Sr. Baldwin e seus pequenos blues

Por Renildo Rene

James Baldwin. Foto: Ulf Andersen


 
I get a feeling that I never, never had before. Começo a escutar aquela voz solitária de Etta James como se estivesse ouvindo a faísca de uma agitação. As batidas de todos aqueles instrumentos entram depois em cena e inicia um frenesi impossível de não conquistar. Certamente é uma canção muito energética, porém tem algo escondido ali, profundamente: a sensação estranha, na letra, e a grande rainha do Blues sabe, é precedida por um coração pesado de viver, mesmo quando os pés só dançam. Afinal, é 1962 e não é inocente como imaginamos a canção: é a liberdade bradando algo pesado e preso, enquanto se prepara para ser ferido novamente.
 
Enquanto “Something’s Got A Hold Me” se tornava esse clássico incontornável, James Baldwin escrevia na época sobre essa capacidade do Jazz e Blues serem ritmos da outra independência norte-americana, com “acidez, ironia, autoritarismo e dubiedade”. Sem quaisquer rodeios, ele afirma serem as grandes músicas compreendidas somente quando se cruza a linha do que elas verdadeiramente dizem, e nem todos estão dispostos a tanto. E isso perpassa o problema da cor: “logo, tudo que as pessoas brancas não sabem sobre os negros revela, precisa e inevitavelmente, o que eles não sabem sobre si mesmos”.*
 
Eu posso delinear esse raciocínio — indo da música à experiência política e social — para apresentar os contos de Baldwin. Reunidos em Going to Meet the Man (1965), coleção ainda inédita no Brasil, são cinco publicações de 1948 a 1960 resgatadas pelo escritor e mais três originais à época. Goste mais de alguns, estranhe e/ ou se hesite diante outro, suas narrativas curtas se apropriam de diversos fenômenos para traçar ambiguidades do comportamento humano difíceis de se classificar. Isso quando não nos pegamos tentando decifrar as escolhas utilizadas e toda a complexidade de uma escrita capaz de tensionar possibilidades do racismo e das vidas negras nos/ dos Estados Unidos. De alguma maneira, o conjunto dos oito textos se torna também ótima amostra de sua formação literária, que acompanha a própria escrita dos romances iniciais e a diversificação técnica de seu trabalho. Para mim, funcionou assim.
 
Já os três primeiros se apegam ao sentimento de fragilidade dos jovens em formação. “The Rockpile”, por exemplo, começa pelos pequenos acidentes sofridos por toda criança. John e Roy, irmãos, estão na saída do incêndio de sua residência esperando o pai quando se deslocam curiosos para observar uma obscura pilha de pedras. Mas é apenas o mais novo Roy que, escondido, se afoita em explorá-la enquanto o mais velho vigia. Conversando com a irmã McCandles sobre as idas à Igreja e a criação dos seus quatro filhos, a mãe Elizabeth tenta acalmar os ânimos quando um deles aparece sangrando em casa. Só que o conto começa a deslocar toda a aflição daquela estrada e do leve acidente para a chegada do marido Gabriel. Nada acontece de concreto, é certo. Nada além de uma cobrança gritante do pai sobre John e a falta de respostas (talvez, causada pelo pânico) sobre o acontecido do irmão. E é justamente o desconforto e a hostilidade instaurados ali, enquanto a mãe tenta administrar toda a situação, que reina o questionamento sobre como é o clima familiar na criação dos filhos.
 
O que vem a seguir, “The Outing”, é apenas uma expansão do universo anterior. Além de ser revelado o pai como diácono/ pastor, a dupla de irmãos retorna ao lado do amigo David com os corpos e as vozes estranhamente crescidos. Não é o conto mais envolvente da edição, mesmo oferecendo uma margem maior para sujeitos pouco conhecidos e outros novos. Há, contudo, um entendimento gritante de discutir as provocações dos meninos no momento de uma saída anual da Igreja pela cidade de New York. A familiaridade da primeira história e a entrega do presente à amiga Sylvia avançam pouco na coesão do resultado final, principalmente porque são disparados vários caminhos sem uma ligação mais contundente. O destaque aqui fica para a questão da religiosidade cristã que, entre todos os textos, é o mais abrangente e está atrelada à visão juvenil. No fundo, estão os irmãos e irmãs cantando em conjunto os hinos gospel e na nossa frente, aqueles três hesitando sobre o modo de agir religioso dos adultos à sua volta.
 
Em seguida, “The Man Child” encerra a trilogia sobre o dilema moral de conviver no mundo dos adultos, esses estranhos que compreendemos pouco suas motivações. Eric, um garoto branco de oito anos, vive com seus pais em uma fazenda, estando preservado no cotidiano comum. Mas um fator bastante curioso logo surge: a presença constante de Jamie, amigo solteiro da família e dono de um passado pouco esclarecido. Aliás, o pai e a mãe, não nomeados, sequer são focalizados com afinco, criando um contraste visível sobre as distâncias e aproximações entre Eric e Jamie. Para atenuar essa relação, o conto se vale do grande uso de descrições físicas, tornando a parte exterior desses dois uma medida para aproximar melhor o leitor — enquanto vínculos e preocupações incômodas vão transparecendo. Existe aí um suspense na relação de como os traços de cada personalidade são lidos somente como sugestões, dando uma força simbólica sobre quais ações se desenrolam fora do narrado.
 
Os conflitos se situam precisamente em dois eventos: o aniversário de Jamie e as conturbações que surgem dois meses após. Até chegar ao final violento demarcado pelo assassinato de Eric, a sinuosidade desse núcleo familiar criou-me certa aflição sobre o desconhecido e sobre o que realmente ocorreu ali. Seria uma vingança contra a compra das terras do solteirão? Existe ali um desejo reprimido ou sentimento de culpa que aflorou no homem após ver um jovem garoto? Ou seria o caso de alguma relação existente e mal resolvida, seja com pai ou com a mãe, para causar tal infortúnio? No passeio pela narração em terceira pessoa, Baldwin consegue fortuitamente se distanciar do visível e da simples onisciência para criar um campo de interrogação, tornando desse original um salto ao que foi lido anteriormente e uma transição para uma escrita mais cuidadosa.

A primeira edição, publicada pela The Dial Press. Arquivo Raptis Rare Books.


 
“Previous Condition”, a primeira publicação de Baldwin, aparecida antes em Commentary em 1948, acompanha os dilemas de Peter morando no quarto alugado do amigo Jules. Essa convivência é minada quando a proprietária obriga o protagonista a sair do lugar por se tratar de um bairro de brancos. A partir da situação incômoda e racista, ele começa a se digladiar diante de sua condição pessoal e se espirala em questões já recorrentes de sua vida, mesmo quando tenta se afastar delas. Todos os seus desgostos e perturbações de ser uma “pessoa de cor” e ter vivido com uma família em um bairro marginalizado o faz repensar várias vezes os escudos que se foram criados. Um deles está marcado ali: a constante atitude de transitar dentro do universo urbano para aproximar-se de elementos culturais e espaços que possam oferecer certo privilégio espiritual. É o caso da preferência por ouvir as sinfonias de Beethoven.
 
Afinal, existe ainda outro ponto crucial: Peter se mostra bastante próximo de Ida, namorada de seu amigo, com quem teve um caso no passado. A recorrência dos diálogos entre ele e o casal exibe a discrepância do entendimento social sobre as formas de agir sobre o negro. A edificação dessa personagem, por isso, se dá pela ambivalência do que se espera dela diante de atitudes racistas. Enfrentando novamente a violência ele não se obriga a narrar certa autoaceitação ou providenciar uma resposta rápida e coerente. E, ironicamente, Peter encerra o conto trocando Beethoven por Lionel Hampton e Ella Fitzgerald, para ouvir as “vozes de seu povo”. Mas ele alerta para quem já quiser conhecê-lo: “Eu não tenho história”.**
 
Então, eu começo a ouvir a voz grave e aveludada de Louis Armstrong dizendo hello, brother para anunciar os contornos fraternos em “Sonny’s Blues”. Narrado pelo próprio irmão após a notícia da morte do personagem-título, Baldwin desloca a noção de protagonismo para o Outro ausente sob um despertar da vontade de rememorar toda uma trajetória de oscilações e debilidades. Indo ao passado dos vários casos da adolescência — quando o mais novo já era motivo de preocupação da mãe pelo envolvimento com as drogas — até os dias atuais de afastamento entre os dois, o irmão mais velho vai desvencilhando temas como perdão e cuidado no momento exato de seu luto.
 
A tentativa de narrar e entender quem foi ele, independente de suas fragilidades e erros, transforma a história em um verdadeiro abraço de algo nunca compreendido, e por isso dolorido. A própria centralização de Sonny me parece um sinal dessa incumbência. E embora as próprias digressões já capturem todo o espírito, Baldwin investe a jornada de descoberta naquilo que o falecido fora: um renegado cantor. Passamos a conhecer na segunda fase do conto a breve e pequena carreira musical daquele menino que foi preterido ainda em vida pela família. Quando o narrador vai se esbarrando nos bares que Sonny esteve e nos seus parceiros de Blues, entendemos a música não como uma caracterização vaga nas histórias desse livro. O blues, o jazz, o soul, o clássico, o gospel e quaisquer gêneros a aparecerem, são figurações existenciais e políticas da dimensão de suas personagens. “Aqui, eu estava no mundo de Sonny. Ou melhor: em seu reino. Aqui, não era nem questão de dúvida de que suas veias carregam sangue real”.
 
Uma existência tão breve quanto o saxofone na boca de Charlie Parker. Conhecer Sonny por quem ele foi, na memória de seu irmão enlutado, nos leva aos prazeres nada aprazíveis, e ainda sim calorosos, de oportunizar redenção àqueles que precisam da nossa empatia. E se ainda não foi possível desenhar o suficiente a força de palavras despertadas: é o conto da emoção viva e dolorosa, que brilha entre todos os outros escritos: “Ele [Sonny] se virou para a janela, olhando lá fora. ‘Todo aquele ódio lá embaixo’, falou, ‘todo aquele ódio e miséria e amor. É uma surpresa que não tenha destruído a avenida’.”
 
A insistência de Baldwin por protagonistas sem nome continua. “This Morning, This Evening, So Soon” aprofunda ainda mais os vários entendimentos de um sujeito moderno que é músico-ator e fora convidado a realizar uma turnê nos Estados Unidos. Ele revela a nós os ressentimentos vivenciados anteriormente neste país que o fizeram apreciar o estilo de vida francês, lugar que passou a viver em prol de uma dita estabilidade emocional e vida confortável. O seu dilema, no entanto, embaralha sua própria noção de maturidade e lucidez de si enquanto negro.
 
Após esse longo tempo distante, essa viagem de volta para casa abala suas certezas quando ele sai com o amigo Vidal para a última noite parisiense. É só aí que começa a tocar Billie Holiday anunciando uma colheita estranha e amarga por vir. Os dois se encontram com um grupo de turistas e com outro amigo descendente do norte africano. Juntos no bar, eles se divertem até a moça do grupo advertir que teve certa quantia roubada pelo estranho Boona. Esse ponto de virada não causa nenhum alarme pois a denúncia é na surdina, porém o conflito se instaura e motiva o protagonista a tentar pensar em como ele reage diante de certas atitudes. Se não sabemos diretamente se houve o roubo daqueles dólares (e Boona afirma que não), o narrador-protagonista interpela as possibilidades de aquilo ter acontecido realmente. Há uma fuga de afirmar o seu pensar, mas nós sabemos: ele está se questionando novamente se os turistas agiram de forma racista — e se ainda é capaz de se contrapor a isso. Sua hesitação naquela noite, antecedida pelo desânimo de morar novamente na América (agora, com família), se torna a porta de entrada para o caminho de descobertas que ele fará em seu novo mundo. Um novo mundo, sabe ele, onde árvores do sul dão frutos estranhos.
 
O aproveitamento da técnica narrativa para cobrir as circunstâncias da vida masculina em termos de raça e família. Das crianças aos homens crescidos, e do narrador observador para o narrador personagem, essas histórias passam a ser peças centrais de uma paisagem sonora repleta de afagos e detalhes, muitas vezes omitidos ou por ora prolongados para dar a impressão de um genuíno concerto sincopado de piano e Blues. São contos indagando as convicções da vida política, sem deixar de procurar expor os conflitos particulares de cada personagem e suas iminentes fragilidades. Baldwin me indicia bem claro, nesse ponto: Black man’s a boy, don’t care what he can do.
 
“Come Out the Wilderness” e “Going to Meet the Man” encerram a coletânea explorando outros lugares do estilo do escritor, e fugindo da óbvia caracterização sobre o que ele pode representar. “Wilderness” tem agora o narrador onisciente aproximando-se de Ruth para dimensionar as inseguranças da posição da mulher negra frente a figura masculina. Nesse sentido, vejo a utilização de paralelos do cotidiano dissecando a vulnerabilidade dela nos espaços transitados. O seu namoro interracial desiludido com Paul, o assédio sofrido no trabalho pelo seu chefe e as lembranças de outro romance falido com um homem mais velho. Todas essas situações, ainda que tenha um probleminha aqui e ali de articulação, me aproxima das diferentes reações — representadas pelos constantes sorrisos e toques — ao evento da dominância masculina na experiência feminina mais interna de Ruth. É nesse sentido que sair desse deserto selvagem só poderia ser sentido pelo grito, pois a falta de controle dela assume um sentimento silencioso de submissão.
 
O último, no entanto, vira e mexe com todo caminho traçado até aqui. Baldwin aposta num tom mais sombrio do que os anteriores, acertando-o com os códigos de movimentos extremistas dos Estados Unidos. Não há mais música a ser tocada. O xerife Mr. Jesse se bifurca nas lembranças de dois singulares momentos de abordagens policiais. Enquanto suas divagações rolam, ao lado de sua mulher Grace, ele se direciona a pensar os encontros marcados que teve com um líder de movimentos civis e com uma amizade interracial da infância. O foco passa a ser menos o ponto de vista de um supremacista e mais a metódica mentalidade de como se encontra a parcimônia daquele cotidiano no país herdeiro de Jim Crow. A história vai desde o saudosismo de obter a violência policial para realizar desejos íntimos até o ápice do encontro sangrento (e ritualístico) do título.
 
As discordâncias entre os pontos de autoconsciência dos personagens anteriores vivem livres entre si porque investem em um modo pessoal de ser mediante a violência vivida. Mas neste conto, especificamente, a discordância sobre a existência alheia está opostamente assentada na opressão que mina o direito ao individual. Caso contrário ao que vimos anteriormente, o xerife de “Going to Meet the Man” traz à luz dois casos, mas em nenhum deles é capaz de discernir o direito livre de existir. Ele é o símbolo de todos os sadismos e segredos remanescentes do racismo; a expressão vigorosa da outra (e maior) América capaz somente de querer consciência renegando o diferente. Se a família foi retratada nas outras narrativas como ponto de tensões, discordâncias e laços em fragilidade, Baldwin triunfa aqui com outro tipo de família mais comum e unida no ideal reacionário de supremacia. Aquela que se realiza no fogo do outro.
 
Considero que essa reunião de oito peças mediadoras da experiência racial entre as décadas de 40 e 50 surgiu para mim como uma introdução tão justa quanto os romances. É que os dilemas escritos encontram certa plenitude do léxico escolhido (e subentendido). Mais: exercendo a forma breve, o escritor confere espaço tanto quanto pode para significar expressões sentimentais atingindo vários sujeitos. Não é regra, obviamente, estar a par dos gêneros literários para se fazer um bom escritor. Vai além disso. Mas reconheço a qualidade do autor de O quarto de Giovanni de poder engendrar uma forma que desperte o interesse para sua obra completa; e mais precisamente, para ressignificar suas opiniões em registro. E aí está o convite a bel-prazer.
 
Baldwin me fez pensar a dor e a comoção na maneira menos objetiva possível; me direcionando para uma leitura da superfície do conto na qual as músicas referenciadas, os sentidos figurados, as digressões e os não-ditos são possibilidades de pensar o íntimo e particular nessas histórias. Sua compreensão narra tão excelentemente as agudezas e as deturpações de espírito do seu território natal que é impossível não estar, 100 anos depois do seu nascimento, se debatendo na maneira como ele viveu a vida que cantou em suas histórias. E como deixou elas para nós.
 
Composto com vários elementos para criar certa sedução e encantador o suficiente para nos fazer retornar, Going to Meet the Man é, então, como um disco de Soul e Blues. E tal qual um disco, sua própria lista de faixas-contos mostra a elegância de uma organização elaborada para ressoar a voz de quem está por trás. Ácido, emocionante, livre, doloroso e indefinido. As pequenas histórias do Sr. Baldwin têm composição melódica suficiente para buscar pela literatura liberdade ainda maior do período histórico de seu tempo, sem preocupar-se com a definição direta das coisas e das ideias. At last, é disso que nos falta: um escritor e sua pena amarga diante das certezas inabaláveis.

James Baldwin dançando, Nova Orleans, 1963. Foto: Steve Schapiro



 
Notas
 
* Os trechos em destaque, os únicos neste texto, foram traduzido livremente de “My Dungeon Shook: Letter to My Nephew on the One Hundredth Anniversary of the Emancipation”, de The Fire Next Time (1963). No Brasil, o livro foi recentemente publicado pela Companhia das Letras e recebeu o título de Da próxima vez, o fogo.
 
** As citações do livro, referidas de agora até o fim do texto, também são traduções livres e acompanham a edição inglesa Going To Meet The Man: And Other Stories, publicada pela Penguin Modern Classics em 2013. Optei por não traduzir o título das histórias por ser uma decisão criativa que requer um cuidado melhor com a linguagem literária do seu autor. As passagens funcionam aqui apenas para aproximar e facilitar a leitura.

 
P.S. Mesclei neste texto, marcado em itálico, algumas das músicas e artistas utilizados por Baldwin para compor seus contos. Algumas estão descritas diretamente, outras não. São elas: Something’s Got A Hold On Me (Etta James); Nothing Shall Separate Me (Beverly Crawford); Ludwig van Beethoven e Lionel Hampton; Cow Cow Boogie (Ella Fitzgerald); Hello Brother (Louis Armstrong); Charlie Parker; Some Cold Rainy Day (Bertha Hill); Strange Fruit (Billie Holliday); When Will I Get to Be Called a Man? (Big Bill Broonzy); Out of the Wilderness (The Como Mamas); I’m Going to Live the Life I Sing About in My Song (Mahalia Jackson); At Last (Etta James).
 

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