Borges, simetrias e leves anacronismos
Por Cristian Vázquez
Como começar um novo artigo sobre Borges? O que mais se pode dizer de um escritor sobre o qual foram escritas bibliotecas inteiras, apenas sobre ele, que sempre imaginou que o paraíso em forma de biblioteca?
O fazedor é um livro especial em vários aspectos. Provavelmente se deve, em grande parte, ao fato de ser o primeiro livro que Borges publicou depois de ficar completamente cego. Em 1955 havia sido nomeado diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. “Aos poucos comecei a compreender a estranha ironia dos acontecimentos”, disse numa conferência, mais de vinte anos depois. “Sempre imaginei o Paraíso em forma de uma espécie de biblioteca. Lá estava eu. Era, de certa forma, o centro de novecentos mil volumes em vários idiomas. Comprovei que mal conseguia decifrar as capas e as lombadas. Então escrevi o ‘Poema dos dons’”.
esta declaração da maestria
de Deus, que com magnífica ironia
Deu-me a um só tempo os livros e a noite.¹
O fazedor reúne contos, ensaios e poemas, os três gêneros que Borges cultivou ao longo de sua vida. É o seu regresso à poesia publicada em livro depois de mais de três décadas (o seu último volume de poemas havia sido Caderno San Martín, de 1929), e a partir de agora será a poesia que mais publicará, talvez o gênero mais oral, menos afetado por sua impossibilidade de ler. Ricardo Piglia afirmou que é muito perceptível a diferença entre a obra do Borges que podia ler e a do Borges cego: a deste último ainda é muito boa, porque era um gênio, mas não chega nem perto dos seus melhores textos.
Na Argentina, a partir de uma lei aprovada em 2012, o Dia do Leitor é comemorado todo dia 24 de agosto, em homenagem ao nascimento de Borges. É justo. Outra de suas frases mais repetidas é aquela em que propõe: “Que os outros se vangloriem das páginas que escreveram; eu me orgulho das que li.” No já citado “Borges e eu”, de O fazedor, ele diz a mesma coisa de forma mais velada e talvez mais bonita: “Eu ei de ficar em Borges”, prevê, “mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros”. Todos nós que escrevemos já sentimos esse estranhamento meio horrorizados ao nos reencontrarmos com nossos textos de dez, quinze, vinte anos atrás. É muito provável que os textos de muitos outros, aos quais sempre voltaremos, nos sejam muito mais fiéis do que os nossos ao longo do tempo.
Em 2011, o espanhol Agustín Fernández Mallo publicou O fazedor (de Borges), remake, livro que reúne cinquenta e cinco textos com os mesmos títulos dos de Borges, na mesma ordem, mas que são outros textos: um jogo, uma paródia, uma homenagem. Qualquer coisa menos plágio; quem viu assim foi María Kodama, viúva e herdeira dos direitos de Borges, e também a Justiça, que a ouviu e ordenou que o livro fosse retirado da venda poucos dias depois de começar a circular. Acredito, em todo caso, que a existência do livro não tem tanto valor quanto o gesto de tê-lo publicado, como se a ação de Alfaguara tivesse sido uma performance conceitual. (Claro que é o que digo, pois tenho o livro: comprei-o alguns anos depois, por um preço muito superior ao original, num sebo de Madrid.)
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O fazedor
Jorge Luis Borges
Josely Vianna Baptista (Trad.)
Companhia das Letras, 2008
176p.
Notas da tradução
1 A tradução aqui citada e de todos os excertos de O fazedor ao longo deste texto são de Josely Vianna Baptista (Companhia das Letras, 2008).
* Este texto é a tradução livre de “Borges, simetrías y
leves anacronismos”, publicado aqui, em Letras Libres.
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