vida literária — que a ajudasse a fingir uma cena capaz de assustar qualquer interessado. Assim que o ávido poeta chegou ao seu escritório, encontrou o robusto Maśliński no chão e uma miúda mas impiedosa Szymborska pisando em seu peito enquanto o repreendia por forçá-la a perder tempo lendo seus péssimos poemas. Esse episódio circense foi suficiente, dizem os mais próximos, para que aquele poeta descontente desistisse completamente e nunca mais enviasse qualquer colaboração.
 
Como era insustentável montar essas encenações espontâneas sempre que chegava um escritor tolo, a redação teve a ideia de criar uma seção na revista chamada “Correio literário” onde fosse possível responder a todos os textos que eram rejeitados. A partir do anonimato da voz editorial, Szymborska e Włodzimierz Maciąg se revezaram para responder publicamente aos autores. Para se diferenciar — conforme contam Anna Bikont e Joanna Szczęsna em Quinquilharias e recordações. Biografia de Wisława Szymborska  — Maciąg usava a primeira pessoa do singular e ela a do plural de modéstia para não ser reconhecida por ser a única mulher da equipe.
 
Cheias de ironia e leitura crítica, as respostas de Szymborska também eram recomendações para novos escritores: não se deixar levar pelas emoções, pensar na objetividade das palavras, por exemplo. A marca de sua autora fantasma fica evidente no humor que oscila entre o desafiador e o sábio. O seu valor como peças literárias levou-as a serem compiladas num volume no final de 2000 —Correio literário —, que foi promovido com uma divertida noite em que Szymborska e outros colegas ressuscitaram o exercício da crítica simulando corrigir clássicos da estatura de Tchekhov ou Beckett, como se fossem autores de primeira viagem. Platão é contestado por ela: “Elegi você como um conversador pouco apropriado para seus diálogos. Não trabalha em nada, é impossível saber do que vive, apenas perambula pela cidade puxando conversa com as pessoas.” E sugere que acabe com esse personagem, julgando-o diante do povo.
 
O que poderia parecer uma simples brincadeira, em Szymborska, forma um estilo. Nas suas Leituras não obrigatórias também a observamos lendo os clássicos sem medo, comentando-os sem tremer a mão. Por exemplo, do Satíricon de Petrônio reclama da monotonia evidente em todos os fragmentos, exceto em “O Banquete de Trimalquião” e afirma sobre esta seção: “Não consigo afastar a sensação de que foi outra mão da antiguidade que o escreveu ou que se não o escreveu, o refez acrescentando uma magnificência irônica. Os filólogos nem sequer consideram tal eventualidade.” Ela celebra a hipótese de que a obra em sua época era “terrivelmente cômica” porque era “cheia de alusões compreensíveis a todos” e condena aqueles que tentam trazer essas alusões de volta à vida através de notas de rodapé, porque “isso é como reviver a pata de uma rã morta com eletrochoque”.
 
Não há dúvida de que a autora polonesa nos faz reviver as alegrias das primeiras leituras: sem amarras, quando os livros não se tornavam monumentos nem por fama ou por prestígio. Recordamos aquele primeiro confronto brutal e as ideias que dele surgem: seja um julgamento implacável, uma intuição ousada ou uma reflexão muito profunda baseada na razão mais inesperada.
 
Em defesa do inútil
 
O impulso de Szymborska para ir além do discurso oficial foi talvez alimentado ao longo da sua vida por ter lidado com um ambiente particularmente hostil. Não só porque rodeada pelo regime comunista — com o qual comungou quando jovem e que mais tarde rejeitou — mas também por algumas experiências ocorridas na sua juventude. No início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, quando tinha dezesseis anos, a guerra fechou escolas em todo o país; Szymborska precisou então recorrer aos estudos clandestinamente: reuniões secretas onde os professores continuavam a ensinar as matérias a um grupo muito pequeno de meninas que, para se disfarçarem, espalhavam um baralho de cartas sobre a mesa de estudo. Esta imagem parece sintetizar o temperamento das Leituras não obrigatórias: a erudição e o jogo são expostos no mesmo espaço.
 
Assim, o seu compromisso em encontrar o valor daquilo que para outros seria lixo não implica uma defesa da ignorância, mas sim um meio de abarcar tantas esferas da experiência humana quanto possível. Não desejava restringir, mas estender. Ela não olha para fora da tradição para esquecê-la, mas para torná-la ainda mais ampla e rica. Esse interesse em ir além dos lugares comuns fica evidente em seu trabalho editorial e com a escrita. Para ela, uma revista literária é o espaço onde os imperativos da situação não importam, pouco valem as efemérides que transformam qualquer publicação num calendário de parede pouco complacente. Sobre as Leituras não obrigatórias chegou a dizer: “Também hoje as pessoas preferem muitas vezes ler sobre a peste na Europa medieval do que sobre a política atual.” Tinha muito claro o que buscava no jornalismo: não o datado da notícia, mas a perseverança para explorar — sob a disciplina do prazo — a eternidade do ludismo e do humor, que descrevia como “a grande tristeza capaz de vislumbrar coisas graciosas.”
 
Se suas resenhas podem ser lidas como pequenos ensaios, é justamente porque nasceram como um projeto de emancipação do pensamento: Szymborska traça suas próprias hierarquias para compreender o mundo e assume os riscos que isso implica. Não há melhor prova da sua vontade de levar o seu próprio jogo às últimas consequências do que a crítica que escreveu no final de 1972 onde fez uma escolha que foi talvez a mais ousada numa coluna por si ousada. O livro que ele selecionou para ser comentado foi nada mais nada menos que o Calendário de parede de 1973 sobre o qual reflete no início de seu texto:
 
E por que não dedicar algumas palavras àquele calendário de parede do qual arrancamos as páginas? Afinal, não deixa de ser um livro, e um tanto gordo, já que não pode ter menos de trezentas e sessenta e cinco páginas. Chega às bancas numa tiragem que chega a três milhões e trezentos mil exemplares, tornando-se o maior best-seller. Exige pontualidade absoluta de seus editores, visto que seu aparecimento no mundo editorial não pode ser adiado por um ano ou um ano e meio. […] Todo esse argumento nos leva à conclusão de que temos uma raridade editorial em mãos. Mas isso não é tudo. […] Milhões de livros sobreviverão a nós e, entre eles, muitos serão ridículos, desatualizados ou mal escritos. O calendário é o único livro que não se propõe sobreviver à nossa morte […].
 
O desafio de ler um objeto da casa como se fosse um livro implica pensar que a leitura é em si um ato de criação. Nas suas Leituras não obrigatórias Szymborska não faz resenhas de livros, mas antes põe à prova seu processo interpretativo; analisa a experiência de leitura em toda a sua diversidade e riqueza. Uma lição importante a ter em mente numa época como a nossa, onde “ler” parece significar apenas uma corrida para deglutir novidades ou completar desafios anuais no Goodreads. “O Homo ludens com um livro é livre. Pelo menos tão livre quanto ele próprio é capaz de ser. […] Você pode se permitir não apenas ler livros inteligentes com os quais aprenderá coisas, mas também livros estúpidos com os quais obterá algo”, alerta Szymborska na nota introdutória que escreveu para a compilação dos textos editados na sua coluna.
 
Sorrateiramente, as Leituras não obrigatórias compõem um longo ensaio sobre o que significa ou pode significar ler. Não é uma tarefa fácil de conseguir num gênero tão modesto como o artigo jornalístico onde, nas mãos de Szymborska, convergem a filosofia, o engenho e o estilo magnífico da sua prosa. Eles confirmam que, muitas vezes, a maior aposta ensaística de um texto pode passar despercebida aos nossos olhos porque não se encontra explicitamente no conteúdo, mas sim embutida na própria forma a partir da qual um autor decide pensar.
 
Esta capacidade de fazer literatura com os temas e suportes mais difíceis faz-nos questionar as razões pelas quais lhe foi atribuído o Prêmio Nobel da Literatura em 1996. “Pela sua poesia que com precisão irônica permite que o contexto histórico e biológico venha à luz”, dita a ilegível sentença da Academia Sueca. Mas se a autora polonesa nos encorajou tão ativamente a duvidar das autoridades e a ver as coisas de uma perspectiva diferente, valeria a pena recordá-la de uma forma diferente. Talvez como Wisława Szymborska, aquela magnífica resenhista que, dizem alguns, também escrevia poemas. 


* Este texto é a tradução livre de “Wisława Szymborska, lectora de libros inútiles”, publicado aqui, em Letras Libres.
 
 

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