Canção de guerra em azul

Por Eduardo Galeno

IKB 191 (1962), Yves Klein. Wikipedia Commons (domínio público)


 
I
 
Eu não sei os sintomas da Aids (experiência: não sinto). Mas Derek Jarman falou e demonstrou que eles têm a cor azul (minha e de muitos a cor favorita na infância).
 
Jarman, por acaso, é um desses cineastas que gosto de ver, seja lá sobre o que seja sua produção: sobre um pintor renascentista, uma tradução fílmica da peça de Shakespeare ou um retrato da revolução punk na Inglaterra. O corte que me lança ao ver os seus filmes, apesar de escondido, não é complexo de afirmar: ele tem a ver com uma dupla identidade: a da criação/ destruição de formas artísticas. Blue, de 1993, é mágico nesse quesito. Estende o novo a partir de antiguidades.
 
O conteúdo é próximo porque ele nos revela a violência contida na biopolítica que assolou milhares, incluindo ele, ao longo das últimas décadas do século XX, em um contexto em que a doença era pouco combatida pela via farmacológica. Prestem atenção nessa palavra: biopolítica. Ali se movem todo o corpo e a assinatura da gestão psíquico-material da Aids, donde o filme, como testamento de Jarman, se desloca em um dos seus pontos principais. Ele luta e procura fugas.
 
A intimidade na qual o martelo da astúcia forja é, em última instância, a revisão apresentada por alguém que, com suas armas, aponta a artilharia para seus inimigos. Em outros termos, é um filme de arrebatamento. A tela em monocromia é dada justamente para o foco total de quem a assiste: sons e sons, não menos turvos, figuras, meios, declínios, sensos diversos.
 
A arquitetura textual das palavras narradas sofre qualquer tipo de regressão: memórias danificadas, principalmente, são o brinde que solidifica o argumento. Minhas noções sobre cor são poucas, apenas as simples existem, mas acredito piamente, vendo a conversão que ele faz, que o azul é tudo ali: princípio, fim. A começar pela cegueira salpicada de tons azulinos, “pensando cego, ficando cego”, nossa alma se envolve imediatamente no plano, embrenhando uma identidade que desaba.
 
“Borboletas azuis balançam entre a centáurea-azul, perdidas no calor do dia azul, cantando blues...” — ser tangível, deixar o objeto tangível pela forma do som e da imagem é um dos melhores recursos que o cinema nos dá. E a esse choque, permissão entre o discurso e a coisa, é que o cineasta abre as cortinas e dissolve a realidade. Mesmo que, por um lado, as vozes de Jarman sejam leves, às vezes hedonistas, às vezes poeticamente descontraídas, o que entra em jogo é, antes, um fato de guerra. Fatores subordinados ao combate contra a pulsão mortal que orquestra uma doença terminal. Blue é, nesse sentido, autobiográfico pelo simples grau que a própria autobiografia é uma elegia à vida.
 
Falar de si e das misérias físicas e do silêncio e de santa Rita e do pandemônio do Azul universal não é fácil. Unindo laços, destruindo lugares, formando linhas, enunciando essa cor viva de quem Yves Klein ficou obcecado, Jarman conseguiu manejar um processo espiritual e corporal (e interminável) de suas experiências. O mar, o céu: espelhos do mesmo. A ideia de juízo final não é senão a ideia de guerra contra as forças do mal. É por isso que ele precisa conjurar o infinito, como o do céu e o do mar, ao passo que sua soberania escapa numa barra de hospital.
 
É visto, assim, que Blue seja um espécime de notações de sonho. Não quero aqui falar sobre a antinomia entre o real e o onírico, mas vejamos: se a ficção, o fictício como tal, resolve transformar a matéria num clima demonstrativo de variações da fantasia, a fantasia quer clamar seu poder apenas, e apenas se, se ela se moldar à vigília. Nesse quesito, a arte é uma vigília de sonhos e também um sonho transmitido por consciências, mas Jarman é honesto em se apresentar como perdido na procura pela liberdade nos grandes teatros do mundo:
 
“De vez em quando, tenho um sonho tão magnífico quanto o Taj Mahal.”
 
No fundo, o que tirei do filme é que, mesmo se os narradores forçassem uma não-fala, ainda teríamos um sentido planando. A melhor introdução que ele faz ao espectador é o nascimento de uma força da imaginação que questiona os traços de todo experimento estético. O documento, que só pode ser um retalho de informações, martiriza nosso olho, nosso ouvido. O azul fica sendo a Imaginação, a Criação, uma canção de guerra contra algo: pairando nas nuvens e no entorno da eternidade.
 
“Suas roupas estão ao contrário, do lado avesso”: às vezes é preciso aprender com quem veste as roupas a contrapelo.
 
II
 
“Não vive de lembranças. Seu êxtase poético se transformou pouco a pouco numa vida sem acontecimento. Os anjos que punham suas asas azuis no céu fundiram-se num azul universal. Lentamente, a imensidão se institui como valor primeiro, como um valor íntimo primeiro. Quando ele vive realmente a palavra imenso, o sonhador se vê libertado de suas preocupações, de seus pensamentos, libertado de seus sonhos. Não está mais fechado em seu peso. Não é mais prisioneiro de seu próprio ser.” (A poética do espaço, Gaston Bachelard)
 
A arte de ser um cidadão do mundo,
a arte de ser homossexual,
a arte de produzir The Smiths,
a arte de ser amigo de Brian Eno e Tilda Swinton,
a arte de argumentar com Wittgenstein,
a arte de naufragar as convicções cotidianas (abaixar Sebastião e subir o monótono e o pop),
a arte de amar jardins,
a arte de defender o azul contra o preto, o amarelo, o branco, o vermelho e abraçar o araçá (o sonho-segredo).
 
Certo que o pensamento é movediço, a postura do seu movimento, no entanto, parece mais a de uma pedra. Opaca e translúcida, como a flor azul — cortada à mão, lembrando Cortázar, por Novalis — que está em vestígio e vestígio fica através das ruínas. A pedra lápis-lazúli. Opaca, translúcida.
 
***
 
“Jean Cocteau tira seus óculos, olha à sua volta com uma
maldade indescritível.”
 
Jarman o acompanha, mas num vacilo de direção oposta. E ainda, depois do filme, não consigo entender sua firmeza para o fim.

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