Ut pictura poesis

Por Eduardo Galeno


Horácio. Gravura, 1606. Arquivo Biblioteca de Madri.


 
Há uma pequena passagem na Arte poética de Horácio (XXXIII) e um poema da mesma autoria que me fizeram relembrar alguns assuntos que atuam como fantasmas, seja individual ou coletivamente. A relação entre pintura e poesia seria o maior deles.
 
O que tem entre as duas artes? Precisamos pontuar brevemente uns contratos.
 
Como conhecemos, tanto a poesia como a pintura são enlaces de um fundo estrutural ligados a movimentos epocais de origem. Quando falamos de pintura e poesia — ou melhor, quando eu falo aqui de pintura e poesia —, falamos de pintura e poesia ocidentais, enraizadas no ambiente das antiguidades greco-romanas. Horácio e os afrescos de Roma têm um lugar (determinado), indicando a sobredeterminação de sentido histórico (que, é óbvio, vêm diretamente a nós, no século XXI).
 
Isso em si não impede nada. A universalização do enunciado pode convergir com o outro, principalmente se ele responde às questões poéticas ocidentais (o caso, por exemplo, das grandes narrativas heroicas latino-americanas durante a ascensão modernista). O que é perigoso, nesse plano, é falar pelo outro, não falar do que você tem do outro. Dito isso, persistimos que, se a poesia é, é para todas as regiões ontológicas.
 
***
 
Enfim, estava lendo a poesia horaciana — precisamente o “Cântico secular (Carmen saeculare)”, que fechou os jogos seculares de 17 a.C sob a égide governamental de Augusto — e me dei conta do contato que a prática e a teoria horacianas têm entre si. As odes e seu gesto poético-retórico fazem o mesmo monumento, às vezes confundindo uma na outra. O exemplo maior é que a própria Arte poética é um poema didático, assim como a sua ficção desliza nos objetos reais (cf. a grande festa popular latina).
 
O canto secular se refere a uma abertura distinta do poema-teoria. Enquanto a Arte poética trabalha em dizer o que quer, o canto exalta o que já está sendo. As minhas projeções com essa distinção, porém, não eliminam em nada que em ambas as partes estejam contidas esse toque da pintura, o gesto pictórico na poesia.
 
Talvez a perspectiva exata assenta nesse liame de fazer pintura onde esteja a poesia? Talvez. É certo que, por detrás disso, a chegada dessa semelhança (não analogia, mas transfusão linguística, às vezes mais-que-linguística) caminhe por uma via estratégica... a de driblar a língua total. Não há arte total. Em outros termos, não há necessidade de separação absoluta entre a poesia e a pintura. Lemos as palavras de Horácio:
 
À pintura a poesia se assemelha;
Em ambas gostarás mais de umas coisas,
Se estiveres de perto, outras de longe.
Esta quer pouca luz, aquela às claras
Apetece ser vista, não receando
A perspicácia de olhos julgadores.
Uma causa deleite uma vez vista,
Outra vista dez vezes sempre agrada. (Arte poética)
 
Uns atestam que não há uma comparação aí (no sendo em que dizemos ‘a poesia é como a pintura’'). Tenho uma tese: não há comparação de fato, mas deslocamentos sempre-já virtuais (ou seja, um se maquia no outro). São volumes de relações; seriam ligações se avolumando em domínios para-fora-de-si. O poema supera o que é, domina o que não é mais seu. A palavra se transforma, então, em imagem.
 
A responsividade da particular poesia é inserida nesse jogo entre a imagem e a palavra, entre, aliás, o não-dito e o dito. O poético é refeito através desse resquício (portal) que apresenta ao poeta a virgindade da palavra. É por meio dessa palavra ‘virgem’ que a imagem é conquistada: nela, as visões e reuniões do discurso poético — na voz do poeta — são “formadas”, emergidas, instauradas.
 
“Como quando se pinta de Diana o bosque ou ara, e de um ribeiro o curso apressado, que rega o prado ameno, ou se descreve o decantado Reno, ou a Íris pluvial” (II, Arte poética). Olha a elegância sugerida no contradiscurso de Horácio. Elegância da qual mais gosto, a mais lírica mas também a mais economicamente expressa. Tenho a sensação de que, além da pintura e poesia, Horácio também fazia economia aí. Esse trecho, indo além, revela um corredor preciso e que a complementa (sendo não de Horário, mas de Boileau): “a habilidade agradável de um pincel delicado transforma o mais horrendo objeto num objeto fascinante”.¹ Parece que Horácio, na sua ordem de pensamento, mergulhava nas ideias de Boileau, apesar de ter vivido séculos antes. Parece, em primeira análise, que não é Boileau o influenciado, e sim o contrário (de tão exata que é sua escrita).
 
***
 
Tanto o poema quanto a pintura interrompem no quadro (da folha ou da moldura). Isso significa que eles param em seus objetos (materiais), demonstrando aquele tipo da novidade (retida em demasia, consumindo todo o objeto), mas igualmente retroalimentando outras nuances que poderão vir. Porque são técnicas, são, acima de tudo, reparações objetivas, habilidades atualizadas por uma Gestalt (forma).
 
Skiagraphía era o nome para a justaposição longiniana das cores. Sombra e luz, luz e sombra partilhando o mesmo tropo. A imagem-tropo desse compartilhamento me lembra uma outra coisa: a feitura de Warburg, em 24 de maio de 1889, à medição concreta sobre esses muros: “se um tipo de arte pode aprender a linguagem e os modos artísticos de outra e vice-versa”.² Nesse sentido, porque quer manusear uma língua na outra, o dito estabelecer de Warburg comentando a separação entre poesia e pintura em Lessing é o mesmíssimo empreendimento de Horácio.
 
Percebam que, ali e aqui, a separação implica necessariamente em imbricação. O fator principal desse rapto da pintura na poesia se dá de modo que, entrementes o percurso de ligamento, a cautela sentida pelo poeta é tecnológica (produzida). Quando ele diz ‘palavra’, quer fazer imagem. Quando ele olha uma ‘imagem’, só poderia transformá-la em palavra. Vejamos alguns riscos do poema de Horácio:
 
(...)
 
Ilítia, tu que graciosa levas a um bom fim
os partos na altura própria, protege as mães,
 quer queiras ser chamada de Lucina,
 quer de Geradora.
 
(...)
 
Que a Terra, fértil em cereais e em gado,
Ceres presenteie com uma coroa de espigas;
e que as salubres águas e as brisas de Júpiter
 alimentem os seus frutos.
 
(...)
 
Já a Lealdade, a Paz, a Honra, o antigo Pudor,
e a desprezada Virtude ousam voltar,
e a bem-aventurada Abundância surge
com seu corno cheio.
 
e os quatro últimos:
 
(...)
 
O áugure Febo, enfeitado com o seu fulgente arco,
amado pelas nove Camenas,
ele que com a sua arte medicinal
alivia os membros cansados do corpo,
 
se ele de fato benigno olha pelos altares
do Palatino, então o poder romano há de prolongar
e a prosperidade do Lácio por mais um ciclo,
e por épocas sempre melhores.
 
Diana, aquela que habita o Aventino e o Álgido,
atende as preces dos Quinze Homens,
e ouve com amizade e atenção
os votos dos rapazes.
 
Regresso à casa com esta boa e firme esperança,
que são estes os sentimentos de Júpiter e dos deuses todos,
eu, cantando num coro a quem foi ensinado
os louvores de Febo e de Diana.
 
Horácio deixa escapar o ordo do poema numa juntura elementar. Por isso que todas as séries e tópicos frasais têm o mesmo valor. Esse valor é dinâmico, porém. A significação dos semas é, em última instância, retraduzida em outros lugares (o poeta amava a palavra ‘lugar’, o locus latino). Bandas como Lealdade, Paz, Honra e Pudor são contíguas aos cantos e louvores, assim como, posteriormente, os quadradinhos bizantinos formavam autonomias, mas, em suma, eram macetes para o todo orgânico da paisagem.
 
Mas oclusiva: a orgânica poética de Horácio, para melhor explicação, não é feita por uma única interpretação. Ela incide e se reparte, t-o-d-a aberta. Revolvere = reler. Podemos, desse jeito, ler as partes do canto começando por baixo e indo para cima, ler apenas uma frase, reduzir também o sentido a algumas palavras (até mesmo próprias), como fazemos, em situações comuns, quando vemos uma pintura renascentista, seus detalhes, nossas intuições com os sinais, as partes. Isso é fazer série (planejar modulações através de instabilidades imutáveis), se revoltar.
 
O oco que sustém um poema — a varredura simbólica nos versos — não serve nem na linha da funcionalidade, embora real, nem na quimera, embora também imaginário. A hiância dessa chegada do poema ao mundo é a mesma da partida. A imanência que a letra dá é já transcendente. Somente com esse tipo teórico que se verá a influência da pintura na poesia.
 
O senso se planta, aqui, na maneira de ser do poemático. Persiste um desenho lá, amplificado pelo foro íntimo da passagem da letra. As letras horacianas são, por assim dizer, peças de construção semântica, peças de peças sociais (simulação do poder soberano de Roma).  A entronização da imagem é feita pela aproximação (perto ou longe) da figura desejada (às figurações noturnas, às figurações diurnas).
 
Sim: quando percebo o claro-escuro desses trechos, me aparece a transferência, característica de conexão — nem sempre linear, como aqui — das artes. Se a poesia de Horácio mostra caracteres transitórios de uma festividade — conjuntamente às ideações das moiras e das ilítias na ordem ctônica —, é para clamar, através de Diana e Febo, da Lua (o escuro) e do Sol (o claro), o que se falava nas entrelinhas: o eterno que a pintura traz consigo (eterno como tomada imutável, presença).
 
A poesia de Horácio é uma poesia de mosaico (não apenas no “Canto”, mas em todas as Odes). Ela programa polaridades, reunindo o que há de encarnado num programa de profundidade, mas profundidade de perspectiva (o observar, o ponto de vista do espectador, elucida o porquê da materialidade poética de Horácio ser tão “escondida”, estar subordinada a um fundo). Pensemos na máquina significante de Horácio como modelo lexical que suporte variações (binários, tríades, quadrados), suportando quaisquer monumentos por estar sempre se movendo. Eu me recordo dos Metaesquemas (1957) de Oiticica, de figuras geométricas passeando pelo papel, compostas por uma dança irrefreável.
 
Notas
 
1 Arte poética (1674), de Nicolas Boileau.
2 Ghiberti e o Laocoonte de Lessing, de Aby Warburg.
 

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