A gente boa e má de Shirley Jackson

Por Mercedes Alvarez




Se o leitor destas linhas se deleita com casas senhoriais, mistérios não revelados, personagens excêntricos e rancores finamente destilados ao longo dos anos em pequenas cidades desconhecidas, certamente passará bons momentos com Sempre vivemos no castelo. Pode ser também que, antes de se aproximar deste romance, o leitor destas linhas morda a isca e acredite que vai se deparar com um clássico do gênero terror. Nosso dever, entretanto, é alertar que, embora alguns momentos da obra de Shirley Jackson (1916-1965) possam ser considerados aterrorizantes, não se trata de um romance de terror “habitual”.
 
A protagonista desta história é Mary Katherine Blackwood mas todos a chamam por Merricat. Mora com sua irmã Constance, o tio Julian e o gato Jonas, após o restante da família (seus pais e a esposa de Julian) morrerem envenenados dentro da própria casa, em circunstâncias não esclarecidas pela justiça e nem pelos próprios membros da casa. O assunto preocupa especialmente ao tio Julian, que assumiu a tarefa de contar por escrito, mesmo com a mente já um tanto arteriosclerótica e bastante debilitada, as memórias da família e daquele fatídico dia.
 
Para abastecer a casa de gêneros e alimentos, Merricat vai à cidade uma vez por semana. Passa pelo escárnio público, pela zombaria dos moradores locais e finalmente retorna ao refúgio de sua casa isolada e luxuosa, cheia de relíquias do passado, encravada no meio de uma cidade onde todos são, claramente, inferiores aos Blackwood. “Gostaria que todos estivessem mortos”, pensa Merricat.
 
Ela pensa nisso repetidas vezes, e também, repetidas vezes, retorna ao seu próprio mundo de fantasia; imagina o tempo todo como seria a vida na Lua, possui seus próprios rituais, enterra constantemente no jardim objetos valiosos que considera talismãs de proteção. Ou seja, é uma figura excêntrica, infantil e mesmo meio maluca. Seu mundo é o do reduto familiar. Nele tudo possui um sentido. As coisas começam a se complicar quando aparece Charles, que se fixa na casa repentinamente e com intenções pouco claras, para acabar com a ordem perfeita na vida da prima Merricat.
 
Se Jackson faz algo com incrível maestria neste romance, é delinear seus personagens com tanta precisão que podemos vê-los até em seus gestos, ao longo da narrativa que não interrompem, nem por um minuto, a tensão de uma história perfeitamente construída. Personagens e tensão, o que mais se poderia pedir em um romance. A escritora acrescenta ainda muito humor negro, na forma de diálogos divertidíssimos.
 
Mas, se Sempre vivemos no castelo é, em sua essência, um estudo aprofundado e fascinante da natureza humana, da tensão entre as boas maneiras, a sociedade e a vida íntima, e de como algumas pessoas podem superar a barreira da saúde mental para se estabelecerem em seu sonho particular, construído na medida de sua incapacidade de se relacionar com os outros, quais são suas verdadeiras motivações?
 
Constance e Merricat não querem nem pedem nada. Eles só estão interessados ​​em acompanhar um ao outro, embora nunca saibam se isso é um milagre ou uma maldição. São muito parecidos, no seu delírio, com os protagonistas de Grey Gardens, um documentário de 1975 que Jackson logicamente não viu, mas que sem dúvida a teria fascinado. Nele, dois parentes próximos de Jackie Onassis, mãe e filha, acompanham-se (ou destroem-se) sobrevivendo nas ruínas de sua antiga luxuosa mansão que já não atendia nem aos requisitos mínimos de higiene. A casa, como neste romance, desempenha um papel central e se torna a metáfora de toda uma vida.
 
Os objetos, porém (uma xícara, uma toalha de mesa, um copo velho), não são abandonados: são resgatados para se tornarem amuletos que protegem de um exterior adverso. Porque, como diz a própria Merricat, “o mundo está cheio de gente má”. Embora às vezes as distinções entre o bem e o mal sejam, para alguns, suspeitamente duvidosas. 


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Sempre vivemos no castelo
Shirley Jackson
Débora Landsberg (Trad.)
Alfaguara, 2022
176 p.


* Este texto é a tradução livre de “La gente buena y mala de Shirley Jackson”, publicado aqui, na Revista Ñ.

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