Por Guilherme França
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Orígenes Lessa. Foto: Arquivo IMS (detalhe) |
Durante uma entrevista, certo
escritor disse, com ironia, a seguinte frase: “nunca vi no jornal uma vaga de
emprego para intelectual”. Por óbvio, a ironia está no fato de que ser um intelectual
não é, em si, uma profissão. Mas a frase também escondia uma fina crítica ao
fato de que os estudos se tornaram quase sempre instrumentais, ou seja, para
que se possa
fazer alguma coisa; o estudo precisa ter uma finalidade
clara (para quê?) para então possuir alguma utilidade. Não costumamos,
portanto, enxergar o estudo como um valor em si, que contribui para o
crescimento e formação do próprio indivíduo; em vez disso, o enxergamos, na
maioria das vezes, apenas como um meio de ascensão socioeconômica.
Trazendo essa reflexão inicial para
a literatura, na obra
O feijão e o sonho, de autoria de Orígenes Lessa e
publicada pela primeira vez em 1938, temos, na minha opinião, uma das melhores
e mais fidedignas narrativas a respeito dessa realidade vivenciada por quem
deseja viver para algo além da materialidade que nos cerca diariamente. Nela, o
protagonista José Campos Lara (Juca) compreendeu na prática o abismo muitas
vezes existente entre a vida contemplativa, digamos, e a vida prática; o personagem
sentiu na pele o fato de que ser um intelectual (aqui pensado como alguém
erudito
e interessado pelas distintas faces da cultura como um todo) não é, nem de
longe, a garantia de um bom emprego ou da tão almejada estabilidade financeira.
A obra mostra a distância, o contraste e o drama que existe quando as
inclinações ligadas à erudição esbarram na dura realidade que nos exige um trabalho
instrumental, burocrático ou que ao menos resolva um problema concreto em troca
de algum dinheiro. Noutras palavras, o personagem percebeu — ou foi compelido
por sua esposa a perceber — que, no seu caso, a literatura
não enchia
a barriga, como se diz. Aprofundemo-nos na obra.
Juca é retratado como um homem
culto, letrado e apaixonado por poesia, um sonhador daqueles sonhos vagos e
românticos que sabemos possuir em alguma medida todo escritor, ao ponto de ter
ele próprio se tornado um reconhecido poeta em determinado momento da vida. No
início da carreira, escrevia para jornais, trocava cartas com algumas
personalidades do círculo literário e do jornalismo, encontrava-se com outros
poetas e tinha seu nome frequentemente citado nas rodas de conversa. Essa fama
contribuiu em boa parte, inclusive, para que se casasse com Maria Rosa, que via
naquele homem o cume da inteligência.
Ocorre que por intempéries da
vida, que o leitor poderá conhecer no contato com o livro, Juca acaba sendo
forçado a se mudar com sua família para o interior e passa a dar aulas para um
pequeno grupo de garotos numa cidadezinha, colocando fim ao prestígio e
reconhecimento de outrora e, o pior, agora com um pagamento que mal dava conta
das compras feitas pela esposa no mercadinho perto de casa: faltava arroz,
feijão, farinha, carne e tudo o mais, tornando comum na rotina do casal o
empréstimo de dinheiro e a cobrança vexatória pelos pagamentos em atraso. É
nesse contexto que o coração da história se desenrola, com os sucessivos
embates entre Maria Rosa e Juca; enquanto ela cobrava o marido por melhores
condições materiais e para que este enfim aceitasse as ofertas de um emprego
formal e burocrático, ele se mantinha firme no seu propósito de continuar a
escrever poesias e fazia pouco caso das dificuldades financeiras. Alguns
diálogos marcam essas divergências e por isso podemos nos deter com mais
atenção a eles.
Durante um almoço, Juca explica
que tem estado ocupado, enquanto a esposa ironiza a sua ocupação e diz que a
tarefa do marido se resume a fazer versos, complementando: “— Quando é que você
há de abrir os olhos, criatura? Sair do mundo da lua, cair na realidade, no
feijão duro? [...] você precisa compreender, Juca, que estamos num mundo
diferente, que o açougueiro não se paga com versos...”. A seguir, ao dialogar a
respeito da criação dos filhos, enquanto o pai reafirma o seu desejo de que as
crianças sejam educadas intelectualmente da melhor forma possível, a mãe afirma
que “filho meu, eu prefiro que seja burro, contanto que preste para o trabalho,
que saiba ganhar dinheiro!”.
Nesses diálogos inicias já podemos
perceber uma nítida diferença de percepção da realidade que não se encerra nesta
ficção de Orígenes Lessa, que, ao contrário, consegue demonstrar com perfeição
um contexto que somos capazes de vivenciar todos os dias, a depender dos
ambientes e das pessoas com as quais convivemos. Embora poucos sujeitos tenham
o nível de indiferença e apatia de Juca com relação às contas da casa, o que
particularmente vejo como um vício ou fraqueza do personagem, essa oposição
entre os interesses
materiais e os interesses
intelectuais é
corriqueira.
Exemplificando essa fala, pensemos
no sujeito hipotético que conhece todas as atribuições de seu trabalho e a cada
ano ganha uma promoção de seu chefe; recentemente comprou até mesmo aquele
carro que queria e fez uma viagem quase que integralmente compartilhada nas
redes sociais. Porém, se questionado sobre a cultura do país que visitou, nada
sabe dizer; ao mudar o rumo da conversa, nosso amigo tampouco consegue dialogar
minimamente sobre a religião que professa, sobre a filosofia de um autor
qualquer, sobre a literatura nacional ou estrangeira, sobre a origem e
desenvolvimento de nosso povo etc. Tudo isso, segundo ele, “fica para depois”.
Inclusive a constituição de sua própria família, pois custa caro. E o tal depois,
por vezes, nunca chega. O que interessa, na verdade, é que nosso amigo está bem-visto
pelos círculos de amizade, ainda que não saiba quem é ou de onde veio.
Retornando ao livro, as
dissonâncias entre marido e mulher se tornam cada vez mais frequentes e profundas.
Novamente, Maria Rosa declara preferir que os filhos cresçam “bem burros”, mas
que ao menos prestem para trabalhar num armazém. E a conversa segue:
— Ora, Rosinha, você já começa com
as suas! Você sabe que a nossa desgraça é justamente o analfabetismo, a
incultura...
— Não sei, não. O que é que você
ganhou com tanta leitura, com tanto livro, com tanta bobagem? Não dá nem pra
pagar o feijão... [...] antes um burro bem alimentado do que um poeta com fome!
A discussão chega mesmo até
Camões, quando Maria Rosa afirma que o próprio marido havia dito que este reverenciado
escritor havia pedido esmola, ao que Campos Lara responde alegando que mesmo
morrendo na miséria, havia escrito Os Lusíadas e ganhado um nome imortal;
encerra indagando à mulher: “— Sabe-se que Camões pediu esmola. Mas alguém sabe
quem deu esmola a Camões?”, e segue advogando na compreensão de que fincar o
nome na história, ainda que sem bens materiais, seria mais relevante do que
viver de forma estável. Maria retrucou, por fim, dizendo que, em vida, Camões
certamente devia preferir um bom pão com manteiga ao reconhecimento.
A história segue retratando a vida
do casal, retornando ao momento em que se conheceram e explicando tudo o que
passaram até ali; depois, a narrativa caminha mostrando os diálogos de Juca com
homens da vizinhança, depois de ter se queixado da falta de conversar com quem
o compreendesse; os problemas que arranjou com o padre da cidade após uma
conversa de botequim e a sua rápida passagem por um emprego na empresa de um
parente bem-sucedido, que Maria Rosa o forçou a aceitar, o que foi motivo de
grande frustração no poeta. Deixo que o leitor conheça por si próprio o final
da história, pois entendo que o cerne de toda a discussão existente nesta grande
obra já foi apresentado.
Essas passagens são o suficiente
para refletirmos a respeito de como nos posicionamos neste corriqueiro
confronto entre as obrigações impostas pelo cotidiano e que de fato precisamos
cumprir e a elevação de nossa personalidade pelo contato com tudo aquilo que
nos faz refletir como que do lado de fora do tumulto da existência diária, como
a arte, a música, a literatura, a filosofia, a religião etc. Sabemos que não é
fácil equilibrar esse jogo, sobretudo ao longo dos atarefados dias da vida
moderna. No caso de Juca, se fosse possível uma analogia, poderíamos dizer a
sua postura diante da poesia se parecia com aquela orientada por Cristo no Evangelho
de Mateus: “Buscai primeiro o reino de Deus”, num claro aviso de que as
consternações materiais desta vida estão sempre em segundo plano; entretanto, nos
dias de Campos Lara, a figura de Deus parecia ter sido substituída pelo seu
desejo, quiçá egoísta ou mesquinho, de se trancafiar no mundo da ideias,
tornar-se um grande poeta e ser capaz de ignorar as imposições que sofremos
neste vale de lágrimas. Eis a complicada balança que sopesa vícios e virtudes.
Dessa forma, compreendo que Orígenes
Lessa foi capaz de realizar de maneira sublime aquilo que ficou — por vezes propositalmente
— deixado de lado em muitos momentos de nossa literatura: o ato de retratar a
realidade a partir da forma como ela verdadeiramente se apresenta, assim como
os dilemas essencialmente humanos que nela existem, sem se utilizar da função
de escritor para produzir menos uma história e mais uma crítica social vanguardista.
Mas isto é assunto para outro momento. Para além desse aspecto mas atrelado a
ele, O feijão e o sonho não propõe soluções para os dilemas que o
intelectual enfrenta diante das necessidades materiais, mas os retrata de forma
sensível, por vezes humorística e sempre demonstrando o grande talento de seu
autor, que certamente deixou em Juca alguns traços de sua própria vida e de
suas próprias angústias.
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