Por Pedro Fernandes
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Benjamín Labatut. Foto: Fernanda Requena |
A obra de Benjamín Labatut chegou
ao Brasil no auge do reconhecimento alcançado entre a crítica num universo,
segundo o próprio escritor, um tanto saturado. Na sua primeira passagem pelo
país, destacou-se menos pelos livros até então publicados —
Quando deixamos
de entender o mundo e
A pedra da loucura — e mais por sua queixa de
que um problema atual da literatura é o excesso de escritores e livros, uma
dessas constatações verdadeiras e igualmente questionáveis. Mas, na Era Viral,
quando um recorte malfeito de uma opinião é suficiente para legislar favorável
ou contra quem a proferiu o que no universo artístico soma-se às dificuldades
de separar autor e obra, é importante não reduzir o escritor chileno (e qualquer
outro). Benjamín Labatut não é mais um na invencível lista de ficcionistas e
MANIAC
é um bom exemplo disso.
É verdade que o romance regressa a
um modelo que se tornou Best-Seller com Jostein Gaarder e
O mundo de Sofia
— enquanto o escritor norueguês passa em revista de maneira romanceada toda a
história da filosofia, Benjamín Labatut reconstrói o instante quando ciência e
tecnologia convergem definitivamente e se abre uma nova era na história da civilização
e do imaginário humano, a da sepultura da fé nos deuses. Mas ao conteúdo
pedagógico
MANIAC acrescenta outra qualidade: fabular os destinos dessa
humanidade terrivelmente seduzida pela possibilidade de deixar de brincar para
ser deus. Além de instruir enquanto entretém, o romance pode continuar na
tarefa, talvez infindável para a sua forma, de desvendar o homem para os
outros.
O título do romance de Benjamín
Labatut é a sigla inglesa de Mathematical Analyzer, Numeral Integrator and
Computer, um complexo aparelho desenvolvido por John von Neumann no final dos
anos 1940 e que se tornou um modelo definitivo para os computadores tal como
conhecemos e o primeiro passado para os sistemas de inteligência artificial. Por
tudo que o feito de Von Neumann significa para o século XX e o que veio depois,
a máquina é utilizada como o elemento simbólico dos resultados que construímos
a partir da nossa aventura pelo desconhecido, salvação e condena. O próprio
itinerário do matemático húngaro e suas obsessões reitera o mito do Fausto: o
homem encalacrado pelo conhecimento que o torna continuamente íncubo e súcubo
de suas forças incontroláveis porque ilimitadas.
É possível que a chama desse
fascínio que nos queima esteja numa das raízes do interesse de Benjamín Labatut
pelos feitos de John von Neumann, mas o romancista é cuidadoso no
desenvolvimento desse itinerário para deixar que esse sentimento apenas se
manifeste enquanto parte das emoções suscitadas pela leitura. O retrato do matemático
aparece pintado com os mesmos motivos de uma personagem de ficção que afinal é
— ele e as demais figuras históricas da narrativa — e com a objetividade de
quem quer apenas oferecer uma imagem desprovida dessas qualidades empregadas nessas
biografias em que o biógrafo tende a enaltecer ou rebaixar o biografado. Ao
designarmos como retrato e como figura demonstramos que
MANIAC não quer
ser uma biografia de Von Neumann — embora o romance seja uma fonte para a qual
são canalizadas os veios de vários rios, incluindo o biográfico — tampouco oferecer
sua imagem total.
MANIAC se explica um pouco
pela noção de biografema, encontrada em Roland Barthes. Os elementos de
tratamento do escritor são os que foram de John von Neumann e depois se dispersaram
ou se disseminaram. A maneira como o romance foi estruturado é importante nesse
sentido. Benjamín Labatut coopta a seu favor uma estrutura fora do plano
literário: o uso do documentário. Se recordamos o objetivismo almejado pelo
autor e o tratamento biográfico, notaremos que a escolha servirá a princípio como
uma estratégia capaz de resolver esses interesses. Mas, não esqueçamos: o
documentário é igualmente a construção de um ponto de vista e não responde, no
caso biográfico, pela imagem definitiva da figura relatada. O uso do recurso se
justifica como sustentação estrutural neste romance e serve para vislumbrarmos suas
personagens sob multiperspectivas.
O que seriam epílogo e prólogo do
romance aparecem narrados em terceira pessoa por uma voz cuja perspectiva
objetivista articula o discurso historiográfico e ficcional na mesma função de
narração. O epicentro do romance, o de MANIAC e seu inventor, é organizado por
uma sequência de depoimentos das personagens de convívio íntimo, de passagem ou
de profissão com John von Neumann: pais, irmãos, esposas, filha, professores, amigos,
discípulos e colegas de trabalho. Esse coro, exige do romancista o uso de uma
dicção própria para cada pessoa. Ao mesmo tempo, essa variedade, feita ainda de
modulações muito próprias dos sentimentos dessas figuras em relação ao
protagonista, precisa ser articulada a fim de que a unidade do livro não se disperse,
tratamento que exige do escritor, como o documentarista, o regente de boa
audição. Tudo isso aparece devidamente bem realizado e essa é uma qualidade
imprescindível de um romance que situado entre a ficção e o historiográfico é
também um ensaio sobre a excepcionalidade da natureza humana.
Assim cada peça, mesmo se
contraditória ou descentrada do biografado, constitui a um só tempo a riqueza
multifacetada de John von Neumann e dos depoentes; esses textos pressupõem as
diversas maneiras como as criações ou as ideias do matemático eram vistas e
como passaram para a história da ciência. No primeiro instante, o biografema,
se não é sempre mais autêntico, nos oferece, na superfície, dispersão e
fragmentação, o ponto de vista mais abrangente porque à perspectiva do autor
conjugam as perspectivas de outros e do leitor na elaboração do retratado. O biografema
ilumina detalhes variados acerca do protagonista. Nesse caso, seu ingresso no
projeto estadunidense que impôs o fim radical da Segunda Guerra Mundial, o
desenvolvimento da era armamentista e a corrida pela tecnologia como um desvio tomado
pela ciência contra certo impulso autodestrutivo que pareceu dominar a
humanidade desde a criação da bomba atômica. E no seu curso revivemos: as
estratégias de poder, as rivalidades, as intrigas, o espírito de coletividade e
solidariedade que ultrapassava mesmo as limitações de pensamento ideológico e
de credo, a aposta segura na liberdade, os pequenos vícios e complexidades de
convivência de variado motivo, um painel, enfim, diverso e por isso mesmo rico
e abrangente de uma época. Um tratado acerca das obsessões humanas.
Nesse percurso, MANIAC repara
que a convergência entre ciência e tecnologia logo aliadas aos fatores de
acúmulo e de consumo do capitalismo vigente e tornadas o deus deste século não significou
um desvio pela salvação da humanidade. Essa aventura distendeu o imediato,
converteu-o nisso que em nosso tempo tratamos como iminência, um périplo
labiríntico e infinito até o limite das próprias forças da natureza em que
somos guiados apenas pelo interesse de romper definitivamente com os limites que
condicionam nossa natureza: os da imaginação e os da própria vida. Essa empresa
da ciência encontra-se articulada no romance ao próprio círculo dos criadores e
da existência humana. O desenlace circular é conhecido de todos e no caso desse
livro funciona como um ceticismo desse novo deus, sobretudo porque os rumos
pressupostos pelos gênios do último século encalharam em novos modelos de expropriação
do humano.
MANIAC, de alguma maneira, refaz
todo um período áureo das ciências exatas; por meio de John von Neumann
testemunhamos a bruxuleante luz da imaginação criativa num dos epicentros mais
negativos de nossa civilização — quando a Alemanha e o restante da Europa preferiram
se orientar pelo intrincado obscurantismo das ideologias que alimentaram as forças
do mal. Essa efervescente criatividade mudou radicalmente o curso da história,
incluindo nossas faculdades mentais; uma revolução das mais profundas. E por estarmos
tão próximos ainda desse tempo uma vez que os saltos foram vertiginosos dos
anos 1940 para agora; ou nascidos no mundo tal como conhecemos; ou ainda porque
a tecnologia tem nos educado com olhos para o futuro ao ponto de ignorarmos perigosamente
o passado, é comum não compreendermos ao certo as transformações pelas quais
passamos, tampouco o nosso destino no seu interior. Pode-se acusar, sobretudo a
ciência, que a literatura no âmbito dessas modificações é um ser pré-histórico,
a que menos evoluiu, a que segue alienada no torvelinho das questões naturalmente
solúveis pelos princípios racionais da matemática quais os jogos mais complexos
uma vez concebidos, mas talvez seja exatamente a bruxuleante luz que foi a
ciência no escuro passado, nesse caso, diz-nos de onde viemos, como chegamos
até aqui e o que nos espera no epicentro do labirinto se alguma vez o alçarmos.
Aos entreter e conhecer, MANIAC recompõem um terceiro papel meio
oracular, ideal do fabular: alertar.
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MANIAC
Benjamín Labatut
Paloma Vidal (Trad.)
Todavia, 2023
360p.
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