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Horácio. Gravura, 1606. Arquivo Biblioteca de Madri. |
Há uma pequena passagem na
Arte poética de Horácio
(XXXIII) e um poema da mesma autoria que me fizeram relembrar alguns assuntos
que atuam como fantasmas, seja individual ou coletivamente. A relação entre
pintura e poesia seria o maior deles.
O que tem entre as duas artes? Precisamos pontuar brevemente
uns contratos.
Como conhecemos, tanto a poesia como a pintura são enlaces
de um fundo estrutural ligados a movimentos epocais de origem. Quando falamos
de pintura e poesia — ou melhor, quando
eu falo aqui de pintura e poesia
—, falamos de pintura e poesia ocidentais, enraizadas no ambiente das
antiguidades greco-romanas. Horácio e os afrescos de Roma têm um lugar
(determinado), indicando a sobredeterminação de sentido histórico (que, é
óbvio, vêm diretamente a nós, no século XXI).
Isso em si não impede nada. A universalização do enunciado
pode convergir com o outro, principalmente se ele responde às questões poéticas
ocidentais (o caso, por exemplo, das grandes narrativas heroicas
latino-americanas durante a ascensão modernista). O que é perigoso, nesse
plano, é falar pelo outro, não falar do que
você tem do outro. Dito
isso, persistimos que, se a poesia é, é para todas as regiões ontológicas.
***
Enfim, estava lendo a poesia horaciana — precisamente o “Cântico
secular (Carmen saeculare)”, que fechou os jogos seculares de 17 a.C sob a
égide governamental de Augusto — e me dei conta do contato que a prática e a
teoria horacianas têm entre si. As odes e seu gesto poético-retórico fazem o
mesmo monumento, às vezes confundindo uma na outra. O exemplo maior é que a
própria
Arte poética é um poema didático, assim como a sua ficção
desliza nos objetos reais (cf. a grande festa popular latina).
O canto secular se refere a uma abertura distinta do
poema-teoria. Enquanto a
Arte poética trabalha em dizer o que quer, o
canto exalta o que já está sendo. As minhas projeções com essa distinção,
porém, não eliminam em nada que em ambas as partes estejam contidas esse toque
da pintura, o gesto pictórico na poesia.
Talvez a perspectiva exata assenta nesse liame de fazer
pintura onde esteja a poesia? Talvez. É certo que, por detrás disso, a chegada
dessa semelhança (não analogia, mas
transfusão linguística, às vezes
mais-que-linguística)
caminhe por uma via estratégica... a de driblar a língua total. Não há arte
total. Em outros termos, não há necessidade de separação absoluta entre a
poesia e a pintura. Lemos as palavras de Horácio:
À pintura a poesia se assemelha;
Em ambas gostarás mais de umas coisas,
Se estiveres de perto, outras de longe.
Esta quer pouca luz, aquela às claras
Apetece ser vista, não receando
A perspicácia de olhos julgadores.
Uma causa deleite uma vez vista,
Outra vista dez vezes sempre agrada. (
Arte poética)
Uns atestam que não há uma comparação aí (no sendo em que
dizemos ‘a poesia é como a pintura’'). Tenho uma tese: não há comparação
de
fato, mas
deslocamentos sempre-já virtuais (ou seja, um se maquia no
outro). São volumes de relações; seriam ligações se avolumando em domínios
para-fora-de-si. O poema supera o que é, domina o que não é mais seu. A palavra
se transforma, então, em imagem.
A responsividade da particular
poesia é inserida
nesse jogo entre a imagem e a palavra, entre, aliás, o não-dito e o dito. O
poético é refeito através desse resquício (portal) que apresenta ao poeta a
virgindade da palavra. É por meio dessa palavra ‘virgem’ que a imagem é
conquistada: nela, as visões e reuniões do discurso poético — na voz do poeta —
são “formadas”, emergidas, instauradas.
“Como quando se pinta de Diana o bosque ou ara, e de um
ribeiro o curso apressado, que rega o prado ameno, ou se descreve o decantado
Reno, ou a Íris pluvial” (II,
Arte poética). Olha a elegância sugerida
no contradiscurso de Horácio. Elegância da qual mais gosto, a mais lírica mas
também a mais economicamente expressa. Tenho a sensação de que, além da pintura
e poesia, Horácio também fazia economia aí. Esse trecho, indo além, revela um
corredor preciso e que a complementa (sendo não de Horário, mas de Boileau): “a
habilidade agradável de um pincel delicado transforma o mais horrendo objeto
num objeto fascinante”.¹ Parece que Horácio, na sua ordem de pensamento,
mergulhava nas ideias de Boileau, apesar de ter vivido séculos antes. Parece,
em primeira análise, que não é Boileau o influenciado, e sim o contrário (de
tão exata que é sua escrita).
***
Tanto o poema quanto a pintura interrompem no quadro (da
folha ou da moldura). Isso significa que eles param em seus objetos
(materiais), demonstrando aquele tipo da novidade (retida em demasia,
consumindo todo o objeto), mas igualmente retroalimentando outras nuances que
poderão vir. Porque são técnicas, são, acima de tudo, reparações objetivas,
habilidades atualizadas por uma
Gestalt (forma).
Skiagraphía era o nome para a justaposição longiniana
das cores. Sombra e luz, luz e sombra partilhando o mesmo tropo. A imagem-tropo
desse compartilhamento me lembra uma outra coisa: a feitura de Warburg, em 24
de maio de 1889, à medição concreta sobre esses muros: “se um tipo de arte pode
aprender a linguagem e os modos artísticos de outra e vice-versa”.² Nesse
sentido, porque quer manusear uma língua na outra, o dito estabelecer de
Warburg comentando a separação entre poesia e pintura em Lessing é o mesmíssimo
empreendimento de Horácio.
Percebam que, ali e aqui, a separação implica
necessariamente em imbricação. O fator principal desse rapto da pintura na
poesia se dá de modo que, entrementes o percurso de ligamento, a cautela
sentida pelo poeta é tecnológica (produzida). Quando ele diz ‘palavra’, quer
fazer
imagem. Quando ele olha uma ‘imagem’, só poderia transformá-la em
palavra.
Vejamos alguns riscos do poema de Horácio:
(...)
Ilítia, tu que graciosa levas a um bom fim
os partos na altura própria, protege as mães,
quer queiras ser
chamada de Lucina,
quer de Geradora.
(...)
Que a Terra, fértil em cereais e em gado,
Ceres presenteie com uma coroa de espigas;
e que as salubres águas e as brisas de Júpiter
alimentem os seus
frutos.
(...)
Já a Lealdade, a Paz, a Honra, o antigo Pudor,
e a desprezada Virtude ousam voltar,
e a bem-aventurada Abundância surge
com seu corno cheio.
e os quatro últimos:
(...)
O áugure Febo, enfeitado com o seu fulgente arco,
amado pelas nove Camenas,
ele que com a sua arte medicinal
alivia os membros cansados do corpo,
se ele de fato benigno olha pelos altares
do Palatino, então o poder romano há de prolongar
e a prosperidade do Lácio por mais um ciclo,
e por épocas sempre melhores.
Diana, aquela que habita o Aventino e o Álgido,
atende as preces dos Quinze Homens,
e ouve com amizade e atenção
os votos dos rapazes.
Regresso à casa com esta boa e firme esperança,
que são estes os sentimentos de Júpiter e dos deuses todos,
eu, cantando num coro a quem foi ensinado
os louvores de Febo e de Diana.
Horácio deixa escapar o
ordo do poema numa juntura
elementar. Por isso que todas as séries e tópicos frasais têm o mesmo valor.
Esse valor é dinâmico, porém. A significação dos semas é, em última instância,
retraduzida em outros lugares (o poeta amava a palavra ‘lugar’, o
locus
latino). Bandas como
Lealdade,
Paz,
Honra e
Pudor
são contíguas aos cantos e louvores, assim como, posteriormente, os
quadradinhos bizantinos formavam autonomias, mas, em suma, eram macetes para o
todo orgânico da paisagem.
Mas oclusiva: a orgânica poética de Horácio, para melhor
explicação, não é feita por uma
única interpretação. Ela incide e se
reparte, t-o-d-a aberta.
Revolvere = reler. Podemos, desse jeito, ler as
partes do canto começando por baixo e indo para cima, ler apenas uma frase,
reduzir também o sentido a algumas palavras (até mesmo
próprias), como
fazemos, em situações comuns, quando vemos uma pintura renascentista, seus
detalhes, nossas intuições com os sinais, as partes. Isso é fazer série
(planejar modulações através de instabilidades imutáveis), se revoltar.
O oco que sustém um poema — a varredura simbólica nos versos
— não serve nem na linha da funcionalidade, embora real, nem na quimera, embora
também imaginário. A hiância dessa chegada do poema ao mundo é a mesma da
partida. A imanência que a letra dá é já transcendente. Somente com esse tipo
teórico que se verá a influência da pintura na poesia.
O senso se planta, aqui, na maneira de ser do poemático.
Persiste um desenho lá, amplificado pelo foro íntimo da passagem da letra. As
letras horacianas são, por assim dizer, peças de construção semântica, peças de
peças sociais (simulação do poder soberano de Roma).
A entronização da imagem é feita pela
aproximação (perto ou longe) da figura desejada (às figurações noturnas, às
figurações diurnas).
Sim: quando percebo o claro-escuro desses trechos, me
aparece a
transferência, característica de conexão — nem sempre linear,
como aqui — das artes. Se a poesia de Horácio mostra caracteres transitórios de
uma festividade — conjuntamente às ideações das moiras e das ilítias na ordem
ctônica —, é para clamar, através de Diana e Febo, da Lua (o escuro) e do Sol
(o claro), o que se falava nas entrelinhas: o eterno que a pintura traz consigo
(eterno como tomada imutável,
presença).
A poesia de Horácio é uma poesia de mosaico (não apenas no “Canto”,
mas em todas as
Odes). Ela programa polaridades, reunindo o que há de
encarnado num programa de profundidade, mas profundidade de perspectiva (o
observar, o ponto de vista do espectador, elucida o porquê da materialidade
poética de Horácio ser tão “escondida”, estar subordinada a um
fundo).
Pensemos na máquina significante de Horácio como modelo lexical que suporte
variações (binários, tríades, quadrados), suportando quaisquer monumentos por
estar sempre se movendo. Eu me recordo dos
Metaesquemas (1957) de
Oiticica, de figuras geométricas passeando pelo papel, compostas por uma dança
irrefreável.
Notas
1
Arte poética (1674), de Nicolas Boileau.
2
Ghiberti e o Laocoonte de Lessing, de Aby Warburg.
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