A reflexão e o estudo da ironia
têm séculos de história e remontam, como quase tudo, à Grécia Antiga, cujos
principais pensadores a analisavam sob o prisma das artes retóricas. Na literatura,
mais do que artifício retórico, foi incorporada pelo Romantismo alemão como uma
forma peculiar de enxergar tanto o mundo quanto a linguagem, colocando sob
escrutínio o próprio fazer literário e as próprias condições de narratividade.
Dito isso, para este texto, gostaria de partir de uma definição talvez pouco
literária, mas que lança luz sobre aspectos que valem a pena ser conferidos.
Oswald Ducrot, principal nome da
Teoria da Enunciação, explica a ironia como maneira de fundamentar sua teoria
polifônica da enunciação. Para Ducrot (1987), não há apenas um único
responsável por um enunciado, mas pelo menos três entidades distintas: o sujeito
falante, o locutor e o enunciador. O primeiro é a pessoa de carne e osso
responsável pelo proferimento do enunciado (do ponto de vista estrito da Teoria
da Enunciação, esta entidade não interessa como objeto de estudo); o segundo é
o ente abstrato responsável pela enunciação e que pode ou não coincidir com o
sujeito; o terceiro, a entidade abstrata responsável pelo ponto de vista
expresso no enunciado. Em enunciados afirmativos simples, os três elementos
podem coincidir, como quando alguém afirma simplesmente “o dia está lindo”. Em
literatura, a questão pode se complicar, como no exemplo machadiano:
“Era o que eu pensava comigo,
quando Virgília se desfazia toda em afagos ao velho parente. Ela ia recebê-lo à
porta, falando e rindo, tirava-lhe o chapéu e a bengala, dava-lhe o braço e
levava-o a uma cadeira, ou à cadeira, porque havia lá em casa a ‘cadeira do
Viegas’, obra especial, conchegada, feita para gente enferma ou anciã.” (Assis,
1994, p. 92)
No excerto, o locutor é Brás Cubas
(aquele a quem se refere o “eu” utilizado), mas o enunciador do trecho que
menciona a “cadeira do Viegas” não corresponde a ele, e sim a Virgília ou aos
habitantes da casa, que cunharam o termo. Por fim, o sujeito do enunciado, a
pessoa de carne e osso que efetivamente escreveu aquelas palavras, é o próprio
Machado de Assis. A marcação pelas aspas facilita a identificação desse
concerto de vozes distintas (na fala, a entonação é frequentemente o
recurso empregado para demarcar a diferença). Entretanto, a ironia em
literatura é constantemente mais intrincada do que o exemplo citado,
manifestando-se não só no âmbito da frase, mas da própria construção discursiva
das obras como um todo. A esse respeito, faremos breves observações
considerando obras de três autores lusófonos.
O primeiro deles, Eça de Queirós,
em toda sua considerável obra, é daqueles escritores que, não importa o tema de
que tratem em seus livros, nunca se furtam a falar de seu próprio país.
Abordando seja o papel corruptor da influência eclesiástica, seja a decadência
moral da burguesia lisboeta, ele sempre teve como fim último falar de Portugal.
E não só falar do país, mas as convicções socialistas do autor e sua forte
propensão oposicionista (principalmente nas primeiras obras) o impulsionavam a
querer também emendá-lo. Daí ser possível, como fez Antonio Candido, enquadrar
a obra do autor português no espectro de seu engajamento político, situando
seus romances de acordo com o maior ou menor grau dessa necessidade de
consertar o país a partir de suas posições ideológicas.
Desse ponto de vista,
A ilustre
casa de Ramires, publicado em 1900 (apenas meses após a morte do escritor)
e considerado por muitos, ao lado de
Os Maias, a obra-prima de Eça,
situa-se em um preciso ponto de transição na obra do autor. Não mais o Eça de
Queirós altamente combativo dos primeiros romances, e sim um autor mais
ponderado, que tende a equilibrar melhor certos antagonismos que antes
apresentava de maneira mais unilateral. Nesse âmbito, a ironia do autor, que,
em romances como
O crime do padre Amaro e
O primo Basílio, tinha
um certo gosto pelo escândalo e pelo choque causado pela demonstração de falhas
morais, n’
A ilustre casa de Ramires é matizada a ponto de, na opinião de
Antonio Candido, seu protagonista, Gonçalo Ramires, ser o “primeiro personagem
dramático e realmente complexo” da obra do autor (Candido, 1971, p. 44).
No romance, o fidalgo Gonçalo
Ramires é instado por seu amigo José Lúcio Castanheiro a produzir um romance
sobre os feitos heroicos de seu nobre antepassado, Tructesindo Ramires, a fim
de publicá-lo na revista que está organizando, os “Anais de Literatura e de
História”. Castanheiro é o típico nacionalista ufano, detentor de um
patriotismo exagerado, e seu objetivo com o pedido feito a Gonçalo é atender à “necessidade,
caramba, de reatar a tradição! de desentulhar, caramba, Portugal da aluvião do
estrangeirismo!” (Queirós, 2000, p. 45). Para Castanheiro, era corrente um
“verdadeiro desprezo pela Pátria”, cujo remédio era “Revelar Portugal,
vulgarizar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de
Portugal, de modo que todos o conheçam — ao menos como se conhece o Xarope
Peitoral de James, hein? E que todos o adotem — ao menos como se adotou o sabão
do Congo, hein?” (Queirós, 2000, p. 51). Na figura de Castanheiro já surge uma
das primeiras inflexões irônicas do romance. O personagem, como se vê, não
busca a retomada crítica do passado, da tradição e dos antepassados
portugueses. Pelo contrário, almeja a completa vulgarização do passado
histórico, convertendo-o em valor de troca político e social (e mesmo
econômico), adornado por um possível enfeite mercadológico superficial.
Mas é a partir da escrita do
romance (que logo se converte em novela) por parte de Gonçalo que emerge o
principal veio irônico da obra, com o contraste evidenciado pela narração entre
os feitos épicos dos antepassados portugueses e a fidalguia mesquinha de
Gonçalo no presente. Contraste, aliás, já posto na fala inconsciente do próprio
Castanheiro que, ao encomendar a Gonçalo a produção da obra, compara este às
figuras históricas de Portugal:
“Trabalha agora no verão... Para
Portugueses, menino, o verão é o tempo das belas fortunas e dos rijos feitos.
No verão nasce Nuno Álvares no Bonjardim! No verão se vence em Aljubarrota! No
verão chega o Gama à índia!... E no verão vai o nosso Gonçalo escrever uma
novelazinha sublime!” (Queirós, 2000, p. 51).
É visível o efeito contrastante,
em que Gonçalo e sua “novelazinha sublime” fazem figura módica diante da
grandeza dos feitos e das figuras citados. E é este, em verdade, o procedimento
de que o livro retira sua força irônica: da novela de Gonçalo sobre as façanhas
de seu avô emerge uma voz que se opõe à narração principal, esta sobre o
próprio Gonçalo, e dessa oposição surge a principal crítica do livro, isto é, a
decadência política, econômica e principalmente moral de Portugal.
No entanto, a prudência da
maturidade modera os ímpetos juvenis da crítica de Eça. Aqui há espaço para uma
certa matização da figura de Gonçalo, que alcança alguma redenção ao final da
narrativa, demonstrando que muitos dos posicionamentos dos romances iniciais do
autor foram reavaliados, e suas motivações, sopesadas, de modo que, se a
crítica perde em corrosividade, ganha em discernimento. E assim a ironia
queirosiana alcança um ponto de equilíbrio em que enunciadores e locutores se
alternam por meio de narrativas encaixadas e através do uso do discurso
indireto livre, técnicas privilegiadas pelo autor neste romance. Os senões do
livro ficam por conta de certos cacoetes de Naturalismo a que Eça não resiste,
como a tendência à simplificação psicológica de personagens (que operam mais
como tipos) e o recurso algo desencaixado ao final-síntese, em que o autor
trata de colocar na boca de algum personagem a explicação do sentido alegórico
do texto, a fim de ratificar uma tese.
No segundo autor de que
trataremos, Machado de Assis, a questão se complexifica. Em romances como
Memórias
póstumas de Brás Cubas, por exemplo, a ironia deixa de ser uma ferramenta
entre outras para a obtenção do efeito crítico e alça-se a princípio
estilístico primário e fator estruturante da obra. Não há, na maioria dos
romances ditos de segunda fase do autor, a separação entre o discurso de um
narrador onisciente e o discurso de seus personagens protagonistas. O que temos
é unicamente a narração realizada pelo ponto de vista da personagem, o que
impede o discernimento imediato da ambiguidade discursiva, uma vez que não são
acessíveis, de pronto, as falas contrastantes no âmbito da tessitura da obra.
É claro que a ironia em suas
manifestações literárias sempre guarda em si, por natureza, algo de ambíguo,
nunca se prestando a desvelamentos óbvios. Todavia, em Machado, trata-se de uma
amplificação desse processo, que inviabiliza de todo a passividade do leitor ao
exigir-lhe a capacidade de distinção entre o discurso do narrador e o discurso
da obra em si quando não há mais, na superfície textual, essa separação.
É certo também que em Eça,
semelhantemente, não havia um narrador onisciente a explicar,
pormenorizadamente, a “moral” da história ao leitor ou o sentido irônico de
determinadas passagens do enredo, isto é, o leitor ali também era mobilizado a
buscar em outras instâncias a elucidação do efeito. Entretanto, a simples
adoção de um narrador onisciente (por mais concessões que faça ao discurso
indireto livre) como uma entidade literária separada da personagem principal já
apontava, no romance de Eça, para a tensão de vozes no interior da obra, e a
postura mais “neutra” desse narrador, que se exime de julgar as personagens
diretamente, é apenas a postura privilegiada pelo autor para a obtenção dos
efeitos particulares a que visa. Esse fator se perde em Machado, e o efeito
irônico se agudiza.
Trata-se, no caso do escritor
brasileiro e levando em conta o estado de nosso sistema literário à época (para
acenar mais uma vez a Antonio Candido), de uma literatura de alto risco,
disposta a demandar do público receptor a renovação de seus parâmetros para a
efetiva compreensão da obra. Afinal, quanto maior a complexidade da ironia,
maior o risco de que ela não seja percebida e, por consequência, maior o risco de
que o enunciador passe, aos olhos e ouvidos de quem o lê e ouve, de um
perspicaz leitor da situação a um desastrado observador da sociedade.
E foi justamente esse o caso da
recepção imediata dos romances de segunda fase do Bruxo do Cosme Velho. O uso
da narração em primeira pessoa, que assimila o discurso de seu personagem
principal e o alça ao primeiro plano no enfoque dado aos fatos narrados, aliado
ao estilo “ébrio”, aproveitado do humorismo à inglesa do
Tristram Shandy
de Sterne, representaram uma ruptura tão significativa na literatura
brasileira, que chegaram a embotar a visão dos críticos coetâneos, que tinham
dificuldade para enxergar em Machado um escritor que se dirigia aos problemas
verdadeiramente brasileiros, literários ou não. Daí o epíteto infeliz (para
dizer o mínimo) de “macaqueador de Sterne”, lançado por um crítico do porte de
Sílvio Romero.
O que é interessante notar é que,
se em Eça aquele concerto de vozes que distingue locutor e enunciador é mais
evidente em virtude das diferentes instâncias narrativas que a obra põe em jogo
(a narração da história de Gonçalo pelo narrador principal da obra e a narração
da história de Tructesindo por Gonçalo), no Machado das
Memórias póstumas
essa separação é mais sutil e requer do leitor uma certa afinação com
procedimentos literários específicos e com certas atitudes éticas e históricas
à luz das quais as atitudes do personagem principal podem ser observadas.
Se, em relação a Eça, a ironia
machadiana é mais complexa, no terceiro autor de que nos ocupamos, José
Saramago, ela é mais radical. Em Saramago, a enunciação irônica frequentemente
sofre uma radicalização tipicamente pós-moderna, na medida em que o objeto da
ironia é não mais uma determinada instituição ou determinados acontecimentos
históricos (pelo menos não somente), mas a própria maneira como se dá o
conhecimento histórico e a sua relação com a ficção e a imaginação.
Em
História do cerco de Lisboa,
romance de 1989, Saramago exemplifica bem essa radicalização irônica em uma
trama que lembra, em alguns aspectos, a do romance de Eça comentado
anteriormente. O romance de Saramago narra sobre Raimundo Benvindo Silva,
revisor de textos que é encarregado de revisar um livro de história do Cerco de
Lisboa, evento histórico que marcou a reconquista da cidade aos mouros pelos
portugueses, com o auxílio dos cruzados.
Acontece que Raimundo, tomado por
uma espécie de furor luciferino, um impulso digno de Mr Hyde — como compara o
narrador —, altera deliberadamente e de forma significativa o texto,
infringindo a mais basilar das regras de conduta de um revisor, isto é, a de jamais
alterar o sentido dos textos. Afinal, “para o revisor que conhece o seu lugar,
o autor, como tal, é infalível” (Saramago, 2017, p. 53), diz o narrador
ironicamente.
Dessa forma, onde antes se dizia
que os cruzados auxiliariam os portugueses a reconquistar Lisboa,
acrescentou-se um “não”, de modo que o livro passou a dizer que “os cruzados
NÃO auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa” (Saramago, 2017, p. 53). E,
com essa alteração expressiva, Raimundo remete o livro à editora, que logo
descobre a modificação e repreende o revisor. Entretanto, Maria Sara, a nova
diretora de revisores da editora e futuro interesse amoroso de Raimundo,
intrigada com as motivações do revisor, insiste para que ele escreva a sua
própria versão da história do cerco de Lisboa, uma em que os cruzados de fato
não auxiliem os portugueses na famosa empreitada. E assim Raimundo se vê, de
repente e sob encomenda, escritor, como o Gonçalo Ramires de Eça.
Saramago se movimenta nos terrenos
da ficção e da história, e sua ironia se propõe a demonstrar o quão movediço
são esses terrenos e os limites que os separam. Ao demonstrar que a simples
adição de uma palavra é capaz de modificar totalmente o sentido de um texto, o
romance ressalta o caráter essencialmente linguístico e humano do conhecimento
histórico e coloca em questão a suposta transparência discursiva dos textos
históricos ou informativos, segundo a qual o que importa são os seus conteúdos
e suas verdades, sendo as palavras meros invólucros que emprestam sua forma à
enunciação dos conhecimentos. Pelo contrário, o romance mostra, numa
radicalização, como se disse, tipicamente pós-moderna, que as palavras são
tudo:
“Os revisores, se pudessem, se não
estivessem atados de pés e mãos por um conjunto de proibições mais impositivo
que o código penal, saberiam mudar a face do mundo, implantar o reino da
felicidade universal, dando de beber a quem tem sede, de comer a quem tem fome,
paz aos que vivem agitados, alegria aos tristes, companhia aos solitários,
esperança a quem a tinha perdida, para não falar da fácil liquidação das
misérias e dos crimes, porque tudo eles fariam pela simples mudança das
palavras, e se alguém tem dúvidas sobre estas novas demiurgias não tem mais que
lembrar-se de que assim mesmo foi o mundo feito e feito o homem, com palavras,
umas e não outras, para que assim ficasse e não doutra maneira” (Saramago,
2017, p. 53-54).
Em que pese a nítida ironia do
narrador, que exagera as capacidades das palavras e da expressividade da
língua, as palavras detêm, como demonstra a narrativa, a propriedade de alterar
significativamente não os fatos históricos do passado, mas sua percepção no
presente, o que é um fato histórico por si.
Sendo assim, o revisor, que sempre
esteve encarregado “unicamente” das palavras, revela-se sempre ter sido um
escritor, ainda que com menos liberdade, e suas alterações sempre foram
alterações de sentido, ainda que nem sempre tão significativas. Assim, para
usar termos caros a Ducrot, com quem demos o pontapé inicial a este texto, a
ironia do autor da
História do cerco de Lisboa se dirige não apenas ao
dito, mas também ao dizer, e a desconfiança do leitor coloca em suspensão não
apenas os personagens ou um narrador assumidamente parcial (como nosso Brás
Cubas), mas a própria figura costumeiramente onisciente do narrador em terceira
pessoa. Saramago, dessa forma, nos lembra que não é só dos narradores em
primeira pessoa que devemos suspeitar.
Temos, assim, três autores, três
formas de manifestar a ironia na literatura, três formas de articular a
polifonia e a ambiguidade típicas desse recurso. Na observação de todas essas
manifestações, reafirma-se a literatura como lugar privilegiado da inquietação
e do cruzamento de vozes sem concessões nem saídas fáceis.
Referências
Ducrot, Oswald.
O dizer e o
dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987.
Candido, Antonio. Entre campo e
cidade. In:
Tese e antítese. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1967, p. 29-56.
Queirós, Eça de.
A ilustre Casa
de Ramires. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.
Saramago, José.
História do cerco
de Lisboa. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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