Mesmo agora
que tudo se desmoronou
Recordo a minha amada
luminosa
Como uma grinalda de douradas
flores
A pelugem negra que desaguava no
seu umbigo
O corpo fremente de desejo ao
acordar
Mesmo agora se a visse de
novo
A essa rapariga de olhos de lótus
O corpo soçobrando devido ao peso dos seios
Estreitá-la-ia entre os meus braços
E beberia da sua boca como um louco
Como uma abelha insaciável sugando uma flor
Mesmo agora
recordo a minha amada
Na dança selvagem do amor
Curvada devido ao peso dos seios
O corpo esguio consumido pelo
desejo
O rosto transparente como a lua
cheia
Submersa pelos seus longos cabelos
Mesmo agora
recordo a minha amada
Cavalgando por cima de mim
O seu esforço de vaivém
constelava
A sua pele de cachos de pérolas
Gotas claras e espessas de suor
Recordo o pendente de ouro
Roçando as suas maçãs do rosto
Mesmo agora
recordo os seus olhos
Suplicando que a possuísse
os membros
Trémulos da intensidade do prazer
Recordo por detrás do véu caído
As curvas voluptuosas dos seus
seios
E nos lábios as marcas dos meus
dentes
Mesmo agora
assalta-me a recordação
Desses olhos de corça assustada
Dessa voz trémula das lágrimas que lhe invadiam
A face da cabeça vergada sob o peso da amargura
Quando escutou a minha sentença
Mesmo agora o meu coração sofre noite
E dia por nunca mais poder voltar
A ver nem que seja por um instante
Esse rosto belo como a lua cheia
Cuja frescura faz empalidecer os jasmins
Mesmo agora
recordo a beleza doirada
Do seu corpo sugerindo fadiga
Para não parecer impúdica
Perturbada pelos meus beijos
apaixonados
E pelo contacto das nossas coxas
Ela deixava — como uma planta por
onde
Sobe a seiva — que o desejo a
possuísse
______
Atribui-se a Bilhana Kavi, nascido
no século XI em Caxemira, na Índia, a autoria deste
Caurapankasika.
Trata-se dum poema muito popular nesse país, composto em sânscrito e contando
com cinquenta estrofes, todas elas quadras. (Na versão portuguesa,
contudo, cria-se a ilusão de se tratar de cinquenta poemas soltos, e nem todos seguem
o esquema original, isto é, não se organizam em quadras.)
Segundo a lenda, pois dados
factuais é coisa que não abunda nesta história, o Rei Madanabhirama elegeu
Bilhana, um brâmane, como preceptor de sua filha (se o estimado leitor
considerou o nome do governante difícil de pronunciar, veja só a graça do seu formoso
rebento: Yaminipurnatilaka). O primeiro encontro atiçou, em ambos, centelhas
que nem sabiam aguardar apenas um sopro para se consumirem num incêndio devastador.
Esclareça-se que uma das disciplinas leccionadas era a arte erótica, o que
decerto alimentou o desabrochar desta paixão intensa, deveras avassaladora.
Pode espantar o leitor menos
acostumado à literatura oriental o nome e respectivo conteúdo de tal
disciplina, mas na Índia de então o sexo era visto como algo perfeitamente
natural, uma prática contornada por um halo de sacralidade. Basta lembrar a
filosofia
Tantra ou a obra
Kama Sutra para comprová-lo. Até em
certos templos era habitual encontrar baixos-relevos ilustrando diversas
posições do acto sexual. Muito do que da Índia antiga chegou até aos nossos
dias compreende, e não deixa de ser curioso, poemas de índole erótica.
Tamanho crime não passaria
despercebido, ainda menos impune. Detectada a transgressão, Bilhana foi
encarcerado e condenado à morte por empalamento. Porém, neste ponto os relatos
divergem, pois em certas versões o poeta é condenado à forca e noutras ao
exílio. Há, digamos, um conjunto de versões com um final trágico e outro com um
desfecho mais satisfatório para os aficionados de romances floreados.
Uma facção dessas histórias refere
que esta obra terá sido escrita na prisão, enquanto Bilhana aguardava o seu
julgamento; outras, nitidamente carregadas dum maior fôlego poético, afirmam
que as estrofes foram declamadas de improviso enquanto o poeta subia, um por
um, os cinquenta degraus que o levariam ao cadafalso. Segundo esta versão, os
versos nascidos desse gesto tão inspirado exalavam uma tal beleza que a própria
Kali, uma manifestação da deusa Parvati, esposa de Shiva, intercedeu junto do
Rei para que a condenação não fosse levada a cabo.
Independentemente do que terá
realmente acontecido, já que a ausência de provas claras levou decerto ao
incremento de versões fantasiosas sobre o nascimento deste longo poema, a
verdade é que o
Caurapankasika é uma das obras mais populares
da Índia antiga, preservada pela tradição oral — o que justifica os diversos
manuscritos existentes, não só elaborados em diferentes línguas como contando
com desenlaces distintos.
Resta acrescentar que se trata do
primeiro trabalho literário de origem hindu a ser traduzido para uma língua
europeia, no caso o francês, no ano de 1848.
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