“Coelho maldito” e uma nova onda de literatura fantástica escrita por mulheres

Por Vinícius de Silva e Souza



Parece, e isso era desconhecido para mim, que existe uma nova onda de literatura fantástica escrita por mulheres surgindo nos últimos anos encabeçada pela norte-americana Carmen Maria Machado. Por mais que se aproxime melhor do realismo mágico, e esse enquadramento pode ser contestado, já que parece vir apenas da sua nacionalidade, a argentina Samanta Schweblin também segue na mesma linha; e agora, temos Bora Chung.
 
Da escritora sul-coreana, destaco a coletânea Coelho maldito, primeira obra dela editada no Brasil; são dez contos em que ela mistura horror e fantasia para tratar de temas caros ao universo feminino, mas também à natureza humana.
 
O conto que dá título à antologia abre o livro com louvor: utilizando-se da técnica do personagem que conta uma história, Chung nos leva bem ao terreno que estamos prestes a adentrar, costurando uma deliciosa história de vingança-barra-justiça.
 
Já “A cabeça”, uma das melhores e mais impactantes narrativas, nos seduz pela sua construção paliativa e sorrateira, puxando nosso tapete ao final. E isso também pode se dizer de “Dedos gélidos”, o mais dark dentre os contos, o que melhor flerta com o terror.
 
A autora confessou, em algumas das diversas entrevistas concedidas à época em que figurou como finalista no International Booker Prize, que sempre busca se utilizar de uma situação bastante ordinária e desenvolvê-la no sentido oposto do comum/ normal. A forma como seus personagens tratam com normalidade as bizarrices que enfrentam, a exemplo do marido simplesmente aceitar a cabeça feita de dejetos no vaso, é uma prova disso.
 
E apesar de não ser uma estratégia ficcional inédita, é essencial a diluição da linha entre a realidade e a fantasia para a narrativa, a fim de que o esperado efeito de estranhamento, impacto, seja cumprido no leitor.
 
“Menorreia”, o quarto conto da coleção, apresenta-se como o mais feminino e palpável, enquanto “Adeus, meu amor” cai nos braços da ficção científica sem tanto esmero e apreço. E é a partir daqui que o livro perde um pouco do fôlego e da sua força em narrativas menos sucintas e alongadas, o que não é, por si só, um problema, mas afeta em definitivo o impacto dos contos; as narrativas deixam interrogações demais com sua secura e estilo “direto ao ponto” — e aqui me refiro aos textos “A Armadilha”, “Cicatriz” e “Lar, doce lar”.
 
Entretanto, felizmente, “O senhor do vento e da areia”, a penúltima narrativa de Coelho maldito, retorna aos bons ares primeiros de novidade e força em seu caráter folclórico-fabular; trata-se de uma bela história que, por mais direta que seja, é marcada pelos seus bem-vindos ares cinematográficos.
 
“Reencontro” encerra o livro com chave de ouro. “Essa é uma história de amor dedicada a você”, a narradora nos diz, logo no início, antes de partir para uma grande e doída história de amor e de fantasmas.
 
E é na mistura que a força de Chung se apresenta: com toques de Haruki Murakami, de Stephen King, de Edgar Allan Poe, ecoando Schweblin e Carmen Maria, a escritora sul-coreana debuta no Brasil com uma coletânea deliciosa, nos deixando com ar de quero mais, mesmo em seus momentos mais inferiores, uma vez que a introdução e o encerramento de Coelho maldito não poderiam ser mais sensacionais.


Ligações a esta post:

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Coelho maldito
Bora Chung
Hyo Jeong Sung (Trad.)
Alfaguara Brasil, 2024
232 p.
 

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