Borges, simetrias e leves anacronismos

Por Cristian Vázquez




 
1
Como começar um novo artigo sobre Borges? O que mais se pode dizer de um escritor sobre o qual foram escritas bibliotecas inteiras, apenas sobre ele, que sempre imaginou que o paraíso em forma de biblioteca?
 
“A realidade gosta das simetrias e dos leves anacronismos”, diz o narrador de “O Sul”, o conto que Borges mais gostava entre todos que escreveu. Em outra passagem, o autor arriscou que “ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias”. Esta última citação corresponde ao brevíssimo texto intitulado “A trama”, de O fazedor, o mais “pessoal” de seus livros, conforme declara no epílogo. Pois bem, brinquemos com as simetrias e os leves anacronismos: Borges publicou esse livro em 1960, quando tinha pouco mais de sessenta anos, há quase sessenta anos. Falemos do mais pessoal de seus livros, falemos de O fazedor.
 
2
O fazedor é um livro especial em vários aspectos. Provavelmente se deve, em grande parte, ao fato de ser o primeiro livro que Borges publicou depois de ficar completamente cego. Em 1955 havia sido nomeado diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. “Aos poucos comecei a compreender a estranha ironia dos acontecimentos”, disse numa conferência, mais de vinte anos depois. “Sempre imaginei o Paraíso em forma de uma espécie de biblioteca. Lá estava eu. Era, de certa forma, o centro de novecentos mil volumes em vários idiomas. Comprovei que mal conseguia decifrar as capas e as lombadas. Então escrevi o ‘Poema dos dons’”.
 
A primeira estrofe é conhecida:
 
Ninguém rebaixe a lágrimas ou rejeite
esta declaração da maestria
de Deus, que com magnífica ironia
Deu-me a um só tempo os livros e a noite.¹
 
Embora o Manual de zoologia fantástica tenha sido publicado em 1957 assinado por Borges e Margarita Guerrero (e posteriormente republicado como O livro dos seres imaginários), O fazedor foi o primeiro livro de Borges sozinho desde Outras inquisições, que apareceu em 1952. Desde quando começou a publicar livros (o primeiro foi Fervor de Buenos Aires, 1923), ele nunca teve, nem voltaria a fazer, um silêncio editorial de oito anos. O autor destaca ainda que o volume “admite peças passadas”, como se republicar um livro tivesse custado tanto que o obrigasse a recorrer ao seu arquivo de textos espalhados aqui e ali.
 
3
O fazedor reúne contos, ensaios e poemas, os três gêneros que Borges cultivou ao longo de sua vida. É o seu regresso à poesia publicada em livro depois de mais de três décadas (o seu último volume de poemas havia sido Caderno San Martín, de 1929), e a partir de agora será a poesia que mais publicará, talvez o gênero mais oral, menos afetado por sua impossibilidade de ler. Ricardo Piglia afirmou que é muito perceptível a diferença entre a obra do Borges que podia ler e a do Borges cego: a deste último ainda é muito boa, porque era um gênio, mas não chega nem perto dos seus melhores textos.
 
Cinquenta e cinco peças constituem O fazedor. A primeira após o prólogo é a que dá título à coletânea, um conto sobre a cegueira de Homero:
 
“Gradualmente, o aprazível universo o foi abandonando; uma insistente névoa apagou as linhas de sua mão, a noite se despovoou de estrelas, a terra era insegura sob seus pés. Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava ficando cego, gritou; o pudor estoico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem menoscabo. ‘Não verei mais (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico nem este rosto que os anos vão transformar.’”
 
Se é verdade que só devemos escrever sobre o que conhecemos, não há ninguém mais adequado do que Borges para descrever esse processo em que as formas se confundem terrivelmente. Outros textos do livro abordam suas obsessões habituais: os tigres, os espelhos, os labirintos, o duplo (o famoso “Borges e eu”), a história argentina, a coragem, o amor. O fazedor é, parece-me, o melhor livro para se introduzir no universo borgesiano para quem quer fazer e não sabe por onde começar, ou para quem já experimentou e achou muito difícil ou inacessível. Como uma casa com cinquenta e cinco portas que dão para outros tantos corredores e todas elas dão para a mesma lareira junto à qual um velho sábio e cego conta histórias.
 
4
Na Argentina, a partir de uma lei aprovada em 2012, o Dia do Leitor é comemorado todo dia 24 de agosto, em homenagem ao nascimento de Borges. É justo. Outra de suas frases mais repetidas é aquela em que propõe: “Que os outros se vangloriem das páginas que escreveram; eu me orgulho das que li.” No já citado “Borges e eu”, de O fazedor, ele diz a mesma coisa de forma mais velada e talvez mais bonita: “Eu ei de ficar em Borges”, prevê, “mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros”. Todos nós que escrevemos já sentimos esse estranhamento meio horrorizados ao nos reencontrarmos com nossos textos de dez, quinze, vinte anos atrás. É muito provável que os textos de muitos outros, aos quais sempre voltaremos, nos sejam muito mais fiéis do que os nossos ao longo do tempo.
 
5
Em 2011, o espanhol Agustín Fernández Mallo publicou O fazedor (de Borges), remake, livro que reúne cinquenta e cinco textos com os mesmos títulos dos de Borges, na mesma ordem, mas que são outros textos: um jogo, uma paródia, uma homenagem. Qualquer coisa menos plágio; quem viu assim foi María Kodama, viúva e herdeira dos direitos de Borges, e também a Justiça, que a ouviu e ordenou que o livro fosse retirado da venda poucos dias depois de começar a circular. Acredito, em todo caso, que a existência do livro não tem tanto valor quanto o gesto de tê-lo publicado, como se a ação de Alfaguara tivesse sido uma performance conceitual. (Claro que é o que digo, pois tenho o livro: comprei-o alguns anos depois, por um preço muito superior ao original, num sebo de Madrid.)
 
O prólogo de O fazedor é uma espécie de carta de Borges a Leopoldo Lugones, na qual imagina um encontro entre os dois. Lugones morreu em 1938. “Minha vaidade e minha nostalgia armaram uma cena impossível”, escreve Borges no final do texto, “mas amanhã eu também estarei morto e nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos e de algum modo será justo afirmar que eu lhe trouxe este livro e que você o aceitou.”
 
Como não poderia deixar de ser, Fernández Mallo dedica seu prólogo a Borges, falecido em 1986, e lhe diz a mesma coisa. De certa forma, é com isso que muitos de nós que escrevemos sonhamos: que no futuro, quando tivermos morrido, os nossos tempos também se confundam e a cronologia também se perda num orbe de símbolos, e que de alguma forma, com vaidade e com nostalgia, tragamos para Borges alguns de nossos livros, e deixemos que Borges, rindo um pouco das simetrias e dos pequenos anacronismos, aceite-os. 


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O fazedor
Jorge Luis Borges
Josely Vianna Baptista (Trad.)
Companhia das Letras, 2008
176p.

Notas da tradução
1 A tradução aqui citada e de todos os excertos de O fazedor ao longo deste texto são de Josely Vianna Baptista (Companhia das Letras, 2008).


* Este texto é a tradução livre de “Borges, simetrías y leves anacronismos”, publicado aqui, em Letras Libres.

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