Por Ricardo Martínez Llorca
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Edna O'Brien. Foto: Mark Gerson |
Depois dos dinossauros, veio a inquisição,
que continua a queimar livros em público. Na Irlanda de Edna O’Brien, o que
aconteceu foi o mesmo que nos territórios que são extensões sem lei, cuja ordem
é imposta pelo rigor do músculo, geralmente a serviço do excesso de álcool e de
algum padre desalmado. Porque para deixar de amar as criaturas que fazem parte
da sua tribo é preciso ter perdido a alma. E a bondade é substituída por regras
rígidas.
O padre fanático e o bêbado coincidem
porque ambos estão aferrados a paredes sem janelas. Além do seu quadrado em
forma de confessionário ou da garrafa, não existe nada que valha a pena
respeitar. Se forem obrigados a mostrar as pontas dos cílios do outro lado da
parede, o ponto a que foi reduzido o seu coração os levará à violência. Nesse
caso, o alcoólatra é um pai que baterá na mulher e na filha pequena, e o padre
é um tipo tão grotesco a ponto de pensar que, ao mesmo tempo em que multidões
se aglomeravam em Woodstock ou que estudantes levantavam paralelepípedos nas
ruas de Paris, todos eles com a intenção de encontrar o mar e com a esperança
de empreender viagens para o sul, a verdade ditada por um deus de sobrancelhas cerradas
o impelia a queimar em praça, em frente à fachada da igreja, três exemplares de
The Country Girls, o
primeiro
romance de Edna O’Brien. O livro retrata a rígida sociedade rural, mas o faz
sem ressentimentos. A escrita é serena e, portanto, inteligente, escrita, como
disse John Berger, a partir da dor da memória. Mas a história continua sendo
difícil, o suficiente para exigir doses exatas de franqueza e simplicidade.
Onde qualquer outra pessoa teria escrito com ódio, O’Brien sutura as feridas sem
precisar de anestesia ou pontos. Parece que ela sempre esteve reconciliada
até com o inferno.
Para encontrar Tuamgraney é
preciso olhar bem de perto o mapa. A localidade onde Edna O’Brien nasceu, e
onde se passa a parte mais significativa da sua obra, é uma linha de asfalto
com alguns telhados margeando-a. Depois, há outras casas espalhadas e a vegetação.
É uma terra de grandes campos, de agricultores, que a Revolução Industrial não
havia alcançado quando Edna decidiu sair da região. Ainda vivia, e continuou vivendo
durante décadas, numa época em que não existiam aspiradores de pó. Varria-se à
mão, com vassouras de palha, e se alguém tivesse a sorte de ter tapetes, como o
padre por exemplo, poderia colocar o pó por baixo para que não fosse visto. Com
esse espírito, Edna O’Brien conta-nos histórias de mulheres, como a da
escritora que deixa a parte mais feia da experiência à intuição do leitor, a
partir da qual invoca os seus fantasmas enquanto escreve.
Edna O’Brien sabe que o amor é a
única substância que nos torna deuses. Graças a isso podemos ler com prazer essa
parte da obra que nasce desde a infância: The Country Girls é formada
por três romances, o que dá título a trilogia, The Country Girl, The
Lonely Girl e Girls in Their Married Bliss. Também graças à
distância de supor, erroneamente, que não vivemos tantos desgostos. Edna não só
precisou que o tempo passasse, uma matéria dobrável em que não se pode confiar,
como teve que se reinventar diversas vezes ao longo da vida, tema que está
presente na sua obra, mas sobretudo em cada capítulo do primeiro romance. Ela passou
pelo internato de um convento e acreditou que queria ser freira, pois o único
refúgio que encontrou ali foi o sorriso de uma das irmãs.
Foi para Dublin se formar em
farmácia, mas os estímulos da capital arranharam aquele lugar onde as emoções
são guardadas a ponto de conviver quase com a síndrome de Stendhal, se a
síndrome de Stendhal representa uma demonstração de adrenalina inclusive se ante
o nascer em outro berço teria parecido muito feio. Onde ele melhor representa
isso é em Girls in Their Married Bliss, a terceira parte da trilogia.
Escrito décadas depois dos dois volumes anteriores, apresenta as amigas
protagonistas, Kate e Baba, vivendo diferentes vidas como casadas, já radicados
em Dublin. As resenhas definem que se perde o lirismo das outras duas partes,
mas esse erro virou tópico de interesse. A paisagem rural do tipo Constable não
pode ser reproduzida com a mesma energia que a Dublin que conhecemos depois de
ler Ulysses, de James Joyce. Na verdade, O’Brien nunca perdeu o lirismo,
porque fala sempre a partir da verdade do que sente. Ela é sempre sincera. O
que acontece é que o trânsito na hora de pico e a possibilidade de trocar de amante
todas as noites sugerem que o romance deve liberar mais ácido láctico, como um
campeão de levantamento de peso nas horas de treino.
Em Dublin viveu um casamento com
um escritor que não foi capaz de perdoá-la, que sabia melhor do que ele em que
consistia o que conhecemos como literatura. Os dois tiveram dois filhos e ela
suportou sem alívio o constante assédio desse marido, que sempre a incitava para
a rinha. Mas Edna O’Brien era pós-graduado em olhares brutais. Eram os mesmos
que conhecera no pai e que mais tarde observaria na mãe da família de raposas
que acampava no jardim da casa em Londres, defendendo a ninhada. Porque depois
de passar pelo Rubicão do casamento, que durou dez anos, tempo em que continuou
a demonstrar o seu valor como escritora mas, sobretudo, como leitora, optou por
se estabelecer em Londres. E também na felicidade dos anos sessenta, quando as
festas em casa tinham uma inocência lábil, ao serviço da lenda. Os anos
sessenta foram anos de mudanças fugazes no planeta ocidental e estiveram também
ao serviço de nomes como aqueles que paravam na sala da sua casa para se
servirem de um uísque, de Robert Mitchum a Sean Connery, passando por Harold
Pinter e editores, proprietários de jornais e produtores de filmes e até mesmo
John Huston. Quando falava sobre eles, o fazia sem fazer julgamentos de valor.
Geralmente ele se referia a cada pessoa com as palavras que ouvia na boca dos
outros e que lhe pareceram corretas. E, sim, sempre com afeto. Afinal, que mal
poderia ter causado uma noite de amor com o protagonista de O mensageiro do
Diabo? O rastro que esses momentos deixaram nela é tão delicado quanto o
beijo que o próprio Jude Law — Adonis, nas palavras dela — pousou sobre os seus
lábios, sendo já uma mulher mais velha e ele um tipo com uma beleza perfeita
demais. Um momento que ela não quis prolongar, cheia como estava, depois de
tantos anos, de excessos de emoções.
Sua estada em Londres foi época produtiva,
em que lia e escrevia relatórios de leitura para editores, escrevia peças para
o teatro, colunas para jornais e até começou algumas biografias tão ousadas
como as que dedicou a Lord Byron ou James Joyce. Foram os anos em que a autoestima,
abalada pela pressão do catolicismo tacanho, pelos abusos de um pai bêbado ou
de um marido com transtorno obsessivo e complexo de inferioridade, pôde ser
preenchida com certezas.
Uma história zen conta que um
mestre perguntou aos que se diziam seus discípulos como fariam para manter um cubo
perfurado com milhares de buracos sempre cheio; durante anos, os aspirantes
buscaram a resposta até que o mestre, deitado em seu leito de morte, pronunciou
suas últimas palavras resolvendo o mistério: jogar o cubo ao mar. Esse cubo é a
autoestima e o que Edna O’Brien fez em Londres e Nova York foi atirá-lo ao mar.
A tal ponto que ele conseguiu acompanhar o próprio Norman Mailer durante uma
conversa. Mailer era um homem poliédrico, embora qualquer um de seus muitos
rostos tivesse a força de um especialista em brigas de rua. Mas quando se
conheceram, Edna já havia se tornado escritora profissional. Continuava com sua
dinâmica de oferecer e frequentar festas, mas desta vez sabia que havia algo de
mercenário nelas. Assumiu isso, como havia assumido sua má cabeça para a
economia.
Por muito tempo ela conseguiu
administrar o dinheiro, quando este entrava em grandes ondas, jogando-o ao
caos. Decapitou-se financeiramente em mais de uma ocasião e se viu mudando seus
pertences de uma casa para outra, mais humilde. Até que recebia um novo cheque
para uma adaptação do roteiro ou um adiantamento para seu novo livro e pulava
de volta na lagoa. Comprava uma casa com piscina que logo venderia, mas por
muito tempo se recusou a sair daquela cidade com um magnetismo tão neurótico
como é Nova York. No auge do diafragma, a cada respiração, sabia que ainda era
a menina da vida rural que se reconhecia, na hora da verdade, no barulho dos
sapos nos alagados, e não no trânsito dos amarelos táxis em Manhattan.
O fascínio durou tanto quanto a
energia, pois um dia, com o cansaço de viver, decidiu voltar para o campo. Acreditou
que havia sido curada e acreditou no mito do Beatus Ille. Acreditou na
cabana Walden, aquela que Thoreau construiu a uma distância tão segura da casa
de sua mãe que ele podia ir caminhando e comer, sem problemas, mesmo nos dias
mais frios do inverno. Edna procurou seu Walden em um condado costeiro da
Irlanda. Sim, tentou retornar a uma Irlanda que em algum momento deve ter sido
um bom fator na equação de sua infância, apesar do registro da memória, pois em
algum lugar devia estar enterrada a semente de quem era. Comprou uma casa com
vista para o mar e sofreu solidão nas tempestades.
A solidão.
À hora da verdade, esse é o grande
tema de sua obra e de seu melhor romance, que é sua vida. Talvez não tenha se
saído tão bem quanto possível, porque tinha uma vida muito solitária que
tentava compensar com demasiada generosidade àqueles que estavam ao seu redor.
Mas muita gente nem sempre é muita companhia. Sua vida longe do mundano ruidoso,
afinal, está no jardim de sua casa em Londres. Na velhice, pode ter encontrado
um lugar para se estabelecer, mas raramente algo que consideraria um lar. O
adjetivo, ou substantivo, flutuava nas suas entrevistas e nas narrativas que
escreveu, mas deve tê-lo escrito duas ou três vezes em toda a vida. O conceito
é aquele que corresponde à palavra sagrado. Um lar deve ser sagrado ou o
sagrado deve se tornar o seu lar. Casa após casa, cidade após cidade, pessoa
após pessoa, Edna O’Brien foi capaz de se emocionar enquanto lia ou escrevia.
Para ela, a sua casa, o sagrado, é a literatura. Soube disso ao reconhece que a
sua sintaxe não é a do inglês, por mais que viva no seu país. Enquanto escrevia,
a órfã do condado de Clare sempre retornava.
A solidão é algo com o qual alguém
não se acostuma, embora uns se ajustem à solidão dos outros. Talvez a
literatura seja um dos poucos lugares onde alguém que se sente sozinho pode
construir um lar. A literatura não decepciona, nem é necessário limpá-la com
pano o pó, evitar que se crie teias de aranha. Pelo menos se você a tratar com
gentileza. A literatura entra em casa com aquela elegância com que entram
poucas coisas: a tristeza e o amigo que não nos vê há dez anos. Em Londres,
onde viveu, sempre se sentiu sozinha, mas como se fosse um exílio voluntário. Falava
a mesma língua dos vizinhos, mas a usava com outra vitalidade. A sua solidão é
consequência da vida das mulheres em tribulação, a mesma que povoa as suas
histórias, nas quais elas são uma nêmesis, um espelho com mercúrio não
completamente cristalino no qual os homens se refletem. Uma solidão que mal
entendemos, sim, quando lemos o fato de ela ser a caçula de quatro irmãos. A pergunta
sobre o seu destino nem sequer é levantada na Wikipédia, muito menos nas suas
memórias.
Não é de estranhar que procure
consolo, esse conceito subvalorizado, numa companhia que está para além deste
mundo. “Às vezes vou à missa”, confessava. E confessava o gosto de ouvir música
sacra. E nunca perdeu o hábito de rezar: “Rezar é bom. Pelo menos você não está
xingando ninguém, odiando ninguém ou ofendendo ninguém. Há sinceridade na
oração.” A sinceridade que nasce da ternura. Porque alguém reza pelas pessoas
de quem se lembra e, quando se lembra delas. Nesse sentido, Edna foi uma
daquelas pessoas que viveu para o exterior, que viveu para as pessoas que ama.
E, no entanto, se afastou delas
porque precisava se colocar terra por sobre uma atmosfera nacional-católica e
com muito álcool. Edna O’Brien também viveu para sua interioridade. Saiu aos
poucos para o exterior: Dublin, Londres, Nova York, a costa irlandesa, Londres
novamente, para ver o que havia mundo afora, captar as tantas emoções que
sentia lhe faltar, e depois trazê-las consigo. Até que soube que não poderia
mais viver tão sentimentalmente. As sensações foram impostas a uma mulher que
pode ser responsabilizada por muitos defeitos, mas não por falta de
sensibilidade. E não se brinca com sensações: há sensações que matam. E não
necessariamente de dor. Basta contemplar o Êxtase de Santa Teresa, de
Lorenzo Bernini, para imaginar uma morte por excesso de beleza, por pura
espiritualidade, quase budista.
Pelo contrário, a sua
sensibilidade sofreu com o conflito na Irlanda do Norte a ponto de tentar
explicá-lo uma, cem, mil vezes em diferentes artigos e até através de um
romance, porque o que os meios de comunicação publicavam tendia ao
reducionismo. Sujar as mãos a ajudou a ganhar algum desprezo. O perfil que
Gerry Adams escreveu nos anos 90 para o The New York Times, quando a paz
na Irlanda do Norte já estava anunciada, era uma espécie de míssil Tomahawk que
ricocheteou no seu próprio telhado.
Edna escreve sem usar fórmula. Ela
foi uma mulher que, em grande parte, passou a vida escondida atrás do olhar. O
importante é toda a humanidade que sua literatura contém. As relações entre
seus personagens e sua vida parecem navegar de mãos dadas. Por exemplo, os
protagonistas compartilham o medo de perceber que não têm o apoio dos outros. E
há esse hábito dos adultos de culpar as crianças, os filhos, por tudo, de
fazê-los sentir-se mal, pecadores, de fazê-los acreditar que estão estragando a
vida dos pais: “Mary queria ir para a América de avião, mas ela pensou melhor e
pediu para ganhar muito dinheiro para comprar uma casa para os pais perto da
estrada principal”, diz de um dos protagonistas de uma das suas narrativas. É
necessário ter um sentimento de culpa profundo, muito enfurecido pela pressão
dos adultos, para deixar de ser criança, mesmo em seus sonhos. Ela menciona
pais incapazes de serem crianças. Ou seja, à maldição do esquecimento
sentimental, da falta de compaixão e até da piedade cristã que pregam. A menina
cresce com dor e sem o amor dos pais. Mãe, pais e trabalho é a santíssima
trindade que preside a vida dos seus personagens mais inocentes. Dessa forma, a
infância é o completo oposto do que deveria ser: alegria, liberdade,
brincadeiras e acontecimentos extraordinários. Apesar de tudo, O’Brien fecha
feridas, e não fere.
“A casa, as pedras quentes da
estrada, o brilho da água, apareciam de vez em quando na sua memória, sem
dúvida; mas esqueceria e relegaria isso para um canto escuro de sua mente, para
o lugar onde os fracassos se escondem.” “Mato-me por falta de inteligência e
porque não sei e não aprendi a viver.” As citações vêm de duas narrativas
diferentes. A combinação é avassaladora se pensarmos que se trata da mesma
pessoa, seu amigo, seu irmão. Naquele que talvez seja seu melhor romance, A
Pagan Place, ela demonstra que essa dor de memória não precisa levar à
morte. Há algo de terapêutico e de cauterização nessa obra. E nada disso é
mostrado excessivamente. Este é o romance de alguém que aprendeu a não se
culpar e depois esqueceu qual era a necessidade de se perdoar. A memória
retorna com tanta tristeza quanto serenidade.
“Quando alguém me observa, fico
muito desajeitada”, diz Kate, protagonista da trilogia Country Girls.
Com uma expressão tão simples, contém toda a sua vida. “Quando alguém me olha,
fico muito desajeitada”, frase que qualquer escritor gostaria de ter criado,
porque aniquila o hábito e a tentação de sentir pena de si mesmo, sem desistir
de reconhecer que nossos dias não têm sido tão felizes como sempre desejamos
lembrar.
* Este texto é a tradução livre de “Edna O’Brien, cuando el paisaje es
una alfombra bajo la que escondemos el dolor de la memoria” publicado aqui na
revista Frontera D.
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