Sobre a ironia e três irônicos: Eça, Machado e Saramago

Por Henrique Ruy S. Santos




A reflexão e o estudo da ironia têm séculos de história e remontam, como quase tudo, à Grécia Antiga, cujos principais pensadores a analisavam sob o prisma das artes retóricas. Na literatura, mais do que artifício retórico, foi incorporada pelo Romantismo alemão como uma forma peculiar de enxergar tanto o mundo quanto a linguagem, colocando sob escrutínio o próprio fazer literário e as próprias condições de narratividade. Dito isso, para este texto, gostaria de partir de uma definição talvez pouco literária, mas que lança luz sobre aspectos que valem a pena ser conferidos.
 
Oswald Ducrot, principal nome da Teoria da Enunciação, explica a ironia como maneira de fundamentar sua teoria polifônica da enunciação. Para Ducrot (1987), não há apenas um único responsável por um enunciado, mas pelo menos três entidades distintas: o sujeito falante, o locutor e o enunciador. O primeiro é a pessoa de carne e osso responsável pelo proferimento do enunciado (do ponto de vista estrito da Teoria da Enunciação, esta entidade não interessa como objeto de estudo); o segundo é o ente abstrato responsável pela enunciação e que pode ou não coincidir com o sujeito; o terceiro, a entidade abstrata responsável pelo ponto de vista expresso no enunciado. Em enunciados afirmativos simples, os três elementos podem coincidir, como quando alguém afirma simplesmente “o dia está lindo”. Em literatura, a questão pode se complicar, como no exemplo machadiano:
 
“Era o que eu pensava comigo, quando Virgília se desfazia toda em afagos ao velho parente. Ela ia recebê-lo à porta, falando e rindo, tirava-lhe o chapéu e a bengala, dava-lhe o braço e levava-o a uma cadeira, ou à cadeira, porque havia lá em casa a ‘cadeira do Viegas’, obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anciã.” (Assis, 1994, p. 92)
 
No excerto, o locutor é Brás Cubas (aquele a quem se refere o “eu” utilizado), mas o enunciador do trecho que menciona a “cadeira do Viegas” não corresponde a ele, e sim a Virgília ou aos habitantes da casa, que cunharam o termo. Por fim, o sujeito do enunciado, a pessoa de carne e osso que efetivamente escreveu aquelas palavras, é o próprio Machado de Assis. A marcação pelas aspas facilita a identificação desse concerto de vozes distintas (na fala, a entonação é frequentemente o recurso empregado para demarcar a diferença). Entretanto, a ironia em literatura é constantemente mais intrincada do que o exemplo citado, manifestando-se não só no âmbito da frase, mas da própria construção discursiva das obras como um todo. A esse respeito, faremos breves observações considerando obras de três autores lusófonos.
 
O primeiro deles, Eça de Queirós, em toda sua considerável obra, é daqueles escritores que, não importa o tema de que tratem em seus livros, nunca se furtam a falar de seu próprio país. Abordando seja o papel corruptor da influência eclesiástica, seja a decadência moral da burguesia lisboeta, ele sempre teve como fim último falar de Portugal. E não só falar do país, mas as convicções socialistas do autor e sua forte propensão oposicionista (principalmente nas primeiras obras) o impulsionavam a querer também emendá-lo. Daí ser possível, como fez Antonio Candido, enquadrar a obra do autor português no espectro de seu engajamento político, situando seus romances de acordo com o maior ou menor grau dessa necessidade de consertar o país a partir de suas posições ideológicas.
 
Desse ponto de vista, A ilustre casa de Ramires, publicado em 1900 (apenas meses após a morte do escritor) e considerado por muitos, ao lado de Os Maias, a obra-prima de Eça, situa-se em um preciso ponto de transição na obra do autor. Não mais o Eça de Queirós altamente combativo dos primeiros romances, e sim um autor mais ponderado, que tende a equilibrar melhor certos antagonismos que antes apresentava de maneira mais unilateral. Nesse âmbito, a ironia do autor, que, em romances como O crime do padre Amaro e O primo Basílio, tinha um certo gosto pelo escândalo e pelo choque causado pela demonstração de falhas morais, n’A ilustre casa de Ramires é matizada a ponto de, na opinião de Antonio Candido, seu protagonista, Gonçalo Ramires, ser o “primeiro personagem dramático e realmente complexo” da obra do autor (Candido, 1971, p. 44).
 
No romance, o fidalgo Gonçalo Ramires é instado por seu amigo José Lúcio Castanheiro a produzir um romance sobre os feitos heroicos de seu nobre antepassado, Tructesindo Ramires, a fim de publicá-lo na revista que está organizando, os “Anais de Literatura e de História”. Castanheiro é o típico nacionalista ufano, detentor de um patriotismo exagerado, e seu objetivo com o pedido feito a Gonçalo é atender à “necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desentulhar, caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo!” (Queirós, 2000, p. 45). Para Castanheiro, era corrente um “verdadeiro desprezo pela Pátria”, cujo remédio era “Revelar Portugal, vulgarizar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conheçam — ao menos como se conhece o Xarope Peitoral de James, hein? E que todos o adotem — ao menos como se adotou o sabão do Congo, hein?” (Queirós, 2000, p. 51). Na figura de Castanheiro já surge uma das primeiras inflexões irônicas do romance. O personagem, como se vê, não busca a retomada crítica do passado, da tradição e dos antepassados portugueses. Pelo contrário, almeja a completa vulgarização do passado histórico, convertendo-o em valor de troca político e social (e mesmo econômico), adornado por um possível enfeite mercadológico superficial.
 
Mas é a partir da escrita do romance (que logo se converte em novela) por parte de Gonçalo que emerge o principal veio irônico da obra, com o contraste evidenciado pela narração entre os feitos épicos dos antepassados portugueses e a fidalguia mesquinha de Gonçalo no presente. Contraste, aliás, já posto na fala inconsciente do próprio Castanheiro que, ao encomendar a Gonçalo a produção da obra, compara este às figuras históricas de Portugal:
 
“Trabalha agora no verão... Para Portugueses, menino, o verão é o tempo das belas fortunas e dos rijos feitos. No verão nasce Nuno Álvares no Bonjardim! No verão se vence em Aljubarrota! No verão chega o Gama à índia!... E no verão vai o nosso Gonçalo escrever uma novelazinha sublime!” (Queirós, 2000, p. 51).
 
É visível o efeito contrastante, em que Gonçalo e sua “novelazinha sublime” fazem figura módica diante da grandeza dos feitos e das figuras citados. E é este, em verdade, o procedimento de que o livro retira sua força irônica: da novela de Gonçalo sobre as façanhas de seu avô emerge uma voz que se opõe à narração principal, esta sobre o próprio Gonçalo, e dessa oposição surge a principal crítica do livro, isto é, a decadência política, econômica e principalmente moral de Portugal.
 
No entanto, a prudência da maturidade modera os ímpetos juvenis da crítica de Eça. Aqui há espaço para uma certa matização da figura de Gonçalo, que alcança alguma redenção ao final da narrativa, demonstrando que muitos dos posicionamentos dos romances iniciais do autor foram reavaliados, e suas motivações, sopesadas, de modo que, se a crítica perde em corrosividade, ganha em discernimento. E assim a ironia queirosiana alcança um ponto de equilíbrio em que enunciadores e locutores se alternam por meio de narrativas encaixadas e através do uso do discurso indireto livre, técnicas privilegiadas pelo autor neste romance. Os senões do livro ficam por conta de certos cacoetes de Naturalismo a que Eça não resiste, como a tendência à simplificação psicológica de personagens (que operam mais como tipos) e o recurso algo desencaixado ao final-síntese, em que o autor trata de colocar na boca de algum personagem a explicação do sentido alegórico do texto, a fim de ratificar uma tese.
 
No segundo autor de que trataremos, Machado de Assis, a questão se complexifica. Em romances como Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, a ironia deixa de ser uma ferramenta entre outras para a obtenção do efeito crítico e alça-se a princípio estilístico primário e fator estruturante da obra. Não há, na maioria dos romances ditos de segunda fase do autor, a separação entre o discurso de um narrador onisciente e o discurso de seus personagens protagonistas. O que temos é unicamente a narração realizada pelo ponto de vista da personagem, o que impede o discernimento imediato da ambiguidade discursiva, uma vez que não são acessíveis, de pronto, as falas contrastantes no âmbito da tessitura da obra.
 
É claro que a ironia em suas manifestações literárias sempre guarda em si, por natureza, algo de ambíguo, nunca se prestando a desvelamentos óbvios. Todavia, em Machado, trata-se de uma amplificação desse processo, que inviabiliza de todo a passividade do leitor ao exigir-lhe a capacidade de distinção entre o discurso do narrador e o discurso da obra em si quando não há mais, na superfície textual, essa separação.
 
É certo também que em Eça, semelhantemente, não havia um narrador onisciente a explicar, pormenorizadamente, a “moral” da história ao leitor ou o sentido irônico de determinadas passagens do enredo, isto é, o leitor ali também era mobilizado a buscar em outras instâncias a elucidação do efeito. Entretanto, a simples adoção de um narrador onisciente (por mais concessões que faça ao discurso indireto livre) como uma entidade literária separada da personagem principal já apontava, no romance de Eça, para a tensão de vozes no interior da obra, e a postura mais “neutra” desse narrador, que se exime de julgar as personagens diretamente, é apenas a postura privilegiada pelo autor para a obtenção dos efeitos particulares a que visa. Esse fator se perde em Machado, e o efeito irônico se agudiza.
 
Trata-se, no caso do escritor brasileiro e levando em conta o estado de nosso sistema literário à época (para acenar mais uma vez a Antonio Candido), de uma literatura de alto risco, disposta a demandar do público receptor a renovação de seus parâmetros para a efetiva compreensão da obra. Afinal, quanto maior a complexidade da ironia, maior o risco de que ela não seja percebida e, por consequência, maior o risco de que o enunciador passe, aos olhos e ouvidos de quem o lê e ouve, de um perspicaz leitor da situação a um desastrado observador da sociedade.
 
E foi justamente esse o caso da recepção imediata dos romances de segunda fase do Bruxo do Cosme Velho. O uso da narração em primeira pessoa, que assimila o discurso de seu personagem principal e o alça ao primeiro plano no enfoque dado aos fatos narrados, aliado ao estilo “ébrio”, aproveitado do humorismo à inglesa do Tristram Shandy de Sterne, representaram uma ruptura tão significativa na literatura brasileira, que chegaram a embotar a visão dos críticos coetâneos, que tinham dificuldade para enxergar em Machado um escritor que se dirigia aos problemas verdadeiramente brasileiros, literários ou não. Daí o epíteto infeliz (para dizer o mínimo) de “macaqueador de Sterne”, lançado por um crítico do porte de Sílvio Romero.
 
O que é interessante notar é que, se em Eça aquele concerto de vozes que distingue locutor e enunciador é mais evidente em virtude das diferentes instâncias narrativas que a obra põe em jogo (a narração da história de Gonçalo pelo narrador principal da obra e a narração da história de Tructesindo por Gonçalo), no Machado das Memórias póstumas essa separação é mais sutil e requer do leitor uma certa afinação com procedimentos literários específicos e com certas atitudes éticas e históricas à luz das quais as atitudes do personagem principal podem ser observadas.
 
Se, em relação a Eça, a ironia machadiana é mais complexa, no terceiro autor de que nos ocupamos, José Saramago, ela é mais radical. Em Saramago, a enunciação irônica frequentemente sofre uma radicalização tipicamente pós-moderna, na medida em que o objeto da ironia é não mais uma determinada instituição ou determinados acontecimentos históricos (pelo menos não somente), mas a própria maneira como se dá o conhecimento histórico e a sua relação com a ficção e a imaginação.
 
Em História do cerco de Lisboa, romance de 1989, Saramago exemplifica bem essa radicalização irônica em uma trama que lembra, em alguns aspectos, a do romance de Eça comentado anteriormente. O romance de Saramago narra sobre Raimundo Benvindo Silva, revisor de textos que é encarregado de revisar um livro de história do Cerco de Lisboa, evento histórico que marcou a reconquista da cidade aos mouros pelos portugueses, com o auxílio dos cruzados.
 
Acontece que Raimundo, tomado por uma espécie de furor luciferino, um impulso digno de Mr Hyde — como compara o narrador —, altera deliberadamente e de forma significativa o texto, infringindo a mais basilar das regras de conduta de um revisor, isto é, a de jamais alterar o sentido dos textos. Afinal, “para o revisor que conhece o seu lugar, o autor, como tal, é infalível” (Saramago, 2017, p. 53), diz o narrador ironicamente.
 
Dessa forma, onde antes se dizia que os cruzados auxiliariam os portugueses a reconquistar Lisboa, acrescentou-se um “não”, de modo que o livro passou a dizer que “os cruzados NÃO auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa” (Saramago, 2017, p. 53). E, com essa alteração expressiva, Raimundo remete o livro à editora, que logo descobre a modificação e repreende o revisor. Entretanto, Maria Sara, a nova diretora de revisores da editora e futuro interesse amoroso de Raimundo, intrigada com as motivações do revisor, insiste para que ele escreva a sua própria versão da história do cerco de Lisboa, uma em que os cruzados de fato não auxiliem os portugueses na famosa empreitada. E assim Raimundo se vê, de repente e sob encomenda, escritor, como o Gonçalo Ramires de Eça.
 
Saramago se movimenta nos terrenos da ficção e da história, e sua ironia se propõe a demonstrar o quão movediço são esses terrenos e os limites que os separam. Ao demonstrar que a simples adição de uma palavra é capaz de modificar totalmente o sentido de um texto, o romance ressalta o caráter essencialmente linguístico e humano do conhecimento histórico e coloca em questão a suposta transparência discursiva dos textos históricos ou informativos, segundo a qual o que importa são os seus conteúdos e suas verdades, sendo as palavras meros invólucros que emprestam sua forma à enunciação dos conhecimentos. Pelo contrário, o romance mostra, numa radicalização, como se disse, tipicamente pós-moderna, que as palavras são tudo:
 
“Os revisores, se pudessem, se não estivessem atados de pés e mãos por um conjunto de proibições mais impositivo que o código penal, saberiam mudar a face do mundo, implantar o reino da felicidade universal, dando de beber a quem tem sede, de comer a quem tem fome, paz aos que vivem agitados, alegria aos tristes, companhia aos solitários, esperança a quem a tinha perdida, para não falar da fácil liquidação das misérias e dos crimes, porque tudo eles fariam pela simples mudança das palavras, e se alguém tem dúvidas sobre estas novas demiurgias não tem mais que lembrar-se de que assim mesmo foi o mundo feito e feito o homem, com palavras, umas e não outras, para que assim ficasse e não doutra maneira” (Saramago, 2017, p. 53-54).
 
Em que pese a nítida ironia do narrador, que exagera as capacidades das palavras e da expressividade da língua, as palavras detêm, como demonstra a narrativa, a propriedade de alterar significativamente não os fatos históricos do passado, mas sua percepção no presente, o que é um fato histórico por si.
 
Sendo assim, o revisor, que sempre esteve encarregado “unicamente” das palavras, revela-se sempre ter sido um escritor, ainda que com menos liberdade, e suas alterações sempre foram alterações de sentido, ainda que nem sempre tão significativas. Assim, para usar termos caros a Ducrot, com quem demos o pontapé inicial a este texto, a ironia do autor da História do cerco de Lisboa se dirige não apenas ao dito, mas também ao dizer, e a desconfiança do leitor coloca em suspensão não apenas os personagens ou um narrador assumidamente parcial (como nosso Brás Cubas), mas a própria figura costumeiramente onisciente do narrador em terceira pessoa. Saramago, dessa forma, nos lembra que não é só dos narradores em primeira pessoa que devemos suspeitar.
 
Temos, assim, três autores, três formas de manifestar a ironia na literatura, três formas de articular a polifonia e a ambiguidade típicas desse recurso. Na observação de todas essas manifestações, reafirma-se a literatura como lugar privilegiado da inquietação e do cruzamento de vozes sem concessões nem saídas fáceis.
 
Referências
 
Ducrot, Oswald. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987.
 
Candido, Antonio. Entre campo e cidade. In: Tese e antítese. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 29-56.
 
Queirós, Eça de. A ilustre Casa de Ramires. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.
 
Saramago, José. História do cerco de Lisboa. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Comentários

Victor Andrade disse…
É aquela história, será que o narrador de Dom Casmurro seria mais "imparcial" que o próprio? Acho que não, ele também seria parcial à sua percepção dos fatos, e portanto, refém de um ponto de vista enviesado.

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