Para lembrar João do Rio, o ficcionista

Por Pedro Fernandes

João do Rio, 1912. Revista Fon Fon.



Como é comum para a imensa maioria dos escritores brasileiros, a obra de João do Rio encontra-se engalfinhada na mesma fila da longa espera por uma publicação organizada — definitiva, como se costuma dizer. Projetos dessa natureza são cada vez mais escassos num mercado editorial completamente seduzido pelo capital, e assim, quando muito, interessado apenas no essencial. E, nesse caso, o destino da obra do cronista padece ainda de outra miséria: entrada em domínio público, cada editor publica, muitas vezes, edições de qualquer maneira, visando o único critério do lucro.
 
Também, certa escolha dos destinos do nosso cânone, congeminada ao centralizador interesse do modernismo paulista, atingiu em cheio a obra do cronista da Belle Époque carioca; o seu e outros nomes ficaram presos no nebuloso limbo do pré-modernismo e mesmo aqui acabaram jogados para o fundo das estantes porque existiram, no tempo deles, certas obras mais aproximadas de ideias como a inovação ou renovação estética pela remodelação ou simplificação da linguagem. Qualquer obra em que tais critérios não estivessem evidentes ficou restrita à curiosidade e ao interesse de alguns pesquisadores e, sempre graças a eles, não se perdeu no esquecimento.
 
Nos últimos anos, mesmo por motivo duvidoso ou mesmo certa culpa inculcada na formação do nosso complexo cânone literário, decidiu-se por bem espanar o pó de alguns livros desses autores e trazê-los a público rodeados do nosso gosto por adjetivações. No caso do autor de A alma encantada das ruas os fatores podem ser pinçados em qualquer matéria entre as publicadas por ocasião do anúncio do seu nome como homenageado num dos principais festivais literários do país. O leitor atento perceberá que não é especificamente a obra o motivo que chega primeiro. É o que parece quando lemos em evidência as designações que o descrevem como um autor gordo, gay e preto (nesse último caso ignorando-se os registros de imagem, num caso ao lado do que se passa com Machado de Assis). Isto é, salva-se e homenageia-se João do Rio porque atende a uns tantos quesitos nesses nossos tempos em que os critérios identitários teimam em sobrepor os critérios estéticos, quando existem; o restauro ao avesso daquilo que um dia o condenaram.1
 
A situação da obra em evidência só não é mais grave, porque nesse tempo de limbo, alguns dos principais livros, uma vez centrados na dinâmica social, continuaram a receber edições esparsas; o referido A alma encantadora das ruas (1908) e As religiões do Rio (1904). Quer dizer, o trabalho de cronista e de jornalista, a dupla extensão que o fez reconhecido. Mas, sua produção ficcional e teatral, por exemplo, só começa a ser revisitada e a compor antologias com alguma frequência há pouco mais de uma década com a edição luxuosa que abriu o catálogo da Carambaia Crônica, folhetim, teatro (2015); antes disso, era conhecida a seleção de contos feita por Helena Parente Cunha para a coleção Melhores Contos, da Global, de 1990, e as antologias organizadas por Orna Messer Levin (a edição que primeiro reúne os textos teatrais do autor para a Martins Fontes, em 2002, e parte dos seus contos para a editora Lazuli, de 2010).
 
Parece que, antes dos escusos interesses de agora, começou a se estabelecer um movimento mais legítimo de resgate pouco depois de ingressarmos no século XXI. Mesmo assim, a reedição da obra individual, especificamente no âmbito ficcional, tal como organizada pelo autor ou mesmo a catalogação e publicação dos muitos inéditos dispersos em jornais assinados variadamente ainda é um trabalho à espera de ser publicado ou gestado no silêncio de gabinete de algum pesquisador cioso — como tem sido até agora — e que talvez não tarde mais vir à luz. Se assim, a pecha identitária terá realizado um feito singular.
 
Enquanto isso, uma primeira amostra desse possível, alcança os leitores com o título de Pavor dentro da noite pela editora Bandeirola. A casa, obviamente, pega carona no, ao que parece, restaurado interesse (se alguma vez este, de fato, existiu) entre uma parte dos leitores brasileiros para as narrativas interessadas no sobrenatural, no horror, no fantástico ou no insólito — um movimento visivelmente mais saudável que a ressurreição dos expedientes do naturalismo com as narrativas rentes à fome das pautas socioideológicas.
 
O pequeno e notável livro saiu no âmbito da charmosa coleção Clássicos Vintage, responsável por trazer ao público títulos como A ilha das almas selvagens, de H. G. Wells, O doutor negro, de Arthur Conan Doyle, Escalas melografiadas/ Fábula selvagem, de César Vallejo e Contemplação, de Franz Kafka — este último contemplado em matéria também para este site. A ideia de resgate, nesse caso, aparece articulada com alguns interesses vigentes entre os leitores e, além disso, oferecer novas maneiras de ler e abordar o conteúdo das obras. Soma-se a isso a releitura gráfica e original do livro para um público leitor que, sem esse estímulo, talvez não se interessasse em descobrir o que se encontra fora dos cardápios oferecidos (e impostos) repetida e excessivamente nas mídias sociais por editores e influenciadores (a nossa miséria mais recente no neocapital).
 
Pavor dentro da noite é atribuído a João do Rio. O escritor não publicou um livro com este título e mesmo o conteúdo daquele que melhor se aproxima da edição de 2024 possui duas pequenas, mas fundamentais, diferenças. Foi com Dentro da noite que o autor carioca realizou sua estreia em livro como contista; a edição de 1910, aparecida pela editora Garnier, braço francês que atendia na efervescente Rua do Ouvidor, saiu quando As religiões do Rio entravam na oitava edição e A alma encantadora das ruas na terceira. Até então, sua única incursão pelo livro de ficção havia sido com os contos para crianças desenvolvidos em colaboração com Viriato Correia no volume Era uma vez...
 
Fora isso, João do Rio havia publicado as crônicas de O momento literário (1905) e Cinematógrafo (1909); a peça Última noite, episódio dramático em um ato apresentado no Teatro Recreio Dramático a 8 de março de 1907; e as traduções de parte importante da obra de Oscar Wilde — Salomé, O retrato de Dorian Gray, Intenções e O leque de Lady Windermare —, revelando, claramente um de seus principais interesses e, por conseguinte, influência.2

A primeira edição de Dentro da noite (Garnier, 1910).


O livro Dentro da noite reuniu dezoito narrativas. Dessas, nove foram preservadas na edição de agora e em ordem distinta da original. São elas: “Dentro da noite”, “A mais estranha moléstia”, “A peste”, “O bebê de Tarlatana Rosa”, “História de gente alegre”, “Emoções”, “O fim de Arsênio Godard”, “Aventura de hotel” — e “O carro da Semana Santa”. Os contos do livro de 1910 deixados de fora foram: “Duas criaturas”, “Coração”, “A noiva do som”, “Sensação do passado”, “O monstro”, “A parada da ilusão”, “Laurinda Belfort”, “Última noite” e “Uma mulher excepcional”. Eis o primeiro detalhe de Pavor dentro da noite.
 
O segundo detalhe é o acréscimo do conto “Pavor”, retirado do livro Rosário da ilusão (1921). O texto fecha a nova antologia e justifica o novo título. A edição reúne ainda dois textos de apoio: um prefácio feito pelo escritor Hedjan C. S. e um posfácio concebido pelo professor Júlio França, nome reiterado no âmbito acadêmico quando o assunto envolve o horror e suas derivas. Falta o principal: um texto em que o organizador da antologia explique o funcionamento da antologia, como por exemplo, seus critérios de seleção e quais interesses com o livro. Sequer sabemos, aliás, a autoria do compilador; apenas que a edição se baseou na publicação realizada pelo Departamento Nacional do Livro, Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura — a versão em domínio público, certamente, o que não deixa de ser outro problema, afinal um cotejo com a edição original não significaria grande sacrifício se o livro de 1910 se encontra a um clique no acervo digital da Biblioteca Brasiliana.
 
De toda maneira é possível estabelecer algumas especulações fundamentando-nos no conteúdo do livro. A leitura dos dois contos que enfeixam a antologia — isto é, “Dentro da noite” e “Pavor”, situados também em tempos relativamente distintos se considerarmos suas versões aparecidas em livro — atesta uma transição do contista no interior dessa estética. No primeiro, o narrador, valendo-se da estratégia do sujeito que testemunha casualmente o relato, afinal ele ouve por baixo do sono o diálogo entre duas figuras durante uma viagem no trem noturno. Aqui, o horror se fixa exteriormente, na revelação aturdida do masoquista para o outro da interdição do seu envolvimento amoroso com Clotilde devido ao prazer de alfinetar a amada, prática que continua a exercer incontinente com outras mulheres na vadiagem urbana em trens e bondes dentro e nos arredores da cidade.
 
Em “Pavor”, a dimensão do horrível encontra-se embotada na própria psicologia da personagem; febril, de regresso das andanças vazias de um dia, o narrador entrevê um homem pelo registro da contínua perturbação de uma noite por uma mente encavalada entre o insone e o sono. Na treva do pequeno quarto de pensão, as imagens do cotidiano experimentado metamorfoseiam-se entre as conjeturas dos volteios mentais sempre em crescendo até adulterar os próprios contornos materiais da realidade, lançando-se para a região da indecibilidade entre o acontecido e o imaginado. Aqui, a narrativa investe mais no aparelho simbólico e não, como no texto anterior, no metafórico.
 
Essa transição, de maneira nenhuma simples, nos modos de apresentação e significação do horror na ficção do escritor talvez seja um entre os principais interesses norteadores para o antologista, quando reparamos que nos textos de Dentro da noite desconsiderados na antologia de 2024 a forma do primeiro conto aparece replicada com alguma variante.


O elemento agregador observado entre os dois contos — que funciona para o restante do livro e pode ser tomado com outro interesse na antologia — é a manifestação do citadino sob a percepção de suas personagens. Em João do Rio, o espaço da urbe e seus elementos nunca funcionam apenas como plano de fundo ou objeto decorativo. Em “Dentro da noite”, o trem em movimento no interior da noite, por exemplo, é parte da atmosfera tenebrosa que se imprime no desenvolvimento da confissão de Rodolfo; em “Pavor”, o quarto estreito e pequeno com uma única janela que abre para um pátio e porta para a escada — e mesmo a cadeira de balanço, o lampião a gás e o espelho — expandem os limites do que se faz perturbador para a personagem.
 
Hedjan C. S., no referido prefácio de Pavor dentro da noite, repara como o Rio de Janeiro do contista, obsessão que se imprimiu mesmo na construção do pseudônimo com o qual ficou reconhecido, era tratada como “Cidade da Morte” em razão da adversa condição urbana; que o jornalista passou a se interessar pelas zonas apinhadas do que a cidade de Pereira Passos regurgitava; e que o impacto do convívio direto do jornalista com essas circunstâncias registrado continuamente na crônica passou também à ficção. “Em seus contos, o autor nos apresenta situações sórdidas acontecidas em salas ricamente decoradas, em restaurantes finos, em hotéis frequentados por pessoas de estirpe. E, também, o que viu e ouviu nas ruas e becos da cidade, em enfermarias improvisadas, no trem.”
 
Ou seja, a visão abrangente favoreceu uma compreensão totalizante da cidade e a observação dos múltiplos estratos sociais com seus imaginários que ora se distanciam ora se imbricam. Melhor: com o desenvolvimento de uma percepção multifacetada se formou uma imaginação bem calcada na experiência do acontecido e não na fantasia, o que faz do seu horror não uma variante do excepcional, do inventado pura e simples, mas dimensão própria na ordem da realidade e das atitudes humanas. Explica-se, assim, porque sua atenção ficcional prefere não o antro periférico e sim os ambientes — e os indivíduos — requintados; seu interesse é pelo que se oculta e não no que a página de jornal se delicia contar e é, também, pela confusão entre o que se vê e o que se é.
 
“O Rio de Janeiro que emerge da ficção de João do Rio é assombrado e assombroso, guardando estreitas semelhanças tanto com a Londres de Oscar Wilde quanto com a Paris de Jean Lorrain. É o zeitgeist do início do século XX, a urbanização forçada atordoando seus habitantes” — sublinha Júlio França no posfácio de Pavor dentro da noite. O campo citadino é preferido pelas novas práticas de sociabilidade nele estabelecidas; se bem repararmos, o ato de ser visto transformado em se exibir para o outro favorecido pela vida urbana depura as qualidades metamórficas dos indivíduos derivadas do uso da aparência. Tal presença da cidade evidencia uma qualidade essencial do moderno, note-se, muito antes do que se processará mais de uma década adiante.
 
Por outro lado, as transformações de uma cidade que por reforma e decreto buscava se desvencilhar da pecha para se parecer europeia como é o caso do Rio do contista revela em escala maior os comportamentos individuais. É essa dialética que a ficção aqui em evidência tão bem captura ao se interessar pelo sinuoso ou pela confusão entre os limites do visto e não-visto. Pavor dentro da noite comprova, enfim, a urgência de conhecermos melhor parte essencial da rica literatura brasileira produzida no entre-séculos XIX e XX e quiseram apagar sob o critério do passadismo. Na verdade, assistíamos o desabrochar das idiossincrasias modernas sem alardes e ufanismos, como deve ser entre a boa literatura.


Ligações a esta post
>>> Leia a matéria sobre Contemplação, de Franz Kafka, referida neste texto.


Notas
1 Sabe-se que João do Rio alguma vez sonhou com uma carreira na diplomacia brasileira, mas certo dia, em 1902, o Barão do Rio Branco cortou a corrida para o Itamaraty com o argumento de ser “gordo, amulatado e homossexual”. É que o aponta Renato Cordeiro Gomes em João do Rio: vielas do vício, ruas da graça (Relume Dumará, 1996).
 
2 Fundamento-me aqui na lista disponibilizada na primeira edição de Dentro da noite. É provável que alguns trabalhos demonstrados então não tenham passado do plano das ideias. Um exemplo disso são as mencionadas publicações de Frivola City e Jornal de verão; até agora sabe-se que esses projetos não chegaram à realização.
 

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