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João do Rio, 1912. Revista Fon Fon. |
Como é comum para a imensa maioria
dos escritores brasileiros, a obra de João do Rio encontra-se engalfinhada na
mesma fila da longa espera por uma publicação organizada — definitiva, como se
costuma dizer. Projetos dessa natureza são cada vez mais escassos num mercado
editorial completamente seduzido pelo capital, e assim, quando muito,
interessado apenas no essencial. E, nesse caso, o destino da obra do cronista padece
ainda de outra miséria: entrada em domínio público, cada editor publica, muitas
vezes, edições de qualquer maneira, visando o único critério do lucro.
Também, certa escolha dos destinos
do nosso cânone, congeminada ao centralizador interesse do modernismo paulista,
atingiu em cheio a obra do cronista da
Belle Époque carioca; o seu e
outros nomes ficaram presos no nebuloso limbo do pré-modernismo e mesmo aqui
acabaram jogados para o fundo das estantes porque existiram, no tempo deles, certas
obras mais aproximadas de ideias como a inovação ou renovação estética pela remodelação
ou simplificação da linguagem. Qualquer obra em que tais critérios não
estivessem evidentes ficou restrita à curiosidade e ao interesse de alguns pesquisadores
e, sempre graças a eles, não se perdeu no esquecimento.
Nos últimos anos, mesmo por motivo
duvidoso ou mesmo certa culpa inculcada na formação do nosso complexo cânone
literário, decidiu-se por bem espanar o pó de alguns livros desses autores e
trazê-los a público rodeados do nosso gosto por adjetivações. No caso do autor
de
A alma encantada das ruas os fatores podem ser pinçados em qualquer
matéria entre as publicadas por ocasião do anúncio do seu nome como homenageado
num dos principais festivais literários do país. O leitor atento perceberá que não
é especificamente a obra o motivo que chega primeiro. É o que parece quando
lemos em evidência as designações que o descrevem como um autor gordo, gay e
preto (nesse último caso ignorando-se os registros de imagem, num caso ao lado
do que se passa com Machado de Assis). Isto é,
salva-se e
homenageia-se
João do Rio porque atende a uns tantos quesitos nesses nossos tempos em que
os critérios identitários teimam em sobrepor os critérios estéticos, quando
existem; o restauro ao avesso daquilo que um dia o condenaram.
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A situação da obra em evidência só
não é mais grave, porque nesse tempo de limbo, alguns dos principais livros,
uma vez centrados na dinâmica social, continuaram a receber edições esparsas; o
referido
A alma encantadora das ruas (1908) e
As religiões do Rio
(1904). Quer dizer, o trabalho de cronista e de jornalista, a dupla extensão
que o fez reconhecido. Mas, sua produção ficcional e teatral, por exemplo, só começa
a ser revisitada e a compor antologias com alguma frequência há pouco mais de
uma década com a edição luxuosa que abriu o catálogo da Carambaia
Crônica,
folhetim, teatro (2015); antes disso, era conhecida a seleção de contos
feita por Helena Parente Cunha para a coleção Melhores Contos, da Global, de
1990, e as antologias organizadas por Orna Messer Levin (a edição que primeiro
reúne os textos teatrais do autor para a Martins Fontes, em 2002, e parte dos seus
contos para a editora Lazuli, de 2010).
Parece que, antes dos escusos
interesses de agora, começou a se estabelecer um movimento mais legítimo de
resgate pouco depois de ingressarmos no século XXI. Mesmo assim, a reedição da
obra individual, especificamente no âmbito ficcional, tal como organizada pelo autor
ou mesmo a catalogação e publicação dos muitos inéditos dispersos em jornais
assinados variadamente ainda é um trabalho à espera de ser publicado ou gestado
no silêncio de gabinete de algum pesquisador cioso — como tem sido até agora —
e que talvez não tarde mais vir à luz. Se assim, a pecha identitária terá
realizado um feito singular.
Enquanto isso, uma primeira
amostra desse possível, alcança os leitores com o título de
Pavor dentro da
noite pela editora Bandeirola. A casa, obviamente, pega carona no, ao que
parece, restaurado interesse (se alguma vez este, de fato, existiu) entre uma
parte dos leitores brasileiros para as narrativas interessadas no sobrenatural,
no horror, no fantástico ou no insólito — um movimento visivelmente mais
saudável que a ressurreição dos expedientes do naturalismo com as narrativas rentes
à fome das pautas socioideológicas.
O pequeno e notável livro saiu no
âmbito da charmosa coleção Clássicos Vintage, responsável por trazer ao público
títulos como
A ilha das almas selvagens, de H. G. Wells,
O doutor
negro, de Arthur Conan Doyle,
Escalas melografiadas/ Fábula
selvagem, de César Vallejo e
Contemplação, de Franz Kafka — este
último contemplado em matéria também para este site. A ideia de resgate, nesse
caso, aparece articulada com alguns interesses vigentes entre os leitores e,
além disso, oferecer novas maneiras de ler e abordar o conteúdo das obras.
Soma-se a isso a releitura gráfica e original do livro para um público leitor
que, sem esse estímulo, talvez não se interessasse em descobrir o que se
encontra fora dos cardápios oferecidos (e impostos) repetida e excessivamente nas
mídias sociais por editores e influenciadores (a nossa miséria mais recente no
neocapital).
Pavor dentro da noite é
atribuído a João do Rio. O escritor não publicou um livro com este título e
mesmo o conteúdo daquele que melhor se aproxima da edição de 2024 possui duas
pequenas, mas fundamentais, diferenças. Foi com
Dentro da noite que o
autor carioca realizou sua estreia em livro como contista; a edição de 1910,
aparecida pela editora Garnier, braço francês que atendia na efervescente Rua
do Ouvidor, saiu quando
As religiões do Rio entravam na oitava edição e
A
alma encantadora das ruas na terceira. Até então, sua única incursão pelo
livro de ficção havia sido com os contos para crianças desenvolvidos em
colaboração com Viriato Correia no volume
Era uma vez...
Fora isso, João do Rio havia
publicado as crônicas de
O momento literário (1905) e
Cinematógrafo
(1909); a peça
Última noite, episódio dramático em um ato apresentado no
Teatro Recreio Dramático a 8 de março de 1907; e as traduções de parte
importante da obra de Oscar Wilde —
Salomé,
O retrato de Dorian Gray,
Intenções e
O leque de Lady Windermare —, revelando, claramente
um de seus principais interesses e, por conseguinte, influência.
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A primeira edição de Dentro da noite (Garnier, 1910). |
O livro
Dentro da noite reuniu
dezoito narrativas. Dessas, nove foram preservadas na edição de agora e em ordem
distinta da original. São elas: “Dentro da noite”, “A mais estranha moléstia”,
“A peste”, “O bebê de Tarlatana Rosa”, “História de gente alegre”, “Emoções”,
“O fim de Arsênio Godard”, “Aventura de hotel” — e “O carro da Semana Santa”. Os
contos do livro de 1910 deixados de fora foram: “Duas criaturas”, “Coração”, “A
noiva do som”, “Sensação do passado”, “O monstro”, “A parada da ilusão”, “Laurinda
Belfort”, “Última noite” e “Uma mulher excepcional”. Eis o primeiro detalhe de
Pavor
dentro da noite.
O segundo detalhe é o acréscimo do
conto “Pavor”, retirado do livro
Rosário da ilusão (1921). O texto fecha
a nova antologia e justifica o novo título. A edição reúne ainda dois textos de
apoio: um prefácio feito pelo escritor Hedjan C. S. e um posfácio concebido pelo
professor Júlio França, nome reiterado no âmbito acadêmico quando o assunto envolve
o horror e suas derivas. Falta o principal: um texto em que o organizador da
antologia explique o funcionamento da antologia, como por exemplo, seus
critérios de seleção e quais interesses com o livro. Sequer sabemos, aliás, a
autoria do compilador; apenas que a edição se baseou na publicação realizada
pelo Departamento Nacional do Livro, Fundação Biblioteca Nacional, Ministério
da Cultura — a versão em domínio público, certamente, o que não deixa de ser
outro problema, afinal um cotejo com a edição original não significaria grande
sacrifício se o livro de 1910 se encontra a um clique no acervo digital da
Biblioteca Brasiliana.
De toda maneira é possível
estabelecer algumas especulações fundamentando-nos no conteúdo do livro. A
leitura dos dois contos que enfeixam a antologia — isto é, “Dentro da noite” e
“Pavor”, situados também em tempos relativamente distintos se considerarmos suas
versões aparecidas em livro — atesta uma transição do contista no interior
dessa estética. No primeiro, o narrador, valendo-se da estratégia do sujeito que
testemunha casualmente o relato, afinal ele ouve
por baixo do sono o
diálogo entre duas figuras durante uma viagem no trem noturno. Aqui, o horror
se fixa exteriormente, na revelação aturdida do masoquista para o outro da
interdição do seu envolvimento amoroso com Clotilde devido ao prazer de alfinetar
a amada, prática que continua a exercer incontinente com outras mulheres na
vadiagem urbana em trens e bondes dentro e nos arredores da cidade.
Em “Pavor”, a dimensão do horrível
encontra-se embotada na própria psicologia da personagem; febril, de regresso das
andanças vazias de um dia, o narrador entrevê um homem pelo registro da
contínua perturbação de uma noite por uma mente encavalada entre o insone e o
sono. Na treva do pequeno quarto de pensão, as imagens do cotidiano experimentado
metamorfoseiam-se entre as conjeturas dos volteios mentais sempre em crescendo
até adulterar os próprios contornos materiais da realidade, lançando-se para a
região da indecibilidade entre o acontecido e o imaginado. Aqui, a narrativa
investe mais no aparelho simbólico e não, como no texto anterior, no metafórico.
Essa transição, de maneira nenhuma
simples, nos modos de apresentação e significação do horror na ficção do
escritor talvez seja um entre os principais interesses norteadores para o
antologista, quando reparamos que nos textos de
Dentro da noite
desconsiderados na antologia de 2024 a forma do primeiro conto aparece replicada
com alguma variante.
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