À que veio de Marte
Por Eduardo Galeno
Simone Weil. Foto: Babelio (detalhe). |
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Tudo ou nada. Virgem vermelha, Simone Weil parece ter
sido refém desse slogan. Não apenas refém, mas uma verdadeira conspiradora.
Simone pareceu, também, uma caixinha, um lugar em que todo o universo cabia,
todas as estrelas, todos os planetas e toda a magia das matérias e dos vazios.
Tudo ou nada. Tudo ao mundo e nada a ela; tudo a ela
e nada ao mundo. Quem apostaria no corpo dessa judia — pequena, magra, frágil,
que sofria de terríveis enxaquecas, de tuberculose e era míope — como espelho
do cosmos, desse vasto material que “nada mais é do que uma grande metáfora”?¹
Quem sabe, essas palavras sejam concedidas a, igualmente, seu corpo… pequeno,
mas grande… grande metáfora. A característica da experiência de Weil nos diz
que chegar ao mundo não é nada fácil quando a disposição resulta entre olhar e
comer. Olhar e… e… e… comer. Duas coisas que são tão fáceis, mas para
ela, vinda de Marte, não eram. Não eram. O horrível não mora nas duas ações, e
sim no entre, no meio. Ou era um ou era outro. Quem, com 6 anos
de idade, deixa de comer doces, renunciando ao prazer, para ajudar o outro que
sofre numa guerra? Weil fez. E continuou fazendo até aquele último dia, em
Ashford, nos últimos suspiros e no leito da morte, quando se entregou a um
batismo pouco ortodoxo, polimorfo, como sua vida foi.
A atitude da neoplatônica, acho — em plena era da
técnico-carnificina apocalíptica e das imagens com presas, da virtualização
total da miséria e do exílio até então eterno dos vencidos —, configura
seu laço às práticas da ascese (askésis), cuja função Foucault encontrou
nas “modalidades segundo as quais o sujeito deve ser transformado para,
finalmente, tomar-se sujeito capaz de verdade” (A hermenêutica do sujeito).
É um fragmento invencível daquilo que, raramente, existe hoje. Aplacamento em
Weil é quase inexistente. Por isso sua filosofia é tão radical em relação às
demais. Ela fez o que escreveu, um jogo de autotransformação. A sua
renúncia ao Eu é impressionante, o que a condiciona à repetição interna
e grosseira, obcecada e insana pela impessoalidade do outsider (por
exemplo, nem o comunismo nem a Igreja foram páreos para ela, mas em ambos seu
pensamento escorreu). Weil é decisiva, austera e violentamente anti-intelectual
porque soube transformar doutrina em prática como poucos na história da
modernidade, gesto que só loucos, místicos e artistas são capazes de fazer ou
entender por completo. Como Sócrates, a serenidade weiliana encontra conforto
na frieza do distanciamento, contraditória a seu espírito. Ali, o homem
é desnudado, colocado em xeque (“temos de acabar com a própria noção de
humanismo”), mas, por outro lado, isso implica realizar um afeto gigantesco
pela diferença (no sentido derridiano) na humanidade e no que
difere a humanidade dos outros (entes sobremundanos e extranaturais: pedra
e fantasmas, por exemplo): “cada coisa criada é um objeto de compaixão
porque é efêmera”.
Parte 1. Gnose, queda
As posturas de alteridade inquiridas por Weil ecoam no drama
pessoal pela Verdade, chegando ao que Sontag dispôs a chamar de
“realidade espiritual que não é nem poderia ser o seu” (Contra a
interpretação), àquela leitura de viventes que não podem compreender a
totalidade de afeto da francesa, apenas deixando a perturbação por sua escrita
como relevo nessa relação. Uma escrita que é inteiramente pós-nietzscheana,
movida pelo luto pela divindade perdida, pelo Deus renegado e decadente que se
distanciou do mundo e deixou seus filhos órfãos. Aqui, está residido “o diálogo
do grito de Cristo e do silêncio do Pai” ecoando num tempo, que é mutilação. No
mais: o sendo pelo que é.
Pensar em Deus, para Weil, é, justamente, pensar sua
retirada, sua ausência. “Deus espera como um mendigo imóvel e silencioso diante
de alguém que talvez lhe dê um pedaço de pão”: esvaziar o corpo (em aporte ao
pensamento) teria sido a saída encontrada por ela para cobrir o vazio da
deidade e, por isso, esse apreço terrorista com o que não era sua propriedade —
mas próprio estranhamente familiar —, pelos que não possuem nada além de
bocas caladas. A resignação total, “desinteresse”, de Simone era a chave para
sair do labirinto, abertura estratégica.
Precisamente, o que está no interior desse buraco é a
expulsão de qualquer excepcionalidade humana. É uma soberania que não deve
existir — ou, pelo menos, se manifesta falsa —, essa inscrição dos passos de
Adão como guias de todos os fenômenos, pois 1) reage com (a técnica, exempli
gratia), tentando dominar a qualquer custo tudo e todos 2)
diviniza a noção de subjetividade, ego e seus semelhantes. Não se fala que, em
Weil, exista uma crítica substantiva ao finalismo, porque o que estão em
inteira relação são proposições muito desordenadas e alçadas ao que ela chama
de sobrenatural (metaforizada, a Natureza física consiste como
principal inimigo), mas é preciso ter em mente a categorização da graça
como resposta e fuga à densidade, ao peso do mundo: “pela ação da graça, o eu
pouco a pouco desaparece e Deus se ama por meio da criatura, que se esvazia, se
torna nada”. O Mal, assim, é triunfante. Naquele cujo princípio é buscar o Bem,
sem qualquer elemento mediador, vai a Deus. Pela luz que enfrenta a gravidade
(sim, a newtoniana), toda a atmosfera consegue desvelar uma outra força
insistente a suportar a queda do céu, os astros caindo sobre os corpos,
partindo para a nadificação absoluta. “Saber de toda a minha alma que sou nada.
A alegria de ser nada”. Não significa, entretanto, glorificar a morte antes de
glorificar a vida: “é preciso amar muito a vida para poder amar ainda mais a
morte”.
A gnose precede e procede à ruína. Iluminação.
Desvelamento. Conhecimento. Existe, imbricada, toda circunstância do Outside
que move a história entre “vida” e obra, num assombroso caso de fanatismo. Weil
quer a Verdade não para se orgulhar desse descobrimento (lembremos do
aspecto humilde franciscano do seu trabalho), porém para examiná-lo na
matéria desprovida de elementos individualizantes. Nesse momento, escoa
o astuto decaimento interior para uma interioridade fraudada por outrem
(o que explica ter deixado a vida de professora e ter ingressado em fábricas da
Renault).
Também: esse absurdo de ter ouvido e visto rezas de viúvas
em Portugal e, logo, de ter assumido o lado dos fracos, eleva seu pensamento a
um dos mais particulares dos últimos 100 anos. Desde então, a enigmática marca
do escravo tatuada nela, algo muito próximo (não igual) ao personagem Donissan,
de Bernanos, mostra Weil atormentada por impossibilidades múltiplas, por
anacronismos que desatam sua alma como se fosse um carretel perdendo a linha.
Blanchot cita uma frase, em 1969, sobre esse impossível: “quando, por exemplo,
Simone Weil diz simplesmente: ‘A vida humana é impossível. Mas somente a
infelicidade revela isto’” (A conversa infinita). Ele quis demonstrar a
tese logo após que “não se trata de denunciar o caráter insuportável ou absurdo
da vida — determinações negativas que remetem à possibilidade — mas de
reconhecer na impossibilidade nossa mais humana participação à imediata vida humana,
aquela que nos compete sustentar, cada vez que despojados pela infelicidade das
formas cobertas do poder, atingimos a nudez de toda relação, esta relação à
presença nua, presença do outro, na paixão infinita que vem dela.” (A
conversa infinita)
É dentro dessa perspectiva de impossibilidade, do “desejo
não saciado, insaciável por si mesmo”, no lugar de
mal-estar, em que a ação toma conta e dá seus passos, profusão criativa. A
densa queda chega às portas. Ela diz que, então, “a criação e o fim do mundo
significam que existe uma realidade não temporal que é infinitamente maior do
que o todo o tempo”. Os apontamentos teológicos aproximam demais a criatura e o
criador. E isso aparece vindo de outro lugar.
À parte seu fascínio pela Grécia antiga, Weil viu, buscando
frações específicas, a realidade não temporal sob a perspectiva hindu. Arjuna,
o guerreiro de Gita, recebe conselhos de Krishna, protetor do dharma
(dever). Arjuna está aturdido, confuso, perante a necessidade impositiva da
guerra, na qual Krishna o incumbe a realizar o procedimento como tal. Em toda a
questão apresentada no grande poema, destruição e nascimento estão bailando
numa mesma dança. Se o que Blanchot disse, em O livro por vir (1959), é
verdadeiro — sobre a injustiça de Weil sobre o pensamento judaico,² aludindo à
aversão que possuía ao tempo, ao movimento, na defesa dos tempos puros (como o
matemático, o cíclico ou o místico) —, é tão verdade também o injusto enunciado
que comete ao negar (e não compreender) um ato desesperado dessa mulher
desesperada.
Se Weil viu na emanação de Brama um exemplo ao se sacrificar
para parir o mundo, é porque, antes, queria achar portas de saída para a queda,
mesmo que, através apenas, do pensamento.
Para além do tempo, “preciso suprimir o eu”. Cancelar
essa via como inimigo primordial. Apesar de — lutar à la Arjuna. Charles
de Gaulle a chamou de louca ao ver seu plano tático de combate ao Reich,
cuja façanha era formar uma linha no front em que mulheres cuidariam dos
feridos de ambos os lados.
Parte 2. Comunidade, metaxu
Diálogo platônico: “se aparecesse alguma coisa que ao mesmo
tempo existisse e não existisse, tal coisa ficaria em posição intermédia entre
o Ser absoluto e o Não-ser absoluto, e que sobre ela não haveria ciência nem
ignorância, mas o que aparecesse a meio caminho da ignorância e da ciência?” (A
república).
A ideia de comunidade está explícita em Weil. Como? A
implosão tanto da noção soberana do Eu quanto, por outro lado e,
necessariamente, na outra face do primeiro, do conceito do Nós, reúne
uma crítica virulenta à comunidade positiva, construída pela emergência da
entranha moderna, de modo que a prerrogativa dessa força se sustenta na
derivação do direito em torno da propriedade privada. É, assim, pela
prorrogação da norma enquanto fim, que a comunidade da Lei se põe, inserindo os
privilégios individuais no tecido do “comum”, prolongando a distância,
atomizando um conjunto. Essa carapaça apontada por Weil diante da figura
da pessoa, pessoa humana, orientação da prática do direito pelo
contrato, Agamben demonstrou na conceitualização do Homo sacer, a
transformando em vida, capturada pelo poder. Indo além da mera
influência, se Agamben se refere, na mesma linha de Sartre, às experiências de
Bataille como místicas, a Weil também serão feitas, por tabela e transição de
pensamento, as mesmas posições, formuladas em valores trocados. O que é
interessante, porque, no caso de Weil, ela, diferente de Bataille, acreditava
numa transcendência. Isso sugere uma distância entre as influências posteriores
e o que realmente foi o pensamento de Simone, dado o espraiamento de ideias permanente
de sua perspectiva.
As causas enunciativas sobre a esfera crucial de uma
comunidade se encontram na crítica ao desenraizamento. A penúria aproximada do
caráter nas mazelas desgarradas de vários povos (das colônias aos campos de
concentração) elucida o fato acional da legitimidade política. A ideia de nossa
autora é desviar dessa norma, mesmo parecendo impossível.
Nesse coletivo que se coloca na esteira de uma conexão, os
conectivos em razão de espacialidades, “como as letras do alfabeto, intervalos
musicais… relação”, são multifacetados. Weil queria encontrar algo de
comunitário e individual, mas sem a separação. Na retórica platônica, isso
significa sacrificar dois vieses, fazer com que o corpo seja uma segunda veste
da alma. É por esse motivo que a atitude que pensa o metaxu é aquela
inflamada com o resumo “tornar visível o invisível”, sair do objeto ao olho.
Fazer contatos. “É sempre uma questão de elevar-se acima das perspectivas por
meio da composição de perspectivas, de se colocar na terceira dimensão”. O sentimento que advém dessa ideia é a de com-paixão, pura compaixão
como metaxu. Compaixão variada em amor. Amores religiosos, amores
comunistas.
Parte 3. Escritura, amor
Malheur: palavra tão pequena que se envolve num
punhado de significados. Um deles é ter como pano de fundo a exigência da
paixão, que se transforma, necessariamente, no amor. O amor só poderá ser desgraça,
um sinal da nossa maldade. Eu canto o mundo porque ele continuamente me
subtrai. Sendo limitado, o ser humano sofre desse amor. Somente assim,
nesse desvio, Weil quer pular e encontrar outro amor.
“Um amor profundo muda uma vida.”
A consistência dessas palavras ressoa na letra. É concreta,
diretamente violenta como o mistério da cruz — mas não menos dúbia. Aliás, a
maioria das coisas que Weil escrevia tinha caráter enigmático: parecia símbolo
de esfinge. Uma chuva de informações colocadas num modo pouco ordenado, mas com
preciosas frases. Falando de amor, da certeza do amor, ela conseguia sustentar
tudo o que escrevia. Porque praticamente toda a estrutura das suas ideias era
inexpressiva. Esse motivo levaria, exatamente, à agonia de viver.
É como se Weil fizesse um grande Bildungsroman
(romance de formação), escrevesse na vida e na obra seus pactos
como heroína no palco do teatro do mundo. Acima de qualquer coisa, essa
persistência amorosa em sua visão é parte daquilo que anotava na noesis.
Dessa forma, pensar é um dos atributos que mais une o divino e o homem:
o pensamento, que trabalha como elevação nos estados místicos, se acopla com os
traços amorosos. Um processo espiritual pelo qual o sujeito ganha tudo, mas
perde mais ainda.
Uma recorrência, meio implícita, é que Weil tenha sido uma
herdeira de forças poéticas. Seu magnífico ensaio falando do poema da força, a Ilíada
de Homero, traça esse panorama. Sem perder a ternura, a torção homérica incide
drasticamente: “a alma submetida à guerra brada pela libertação”, nos diz, e “a
própria libertação lhe aparece sob uma forma trágica”. Podemos afirmar que o
giro é outra expressão para o que acontece numa experiência-limite na
escritura: mudanças no semblante (reflexões, pulsões, exageros, catatonias). O
amor, esse impessoal signo dilacerante, e a escritura, medium de nossas
vivências, se unem no pensamento weiliano como chamamento. Os dois chamam para
uma saída do sentimento do ego, reverberam uma entrada para amar o intolerável.
Amar bem. Inscrever bem.
Palavras dela:
“O significado de todos esses casamentos
principescos nos contos populares está contido na copla espanhola: “amores
possíveis — são para tolos — os sábios sentem — amores impossíveis.”
Para fecharmos, minha opinião é de que essa marciana foi um
desses cometas sazonais, de que temos conhecimento, passando a cada 100 anos.
Serve, diante de nós, como metanfetamina. Sua crueldade de pensamento,
comparada a Artaud, é intransigente. Nada passa ao lado dos livros de Weil, da
escrita weiliana, sem perecer, subtrair um pouco que seja, sem doer em conjunto
com as letras, as frases, os parágrafos. Esses excessos pululantes à linguagem
inauguram algo de novo ao manejarmos a leitura aos fatos vividos por ela. Desse
modo, sendo um caso raro de coerência extrema, o poderio dos signos que embalam
as discussões embrenhadas recebe uma espécie de continuidade inusitada. Viver
como se escreve e escrever como se vive, sim. Não há espaço senão para a
multiplicidade real da Beleza e do Bem. Que pensamento violento! Uma violência
que, ao mesmo tempo, é bonita e bondosa. E ao mesmo tempo leve e descontraída,
ao mesmo tempo graciosa e flutuante. Vem a tempestade, na esteira de
Shakespeare, de quem gostava e era tanto devedora… “certos atos procedem de nós
quando estamos em tal e tal estado, sem nenhuma intenção particular que nos
motive enquanto os executamos. É o caso de escrever poesia, alimentar os
famintos”.
Que escrevamos poesia e alimentemos os famintos.
***
Off: meu filme brasileiro preferido é Viagem ao
fim do mundo (1968), de Fernando Coni Campos. Uma das personagens é uma
freira, que faz os relatos a partir de textos de Simone. Talvez a influência
principal em escrever sobre ela tenha partido daí.
Notas
1 Todas as aspas usadas, com exceção das que estão
nominalmente citadas no texto, são dos seus Cadernos.
2 Simone Weil não olhava para a primeira parte da Bíblia
como olhava para a segunda.
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