Os grandes carnívoros, de Adriana Lisboa

Por Gabriella Kelmer

Adriana Lisboa. Arquivo TV Brasil.


 
Em outra oportunidade, observei como os romances recentes de Adriana Lisboa se articulam a partir da perpetuação de algumas temáticas que servem como princípios organizadores da experiência de mundo das suas personagens. A partir desses temas, fundamentam-se camadas de sentido às experiências, já então vinculadas pela ação analítica do ser ficcional. Gera-se, por esse mecanismo, um encadeamento entre tempos, temas e espaços que, antes de ser simbólico a priori, permite entrever o tatear exploratório de uma consciência que transforma a vida em enunciado.
 
Retornei a essas considerações após a leitura de Os grandes carnívoros, romance mais recente da autora, publicado pela Alfaguara em 2024, e elas ainda me pareceram válidas frente ao novo ato literário. A prosa analítica e sensível da autora — adjetivos cuja contradição exterior é facilmente desfeita pela leitura da obra, na qual se manifestam seres ficcionais articuladores que sentem o mundo profusamente a partir de uma linguagem direta e alusiva, despretensiosa e comovente — permanece capaz de dar lastro e fundura a qualquer número de temas, gerando concatenações produtivas àquilo que discute. No caso da última publicação, podem-se elencar os direitos dos animais, o tarô, a gênese do mundo segundo a visão indígena dos povos Desana, a violência. É por meio desses mecanismos que a protagonista se propõe a compreender a vida ao seu redor.
 
A essência da obra, no entanto, a ser apreendida entre os diferentes elementos que constituem as identificações da protagonista, emerge daquilo que a linguagem resvala e não verbaliza. Evidenciado o procedimento analítico e os fundamentos que articulam a racionalidade da personagem central, a vivenciar uma repatriação enquanto lida com um passado ressonante no estrangeiro, suspendem-se os fechamentos e as sínteses, sendo necessário, no rastro da personagem, estabelecer as vinculações entre tudo aquilo que constitui a consciência do ser ficcional.
 
Reside aí a força da prosa de Adriana Lisboa, que nunca se torna esquemática, embora seja possível entrever como essa saída seria possível aos seus textos. Permanecem evidenciadas as pontes construídas pela volição da personagem, mas não o lugar para onde elas conduzem. Os segredos da narrativa, quando descobertos, põem nus os procedimentos e a mão que conduz a obra, sem, entretanto, diminuírem a força da criação literária. Dessa maneira, quando temática anterior é evocada em um acontecimento, não fica a impressão de um desdobramento calculado, embora seja evidente e proposital a relação. Esse efeito pode ser devido ao fato de pulsarem, em ocasiões como essa, não os movimentos rigorosos de um enredo acabado, mas as reelaborações fundamentais à brusca atrição do ser com a vida.
 
“Tudo acontecendo em sincronia. Um homem rema num paddle board na costa da Califórnia, e por baixo dele nada uma baleia. Bem ao seu lado, uma mulher olha para o fogo, que se alastra depressa. Uma mulher cai de uma bicicleta, uma mulher despenca de uma encosta com seu carro na neve. Os Amantes, arcano seis, a escolha. A Carruagem, arcano sete, o movimento. E depois do movimento se volta à escolha. Recolhem-se os fios dos labirintos. Estar no centro e na entrada, que é também a saída, tudo ao mesmo tempo. E o bicho parte humano parte touro que habita o labirinto não é o inimigo. É só um espelho.” (Lisboa, 2024, p. 169)
 
Para a protagonista de Os grandes carnívoros, Adelaide, foram consideráveis as desventuras passadas. Ao alugar uma casa na serra da Mantiqueira, a alguns quilômetros da família que deixara na capital carioca, ela busca um recomeço depois de um longo período nos Estados Unidos, onde viveu e foi presa como ativista pelo direito dos animais. São latentes as memórias da vida antes do encarceramento, assim como é dolorido o desajuste do retorno. Conquanto haja o elemento memorialístico, que reconstitui o despertar de Adelaide para a causa animal e o seu envolvimento com as ações de ativismo que eventualmente a levam à prisão, é no presente que a obra se constitui. A leitura do tarô, a reflexão acerca da natureza do ato violento (que anda a par com a violência da própria natureza) e a tentativa de relembrar amigos ausentes são recursos sobre os quais se equilibram fatos novos, como o relacionamento com o proprietário da casa onde vive e o adoecimento vertiginoso de seu pai, demandas de um agora que introduz complicações mesmo no contexto de isolamento buscado pela personagem.



O espaço da nova moradia, onde se convive com a extensiva passagem do tempo e o falatório das cidades pequenas, é refúgio e tentativa de reorganização em um momento em que janelas abertas e idas e vindas geram ainda respostas emocionais. Todavia, a vida logo se interpõe, implacável, e a interpela antes que venham as curas e as conclusões. A tentativa de compreender é, nesse sentido, feita a caminho, e aos traumas antigos logo assomam-se novas dores.
 
A defesa dos direitos dos animais são uma marca irredutível da subjetividade de Adelaide, consistindo em um elemento fundamental à identificação da personagem ao longo de toda a obra, seja na lembrança aguda de um cachorro maltratado em sua própria casa, na simbólica história de um homem que escapa à morte quando confrontado pela presença de um tigre-de-bengala, ou na reminiscência de idas a espaços de resgates de animais que seriam mortos pela indústria alimentícia. Para a protagonista, René Descartes é um monstro pelo que fazia com os animais em seu tempo, enquanto “todas as sinfonias de Beethoven não justificam um único matadouro” (Lisboa, 2024, p. 165). Em sonho, uma égua traz uma mensagem que põe em questionamento a cultura, a taxonomia, as classificações — tudo aquilo que, humano, estende as distâncias entre seres vivos.
 
Tudo isso, todo o processo de constituição dessa cosmovisão, soa autêntico. O romance convence no trato das temáticas que se dispõe a discutir, por meio de uma perspectiva que, adotando o discurso indireto livre, retraça proximamente os passos que levaram a personagem a colocar em risco a própria liberdade.
 
De outro modo, há a discussão dos homens, da violência de que são capazes, da violência que é incutida na convivência com outras espécies. A perspectiva de Adelaide é reflexiva, crítica, e ela busca nas próprias mãos a marca do potencial para a agressão, mas, ao mesmo tempo, suas experiências — as do passado e as que adquire ao longo da obra — não são capazes de endurecê-la inteiramente. Ainda há nela ingenuidade, expectativa, força para o combate. Se são paralelas a violência contra o outro, a violência por uma causa, a violência como realidade animal, elas dificilmente se confundem, e quando a vida natural exuberante da Serra da Mantiqueira encontra a volição destrutiva e abusiva do homem, é ainda o retorno à troca primordial do corpo com a natureza — metonimizada pela água de um rio — que constitui o recomeço da personagem.
 
“Durante toda a noite um animal (um sonho) resfolega, cascos batem no chão, o animal está alvoroçado. Mas talvez seja a ventania doida agitando os galhos das árvores, as folhas. Não há nada para você aqui. As janelas fechadas ficam se debatendo dentro da própria moldura como se quisessem fugir. Um dia foi um tempo de borboletas-amarelas, Adelaide menina, oito anos de idade. No dia seguinte é um tempo de janelas se debatendo dentro da própria moldura e a menina que não tinha ainda uma década de vida é agora uma mulher com mais de quatro. Às vezes os animais ficam assim, alvoroçados. // Não há nada para você aqui, diz a égua no sonho de Adelaide. Nada.” (Lisboa, 2024, p. 124)
 
Existem marcas na dicção da autora — seu lirismo simbólico, suas personagens em deslocamento espacial — que permitem agrupar seus romances e reconhecer neles uma mesma criadora. Essa identificação também é encontrada em Os grandes carnívoros. Essa proximidade entre as obras, longe de ser um defeito, noção que implicaria erroneamente uma atribuição negativa à individualização dos procedimentos artísticos por parte de um autor, significa que os leitores podem esperar mecanismos composicionais similares às obras anteriores da autora.
 
É preciso ressaltar, nesse ponto, que, embora uma leitura prazerosa, Os grandes carnívoros não me pareceu ter a mesma força de romances anteriores, talvez pela irmandade com aqueles, cuja novidade era maior. Ainda assim, igualmente imbuído de segredos catárticos ou em alguma medida transformadores, este romance é ainda muito eficaz em esconder seus desdobramentos, obrigando o leitor a reelaborar o que concebera sobre a obra no momento da revelação. Por tudo isso, apresentando a qualidade despretensiosa e tocante dos romances de Adriana Lisboa, eis um lançamento que vale a leitura.


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Os grandes carnívoros
Adriana Lisboa
Alfaguara Brasil, 2024
176p.

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