O primeiro Calvino. A resistência como testemunho e encontro entre natureza e história

Por Diego F. Barros e Ivana Calamita




A exploração do romance A trilha dos ninhos de aranha — o primeiro livro publicado por Italo Calvino em 1947 — está indissociavelmente ligada à do segundo, a compilação de contos Por último vem o corvo que veria a luz dois anos adiante. Mas além de ambas as obras serem claras expressões do “primeiro Calvino”, são vários os motivos que fazem com que qualquer aproximação à primeira conduza inevitavelmente à leitura da segunda.
 
No geral, os dois livros revelam a busca — muito típica dos escritores da época — por dar conta do que havia significado a experiência da guerra que acabava de terminar. No caso de Calvino, essa experiência adquiriu uma dimensão particularmente intensa porque ele próprio integrou as Brigadas Garibaldinas, quando decidiu juntamente com o seu irmão alistar-se como partigiano. Havia sugado o antifascismo do seio familiar, mas logo ele saberia conciliar sua decisão de passar à ação armada com seu compromisso intelectual, escrevendo para Il Politecnico — a revista dirigida por Elio Vittorini —, e, mais tarde, filiando-se ao Partido Comunista e escrevendo para seu órgão oficial L'Unitá.
 
Nas várias entrevistas que concedeu ao longo da sua vida, o escritor italiano examinou a sua contribuição e a de vários membros da sua geração para a literatura italiana do pós-guerra.
 
Um caminho para o testemunho
 
Seu primeiro romance narra, justamente, as adversidades de um grupo heterogêneo de partigiani que se preparam para o combate, mas Calvino toma uma decisão literária que não é menor: coloca a centralidade da trama em Pin, um menino que ao longo de suas páginas não termina nunca de deixar a infância, mas também não entra na idade adulta, o que inevitavelmente impõe uma aventura militante e arriscada como o do grupo de resistentes.
 
O retrato do protagonista é o de uma representante de grupos sociais negligenciados e atingidos pela pobreza ancestral, situação que a guerra potencializaria com desmembramentos familiares, prostituição e violência. Só a decisão de colocar um adolescente como protagonista da ação e, ao mesmo tempo, dar à trama um tom marcante de romance de aventura, alivia o peso daquele cenário hostil que o autor queria oferecer testemunho. Como afirmou um crítico de Calvino: “Através do olhar da criança, até o horror da guerra se transforma em algo aventureiro” e nesta última impressão surge, transparente, como seria sempre, o “Calvino leitor”.
 
Estão aí, dialogando com os personagens, mas também com os ambientes de Rudyar Kipling, de Robert L. Stevenson e principalmente de Por Quem os Sinos Dobram, o romance que Ernst Hemingway havia escrito alguns anos antes sobre a Guerra Civil Espanhola. Em 1964, por ocasião da reedição do romance, Calvino explica esta última influência no prólogo que escreveu para o livro: “Foi o primeiro livro em que nos reconhecemos; foi daí que começamos a transformar em temas narrativos e frases o que tínhamos visto e ouvido e vivido, o destacamento de Pablo e Pilar era o ‘nosso’ destacamento”.1 Esse “nosso” que no decisivo capítulo 9 se transforma em um “nós” que se confronta com um “eles” quando faz um de seus personagens dizer:
 
“Mas aí há a história. Há que nós, na história, estamos do lado do resgate, eles do outro. Aqui nada se perde, nenhum gesto, nenhum disparo, embora igual ao deles, você me entende?, igual ao deles, se perde, tudo servirá para libertar, se não a gente, para libertar nossos filhos, para construir uma humanidade já sem raiva, serena, na qual seja possível não ser mau. O outro é o lado dos gestos perdidos, dos furores inúteis, perdidos e inúteis mesmo que vencessem, porque não fazem história, não servem para libertar mas para repetir e perpetrar aquele furor e aquele ódio, até que depois de mais vinte ou cem ou mil anos voltaria a ser assim, nós e eles, lutando com o mesmo ódio anônimo nos olhos e ainda assim, talvez até sem saber, nós para nosso resgate, eles para permanecerem escravos daquele ódio.”
 
Numa entrevista concedida em 1959, Calvino “lê” criticamente — tanto com os seus livros como com os de outros, sempre foi um leitor crítico — aquela literatura para evocar as suas chaves, “uma evocação” — disse — “ainda demasiado ligada ao emocional.” Afirmou naquela ocasião: “Depois da guerra houve na Itália uma explosão literária que, mais do que um acontecimento artístico, foi algo fisiológico, existencial, coletivo. Havíamos vivido a guerra e nós, os mais jovens — que mal conseguimos ser partigiani — não nos sentíamos excluídos, vencidos, ‘derrotados’, mas sim vencedores, guardiões exclusivos de alguma coisa.”
 
Uma série de histórias para testemunhar
 
De Por último vem o corvo, Calvino já havia inclusive publicado anteriormente seu primeiro romance, três dos trinta contos escritos entre 1945 e 1949 e que compõem este volume, que teve uma tiragem de mil e quinhentos exemplares em sua edição original. É uma sucessão de histórias muito diferentes entre si mas em que é evidente a presença daqueles ingredientes de época colocados mais uma vez em corpos e almas que parecem camuflar-se com as próprias entranhas da natureza em que o autor os faz “jogar”.
 
É assim que desfilam por estas páginas: um menino que, depois de passar o dia na floresta coletando pinhas, às noites seu pai, de longos cabelos até os ombros e barba até o peito, lê livros para ele em voz alta Elysée Reclus, o geógrafo anarquista francês, membro da Primeira Internacional; duas gangues de adolescentes que brigam sobre os restos de um navio afundado pelos alemães e que não podem afirmar que ainda não carrega minas em seu interior; duas crianças que, depois de passearem pelos trilhos do trem, encontram a casa de uma família burguesa cujo filho observam sem serem vistos e que descrevem como se sentisse que os bens que o rodeiam, “...aquele livro, aquela espreguiçadeira, aquelas borboletas emolduradas nas paredes e o jardim com os jogos e as merendas e as piscinas e as alamedas fossem concedidos a ele apenas por um imenso equívoco, e ele estive impossibilidade de desfrutá-los, somente experimentando sobre si a amargura daquele erro, como se fosse sua culpa.”2 Ou também Pipin que deve ficar de guarda à noite, armado, para que seus vizinhos ladrões não roubem os frutos de suas árvores e os vendam no mercado negro que se impõe cada dia como o mercado legal; ou Nanin, que ao ver os filhos de outros camponeses lindamente vestidos para o crisma algo escurece no fundo da sua alma, “como um medo antigo e furioso” e se pergunta: “Talvez fosse porque seu filho e sua filha nunca teriam eles aquelas roupas brancas para a crisma?”.
 
Lidas na ordem, essas histórias confirmam as afirmações do autor em outra das suas entrevistas — esta de 1957 — em que fez uma retrospectiva de seus primeiros escritos: “O primeiro ato de todo novo escritor, naquele período do pós-guerra, foi o de testemunhar: sobre a sua experiência na guerra, sobre a situação social do seu povo ou mesmo também sobre o modo de vida da burguesia. Essa foi uma literatura de testemunho”.3
 
A imediata consagração que A trilha de ninhos de aranha obteve naquele período italiano do pós-guerra que mergulhava, decididamente, no neorrealismo, explica essa disponibilidade leitora para aquelas experiências aludidas por Calvino na entrevista, mas, também, da forma como mais tarde a partir da ruína deixada pelo fascismo e pela guerra, o campo intelectual e cultural da península começou a reconfigurar-se, pelo menos o da esquerda.
 
Foram precisamente Vittorini, mas sobretudo Cesare Pavese, as figuras em torno das quais Calvino orbitou naquela juventude e também depois, e que souberam rapidamente ver o seu potencial e apostar nele, como aqueles editores cuja grande sagacidade lhes permitiu vislumbrar s novas e valiosas assinatura. Foi graças a esses contatos que conseguiu ingressar na Einaudi em 1945, editora turinense que marcou a cultura literária italiana da segunda metade do século XX, e que além de publicar as suas duas primeiras obras, teria a partir desse momento e durante várias décadas como um dos seus colaboradores mais próximos.
 
Foi assim que se construiu a pré-história do editor Calvino, aquele que com uma maestria sem precedentes conseguia conciliar diariamente o trabalho dos seus próprios livros com o dos “livros dos outros”. A partir de então, já não era possível se distinguir com clareza o Calvino escritor do leitor e do editor.


______
A trilha de ninhos de aranha
Italo Calvino
Roberta Barni (Trad.)
Companhia das Letras, 2004
192p.


Por último vem o corvo
Italo Calvino
Maurício Santana Dias (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
224p.


Nasci na América... Uma vida em 101 conversas (1951-1985)
Luca Baranelli (Org.)
Federico Carotti (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
 

Notas da tradução
1 O excerto e outros desta seção, de A trilha de ninhos de aranha, são da tradução de Roberta Barni (Companhia das Letras, 2004).
 
2 Os dois excertos desta seção, de Por último vem o corvo, são da tradução de Maurício Santana Dias (Companhia das Letras, 2023).
 
3 As traduções dos excertos das entrevistas referidos neste texto são nossa. Mas, as entrevistas estão reunidas na coletânea Nasci na América... Uma vida em 101 conversas (1951-1985), organizada por Luca Baranelli. A tradução brasileira é de Federico Carotti (Companhia das Letras, 2023).

 
* Este texto é a tradução livre de “El primer Calvino. La resistencia como testimonio y encuentro entre naturaleza e historia”, publicado na revista Dialektika e disponível aqui.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #601

Bambino a Roma, de Chico Buarque

MANIAC, de Benjamín Labatut

Boletim Letras 360º #594

Onze obras do teatro moderno e contemporâneo fundamentais a todo leitor

Boletim Letras 360º #600