O romance do qual todos (e quase ninguém) falam

Por Bárbara Ayuso

Christina Stead. Foto: Robert McFarlane


 
Como a maioria, você não sabe quem é Christina Stead. Não se preocupe, ninguém dirá que a culpa é sua ou o chamará de um ignorante blasfemo. Porque os outros — que encheram o peito na primeira linha, refutando com  “eu sim” — também sabem que encontrar esta escritora não é fruto de dedicação bibliófila ou de erudição, mas sim parte do acaso e de um empurrãozinho. Nesse caso, mais do que uma lacuna literária, é uma história de fantasmas com uma estrutura romanesca que carece de um bom começo.
 
Christina Stead (1902-1983) morreu com alguns livros nas costas, mas sem saber, além de boatos, o que era sucesso ou reconhecimento. O alfabeto do malditismo, mas sem a tragicomédia de John Kennedy Toole. Publicou quinze romances e alguns contos, mas basicamente ganhou o pão de cada dia como professora e ocasionalmente como roteirista na Hollywood dos anos quarenta. Os críticos que prestaram atenção à publicação de O homem que amava as crianças, em 1940, consideraram este um livro medíocre e as vendas acompanharam essa opinião. Mesmo assim, ela continuou escrevendo e saltando de continente em continente — Estados Unidos, Austrália, Reino Unido, Espanha — enquanto sua obra ganhava fama discreta na esfera literária de sua terra natal, Sydney.
 
O livro, como dizíamos, abriu caminho aos trancos. A mais importante leitura crítica aparece pela mão do poeta Randall Jarrell vinte anos depois num prólogo elogioso de mais de trinta páginas para a edição estadunidense. Sob o título “Um livro não lido”, inaugurou o que seria a marca característica da obra de Stead para a posteridade: ser elogiado, mas não lida. O impulso e os elogios retumbantes de Jarrell —  ele chega a compará-la com Tolstói — colocaram a autora no círculo literário e acadêmico nos Estados Unidos, mas não saiu de lá. A singular crítica Elizabeth Hardwick também tentou fazer com que o grande público conhecesse Stead com o ensaio “The Neglected Novels of Christina Stead”, que trouxe certo renome entre os escritores de sua geração, e pouco mais. Durante anos, ela continuou permanente entre as raridades requintadas e fantasmagóricas que os conhecedores passavam de boca em boca, enquanto em seu país natal ela recebia o Prêmio Patrick White pela promoção da cultura australiana. Também não escapou da censura, mas isso é outra história.
 
O próximo capítulo, o próximo empurrão, precisou chegar 2010 para acontecer. Para compensar a espera, foi feito na melhor tribuna e pelo melhor divulgador, por mais que esteja morto, que alguém escolheria. O escritor Jonathan Franzen escreveu um ensaio sobre O homem que amava as crianças na New York Times Review of Books por ocasião do septuagésimo aniversário da sua publicação, marcando um começo que é um desperdício de discernimento e um exercício indisfarçado de psicologia reversa:
 
“Há uma série de razões pelas quais O homem que amava as crianças não deveria ser lido neste verão. É antes de tudo um romance; e não chegamos muito secretamente a uma espécie de acordo, há um, dois ou três anos, de que os romances pertencem à era dos jornais e seguem o mesmo caminho que a imprensa, só que a uma maior velocidade? Como costuma dizer um velho amigo meu, professor de inglês, os romances constituem uma questão moral curiosa, no sentido de que nos sentimos culpados por não ler mais, mas também por fazer algo tão frívolo como lê-los; e não nos sentiríamos todos melhores se carregássemos uma culpa a menos neste mundo?”
 
Além de ser um dos autores do momento àquela altura, Franzen pertence aos tipos para os quais recomendar uma obra não é falar bem dela, mas torná-la verdadeiramente apetecível.
 
Uma história de fantasma
 
Alguns meses depois, D. T. Max, biógrafo de David Foster Wallace, se viu preso em uma das armadilhas comuns para quem trabalha juntando letras: encontrar um título. Com a obra acerca da vida do escritor praticamente concluída, chegou às suas mãos sua correspondência com Richard Elman, onde Wallace deixou cair uma daquelas frases que pedem mármore: “Toda história de amor é uma história de fantasmas”. Encaixava perfeitamente, condensava a aura única dos títulos do Século de Ouro espanhol que deslumbravam Max. Mas algo não fazia sentido, algo tão inofensivo quanto aspas. Foster Wallace incluía a frase entre aspas, sugerindo que era uma citação de outra pessoa e não um produto de sua colheita pessoal. O biógrafo puxou o fio, rastreando a autoria definitiva, e após inspecionar correspondências de alguns prováveis ​​autores, como Virginia Woolf, concluiu que aquilo havia saído da imaginação de Wallace e, consequentemente, merecia intitular sua biografia.
 
Então, um mês antes de o livro ser colocado à venda, o documentarista tropeçou no nome de Christina Stead. O artigo de Franzen no Times ressuscitou um fantasma e, com ele, começava a combinar a existência empírica com a existência efetiva. Isto é, Stead já aparecia no Google. Foi assim que o biógrafo do David Foster Wallace soube que “Toda a história de amor é uma história de fantasmas” foi o título da escritora australiana para uma obra que nunca foi publicada, sobre a história de amor com o marido, o escritor William J. Blake. Além disso, havia incluído em uma carta pessoal ao poeta Stanley Burnshaw, o que deixava D. T. Max num beco sem saída onde as datas não se encaixavam. Era ela a verdadeira autora da frase? Poderia Foster Wallace ter tido acesso a essa correspondência privada de alguma forma? E o esboço da obra inédita? Ele havia encontrado uma das autoras favoritas de Wallace, mas essa citação, era lícito atribuir a ele? O escritor se apropriava de Stead? O biógrafo viu-se encurralado e contou a peripécia rocambolesca numa edição da New Yorker, que o levou aos arquivos pessoais da autora em Camberra, talvez em antecipação a futuras solicitações. Mesmo assim, manteve o título da biografia, porque se há uma coisa que as histórias de fantasmas sofrem é a falta de uma explicação plausível. Max concluiu que a influência literária também está repleta de histórias enigmáticas, de caminhos difíceis de traçar devido ao silêncio tenaz dos mortos. “Stead e Wallace sonharam com a mesma frase com um mundo e uma década de diferença. Acho que é a resposta que Wallace, uma amante de Borges, teria preferido”, concluiu.
 
E assim, o fantasma ressuscitou, pelo menos na medida em que a carne escrita pode. A editora norte-americana de O homem que amava as crianças (Picador) relançou a obra de Stead — que desde 2001 vendeu apenas “algumas centenas” de exemplares — e os números começaram a escassear. Chegou às prateleiras da Barnes & Noble, escalou posições na Amazon e também foi traduzida em outros países, dando razão ao autor estadunidense quando afirmou que “estou convencido de que existem dezenas de milhares de pessoas neste país que abençoariam o dia em que este livro foi publicado se pudessem estar expostas a ele”. Não havia agente melhor do que Franzen e Foster Wallace, seu profeta. Subestimada ou não, Stead chegou aos cem melhores livros de todos os tempos da revista Time.
 
Elogiada e lida?
 
Resgatada, redescoberta, reposicionada por lentas conexões e convertida na glória nacional australiana, Stead enfrenta agora a jornada que não teve na vida: ser lida, ganhar elogios ou ser despojada deles. O que há em O homem que amava as crianças que desperta tanta veneração e tanto desejo de fazer proselitismo em torno dele? Será que merece arranhar a glória que não tinha na altura e tornar-se, como afirma Franzen, “uma das grandes realizações literárias do século XX”? Até onde foi a subvalorização e até onde vai a falta de oportunidade editorial? A opinião é sua, mas aproveitemos a oportunidade.
 
No prólogo da edição espanhola, Felipe Benítez Reyes, Franzen e as poucas resenhas em nossa língua concordam em alertar o leitor com uma afirmação coerente: é um romance sério, difícil e às vezes denso. Mas — apesar da natureza imponente das suas mais de setecentas páginas — não é de forma alguma do século XIX, pelo menos no que diz respeito ao esquema de enredos e desenlaces. O enredo canônico de O homem que amava as crianças afirma ser a história familiar dos Pollit, um casal (Sam e Henny) e seus sete filhos; um núcleo fundado com a única pulsão do ódio. Eles odeiam e, enquanto isso, vivem. Ele é um naturalista prolixo, um vendedor de pólvora no deserto que adora o som de sua voz. Ela é uma criatura neurótica e maquinadora, já vazia de qualquer fantasia de esperança. Eles são uma guerra fria. E embora ambos sejam vítimas e algozes da sua própria situação, Stead consegue uma façanha: que seja impossível detestá-los sem compreendê-los. Em parte porque todas as páginas estão repletas de humor ácido, tragicômico, que não pretende aliviar o fardo do leitor, mas sim aumentar sua angústia.
 
E, acima da pulsação narrativa que sustenta o romance — o cotidiano, o doméstico, a imagem íntima —, o que o destaca é a finíssima configuração de seus personagens. Stead pode arrogar o mérito de ter iluminado um dos seres mais grotescos e monstruosos da forma escrita, Sam Pollit, o patriarca. Um misógino (aparentemente uma transcrição do próprio pai) que, amando ou não os filhos, os submete a pressões psicológicas que despertarão fontes incômodas e memórias de infância que muitos de nós lutamos para manter escondidas e não à superfície. Franzen qualifica como monstruoso, mas não um monstro, mas pode estar equivocado. Sam é perigoso e cruel, também grotesco e engraçado, como uma espécie de união entre Harold Skimpole e Ignatius J. Reilly, só que com uma formação pior.  Muito pior.
 
A dentada de O homem que amava as crianças seria insuportável sem a existência do personagem Louisa, a filha pré-adolescente e talvez a sugestão de redenção. Ela é o patinho feio que suporta os desmandos lendo e escrevendo, a menina gordinha e desajeitada que, se o romance avançasse mais alguns anos, veríamos escrevendo um livro para se exorcizar, o livro que quase ninguém prestaria atenção mas todos falariam dele.
 
É quase impossível falar da obra-prima de Christina Stead sem chocar, porque é a literatura que comove, mas acima de tudo, dói. E há algo de muito universal nisso, muito livre de sentimentalismo barato. A impressão que deixa no paladar é que a família Pollit é um organismo que vai além da soma de suas partes. Embora alguns possam ser levados a contradizer o próprio Tolstói, e talvez as famílias infelizes não sejam tão singulares na sua infelicidade. 


* Este texto é a tradução livre de “La novela de la que todos (y casi nadie) hablan”, publicado aqui, em Jot Down.

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