Por Cláudio H. Vargas
...já que os incidentes que dão
excelência a uma biografia são, por sua própria natureza, voláteis e
evanescentes.
— Samuel Johnson, citado por James
Boswell em Life of Samuel Johnson (1791)
1.
Quando Susan Sontag faleceu, na
madrugada de 28 de Dezembro de 2004, não foi raro que muitos vissem na sua
morte não só a perda de uma romancista e ensaísta de excelência, mas,
sobretudo, um sinal inequívoco do encerramento de uma era em que a figura do
intelectual público representava tanto os valores da alta cultura, mas também,
e quase se poderia dizer que além disso, a própria encarnação de uma autoridade
moral que, salvo exceção, nenhuma outra figura pública — políticos, cientistas,
jornalistas etc. — poderiam até esperar alcançar.
É provável que Sontag não tenha
gostado deste tipo de reconhecimento póstumo. Pelo menos desde meados da década
de setenta do século passado e até aos seus últimos dias, ela, como poucos
escritores ou intelectuais da sua geração, personificava as virtudes e os
vícios atribuídos, condescendente ou excessivamente, aos intelectuais públicos.
Ela tinha consciência disso e,
aparentemente, qualquer possível desconforto, invejas ou mal-entendidos que daí
pudesse surgir poderia ser compensado pela fama, respeito, admiração ou
influência que era inerente a tal representação. Não há dúvida: ela mesma foi a
arquiteta entusiasta de sua entrada no reino dos ícones de seu tempo.
O que parece evidente é que esta
imagem icônica, mais do que nos permitir conhecer e apreciar a pessoa real em
toda a sua magnificência e, claro, nas suas muitas e complexas contradições, o
que nos ofereceu foi uma variedade de anedotas, crônicas ou situações cujo
elemento comum era prefixar, na melhor das hipóteses, uma nobre efígie de
Sontag e, na pior das hipóteses, uma malévola caricatura.
Hoje, com a biografia de Benjamin
Moser, Susan Sontag: vida_e_obra, abre-se a oportunidade de esquecer a
figura icônica e, na medida do possível, aproximar-se de uma visão mais
próxima, fidedigna e precisa do que foi a jornada de vida de Sontag.
Moser, que afirma ser o biógrafo
autorizado de Sontag, mas que não escreveu uma biografia autorizada — isto é,
uma biografia que exigisse a aprovação dos familiares, editores ou agentes de
Sontag, que o convidasse para empreender esta tarefa — escreveu um livro que,
sem exageros, poderia ser considerado a biografia definitiva de Sontag, se esta
afirmação fizer sentido.
Ao contrário de outros relatos da
vida de Sontag — por exemplo, Susan Sontag. The Making of an Icon, de
Carl Rollyson e Lisa Paddock, outra biografia não autorizada escrita numa época
em que a escritora ainda estava viva e cuja elaboração e publicação causou-lhe
justificadamente grande indignação — Moser teve acesso a um conjunto de
documentos muito extenso: os diários que o filho de Sontag, David Rieff, editou
e começou a publicar em 2008 — até à data do feito foram publicados dois dos
três volumes planejados, Diários (1947-1963) e Diários II (1964-1980)
— a biblioteca, documentos e arquivos
pessoais mantidos de Sontag pela Universidade da Califórnia em Los Angeles e
uma grande coleção de desinibidos testemunhos que familiares, parceiros, amigos
e adversários da escritora estiveram mais do que dispostos a fornecer, além de
alguns livros de cunho memorialístico publicados após a sua morte, como Sempre
Susan, de Sigrid Nunez, e aqueles que se concentram em seus últimos dias de
vida, como o do próprio Rieff, Swimming in a Sea of Death: A son’s Memoir,
e o capítulo que Katie Roiphe dedicou a Sontag em The Violet Hour: Great Writers
at the End.
Moser, então, teve todo o material
por enquanto disponível sobre a sua protagonista e pôde aproveitar ao máximo.
Não escreveu uma hagiografia, nem uma crítica literária, mas uma justa e
detalhada interrogação acerca de um personagem tão fascinante quanto controvertido,
narrando e examinando com uma perspicácia e sutileza que não deixa de ter uma
boa dose de
admiração, sua trajetória vital e
criativa sem omitir seus aspectos mais perturbadores e irritantes.
Este último é importante. Para
alguns comentadores, Moser deu maior ênfase à diva literária e às suas
frequentes explosões de mau humor e comportamento rebeldde que à própria obra
de Sontag — tal como comentam, por exemplo, Miguel Gorra na revista The New
York Review of Books ou Janet Macolm no The New Yorker — a última
razão pela qual se justifica escrever sua biografia.
E, sim, na crónica de Moser há
muitos episódios, sobretudo nos anos em que se tornou celebridade, onde
encontramos uma Sontag egocêntrica ao ponto da exasperação e incapaz de
reconhecer a sensibilidade ou a intimidade do outro, a quem faltava o menor
tato para suspeitar ou mesmo perceber o impacto que sua atitude poderia causar
nas pessoas, fossem elas próximas ou não. Em muitos dos testemunhos recolhidos
por Moser ouvimos amigos ou colaboradores de Sontag queixarem-se de que ela os
fazia se sentir, de forma deliberada, estúpidos.
Mas, creio, esta rica anedota
sobre os seus maus modos, a sua famosa atuação como diva e a sua arrogância
moral, bem como todas as reviravoltas em que Moser se apoia para tentar
revisá-las, não é oferecida em detrimento da obra de Sontag. Não há romance ou
conto, livro de ensaios ou artigos, ou filmes e peças dirigidas pela
estadunidense que não receba, mesmo que brevemente, uma crítica.
É verdade que, como observa Gorra,
sentimos muita falta de saber mais sobre a cozinha literária de Sontag. E, há
aqui certamente um grande nó cego, pois, embora estejamos informados da sua
extraordinária capacidade de trabalho, da manifestação daquilo que o seu filho
David chamou de “energia verdadeiramente ilimitada” ao longo das “dezesseis
horas por dia, sete dias por semana" em que — como comenta Sontag para o
seu editor Roger Straus — constituíam os seus dias de trabalho, quase nada se
diz sobre como se concretizava essa energia ilimitada, como passavam aqueles
longos dias que ela dedicava a escrever, ler, pesquisar, organizar os seus
materiais, nem se fala muito (exceto que fumava regularmente e que durante
algum tempo ficou viciada em anfetaminas), sobre suas rotinas e suas manias,
suas aflições ou alegrias, suas dúvidas ou certezas no que diz respeito ao
trabalho.
2.
Perplexidade. Esta palavra é
encontrada repetidamente ao longo do livro de Moser. Por vezes, parece que a
sua tarefa foi orientada pela busca e dissecação destas perplexidades: é
impossível encontrar qualquer período da vida da biografada em que Moser não
aponte a confusão, as dúvidas, a desorientação que isso gerava entre a sua
família e companheiros, amigos e adversários, editores e críticos, e leitores
ou simples caçadores de fofocas.
Perplexidade, por exemplo, com a
sua precoce curiosidade intelectual e com as primeiras manifestações do seu
talento crítico e narrativo. Perplexidade pela extrema dissociação que fazia, a
começar por si mesma, entre a vida do corpo e da mente, mesmo nos momentos
finais. Perplexidade com sua contínua evasão ou negação de qualquer coisa que
perturbasse, incomodasse ou simplesmente fosse indiferente.
Perplexidade, apesar das suas reiteradas
conquistas e da sua determinação férrea, devido à sua contínua insegurança
sobre o seu próprio talento e vocação, ao mesmo tempo que não parava de exibir
uma crua altivez moral e intelectual. Perplexidade com sua ambiguidade na
esfera pública em relação à sua orientação sexual.
Perplexidade com o status de
celebridade que adquiriria na República das Letras, essa República cheia de
misoginia — ainda na segunda metade do século XX ainda não havia desaparecido
totalmente a prevalência do insidioso ditame de T. S. Eliot de que, enquanto
trabalhava na revista The Egoist, então dirigida por Ezra Pound, chegou
ao dizer “Eu me esforço para continuar mantendo a escrita em mãos masculinas,
porque desconfio do feminino na literatura”; e a maneira como se sobrepôs a
esse status, do qual se tornou, se não um modelo exemplar, uma figura, sim, de
inspiração para as escritoras da geração que a sucedeu.
Mas também perplexidade face à sua
permanente vulnerabilidade emocional e afetiva que foi tensa ao longo da sua
vida tanto nas relações familiares (especialmente com a mãe e o filho) e nas
relações conjugais (breves e prematuras), como nas relações com os amigos e as
mulheres que a amavam e que ela amou. Perplexidade diante das contínuas e
extremas mudanças de humor que a levavam da crueldade à mais desprendida
generosidade.
E, por fim, a perplexidade diante
daquela que foi uma vida marcada pela intensidade das suas contradições, mas,
sobretudo, pela sua inalterável paixão pelos valores que a cultura, a arte, a
literatura representavam e a sua não menos apaixonada confiança no conhecimento
e na dignidade e o imperativo civilizatório da razão e da crítica.
Moser, claro, não se limita a
registrar essas perplexidades, mas tenta dar-lhes um contexto para
compreendê-las e conseguir um retrato da sua protagonista com a maior gama de
cores possível. Consegue dar-nos o que até agora é o mais próximo e completo
registro da vida de Sontag e, como tentativa de compreensão abrangente de uma
vida, um empreendimento impossível por definição, o que faz para os próximos
anos, talvez, uma obra de referência para se reconhecer a magnitude e a
diversidade das ambições intelectuais e criativas de Sontag (não admira que
Peter Burke a inclua entre os últimos exemplos representativos da tribo de
polímatas da história cultural do ocidente), como os custos e riscos, pessoais e
criativos, que deveriam ser considerados para corresponder a essas ambições.
Em suma, e sem se propor como um
exercício de crítica literária, o livro de Moser é um convite aberto,
provocativo em mais de um aspecto, para ler ou reler a obra de Susan Sontag
tendo em conta tanto os motivos e impulsos que a encorajaram e alimentaram como
a forma como o seu itinerário de vida está presente de uma forma ou de outra na
própria obra: ajuda-nos a compreender a obra com mais clareza e, além disso, o
tempo e a cultura que a tornaram possível e necessária.
3.
Em seu discurso de recebimento do Prêmio
da Paz dos Editores Alemães em 12 de outubro de 2003, Sontag afirmou que: “Um
escritor é alguém que presta atenção ao mundo. Isso significa que tentamos
compreender, assimilar, relacionar-nos com o mal de que os seres humanos são
capazes, sem nos corrompermos — tornando-nos em cínicos ou superficiais — ao
compreendê-lo. A literatura pode dizer como é o mundo.”
Uma boa parte da obra de Sontag
visa precisamente contar e examinar esse mundo, não só evitando as armadilhas
fáceis do cinismo, mas também fazendo do seu ativismo político uma extensão
necessária desse exame.
Não me refiro, claro, às ingênuas
ou decididamente camps viagens de turismo revolucionário que fez, por
exemplo, à China ou a Cuba, mas, para mencionar alguns dos seus melhores
exemplos deste ativismo, à sua oposição à Guerra do Vietnã, à sua a arriscada
incursão em Sarajevo, o seu corajoso apoio a Salman Rushdie, a sua denúncia
determinada da brutal e arbitrária política externa estadunidense após o 11 de
Setembro de 2001 e, claro, a sua incansável crítica cultural que, em muitos
aspectos, tem uma intenção política inequívoca.
No final deste mesmo discurso em
Frankfurt, Sontag deixou clara a sua convicção de que: “A disponibilidade da
literatura, da literatura mundial, prometia escapar da prisão da vaidade
nacional, do filisteísmo, do forçoso provincianismo, da inanidade educativa, dos
destinos imperfeitos e da má sorte. A literatura era o bilhete de entrada para
uma vida mais ampla; isto é, para um território livre. A literatura era a
liberdade.”
Como leitores, devemos a Sontag os
frutos dessa convicção, frutos que apenas tornaram a realidade mais respirável
ou, por outras palavras, expandiram e enriqueceram o nosso horizonte de
liberdade e, com ele, o horizonte da nossa imaginação e responsabilidade moral.
Comecei a ler Sontag há pouco mais
de quatro décadas. Ainda tenho a primeira edição em espanhol de Morte em
questão, de 1969, e a de O benfeitor, de 1974. Apesar das
dificuldades que essas leituras me causaram na época, como leitor tenho mantido
uma fidelidade invariável à obra de Sontag, fidelidade que nunca foi decepcionada
e que, pelo contrário, a cada novo livro foi se renovando e me proporcionando
novos motivos de espanto e admiração. Sua releitura parece relevante hoje,
pois, parafraseando o que escreveu a propósito de Pedro Páramo, não vale
a pena ler uma obra uma vez se não vale a pena lê-la muitas vezes. Por fim, que
esta breve e apressada nota sirva como testemunho de gratidão.
* Este texto é a tradução livr de “Fascinante
y controvertida Susan Sontag”, publicado aqui na revista Nexos.
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