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Cate Blanchett e Rooney Mara, em Carol (2015). |
Inscrever o trabalho do diretor e
roteirista Todd Haynes (Los Angeles, 1961) ao cinema
queer parece tão
reducionista quanto fixá-lo ao cinema
de mulheres, rótulos tão absurdos
quanto seria falar de cinema heteronormativo ou de homens, embora até
recentemente tenham prevalecido. Em qualquer caso, a obra cinematográfica do
estadunidense poderia ser considerada como um cinema com abordagem de gênero,
que se integra plenamente numa narrativa e num estilo visual poderosíssimos.
Ele mesmo afirmou que, desde seus primeiros filmes, a teoria feminista marcou
seu pensamento criativo: “Tudo o que me fez questionar o que significava ser
homem — e o quanto minha sexualidade desafiaria perpetuamente esses
significados — pude encontrar nos argumentos feministas. […] me senti
identificado”. A identidade, precisamente, é um dos temas substanciais da sua
filmografia e, em particular, sim, a das mulheres.
Após o recente sucesso da
Barbie,
o nome de Haynes começou a ocupar a mídia após uma mesa redonda em que Greta
Gerwig lhe disse: “Você fez o filme original da Barbie”. Aludia à sua estreia,
Superstar:
The Karen Carpenter Story (1987), um docudrama em que recriava com aquelas
bonecas a luta da lendária vocalista e baterista contra a anorexia. Além dessa
peça de culto
underground, Haynes é um dos diretores que melhor capturou
o drama das mulheres sem fetichizá-lo. “Acho que, em parte, me sinto atraído
por personagens femininas porque elas não têm uma relação tão fácil ou óbvia
com o poder”, disse em conversa com Kate Winslet, uma das grandes atrizes que
impulsionaram fundamentalmente sua carreira, como as empreendedoras de projetos
e as produtoras executivas.
Cúmplices criativas que encarnaram
as suas mulheres invulgarmente inovadoras, especialmente numa tríade de obras
ambientadas na primeira metade do século XX, mas também no seu último filme,
ambientado na atualidade. Mulheres que destroem as convenções sociais e a
teimosa moralidade que as rege, que iniciam a sua rebelião através do
doméstico. Se em outros tempos se chamava “destruidoras de lares” as que tinham
um caso com um homem casado — colocando sobre elas o peso da culpa —, as
mulheres nos filmes de Todd Haynes personificam a ruptura em seu próprio lugar,
em suas vidas aparentemente perfeitas, no que se espera delas. São mulheres que
quebram e que, nesse processo, quebram a si mesmas.
Cathy
A obra de Haynes também é cinema
de gênero no outro sentido do termo. Muitos de seus filmes se enquadram no
melodrama, tradicionalmente associado a uma suposta
sensibilidade feminina,
e desprezado por isso. Nas mãos dele, esse gênero se torna uma questão
política, como foi o amor em uma determinada época, quando as relações eram
absolutamente intervencionadas pelo arcabouço social.
Longe do paraíso (2002) é
sua proposta mais clara nessa linha: ambientado na década de 1950 e concebido
como uma revisão expressa do cinema de Douglas Sirk, conta a história de uma
esposa exemplar que descobre o marido, um empresário de sucesso, namorando outro.
Embora tentem fazer com que o marido
doente se submeta a tratamento, o
instinto persiste: “Acho que você quer o divórcio então”, diz Cathy Whitaker
(Julianne Moore), antes que ele acabe saindo de casa e buscando refúgio com seu
amante.
Mais adiante, ela representará
também um
desvio do normal, uma resistência, num vislumbre de romance
com o seu jardineiro negro que a revela como alguém que acredita tanto nos
direitos das minorias como na arte abstrata de Miró. Na verdade, é mais uma
posição estética do que ética, ideias com as quais ela não irá muito longe,
porque não lhe é permitido mais nada como mulher do seu tempo e da sua casa. Consequentemente,
devido à sua audácia, o julgamento moral recairá com toda a sua violência sobre
Cathy.
No filme Sirk ao qual alude mais
claramente, o muito moderno à sua maneira
Tudo que o céu permite (1955),
sua protagonista é uma viúva, portanto ela não precisa romper publicamente a
barreira do casamento; embora existam outros tabus, como o de uma mulher em
luto encontrar um parceiro num homem muito mais jovem e de classe social mais
baixa.
Apesar da referência óbvia,
sublinhada pela suntuosidade sirkiana da fotografia de Ed Lachman e da música
de Elmer Bernstein, deve ficar claro que as obras de Haynes não são homenagens
nostálgicas ao melodrama clássico nem uma coleção de gravuras preciosas
acrescentadas ao carro do
retro cook. O cineasta estadunidense se
apropria desse material e subverte sutilmente a história tradicional, as formas
populares das quais se considera fã, os espaços privados ou secretos que não
poderiam surgir no cinema da época.
Mildred (e Veda)
Ao falar sobre rupturas, o olhar
de Todd Haynes para o passado representa uma quebra de temas, argumentos e
personagens mais iconoclasta do que se possa imaginar, tanto ideologicamente
quanto em sua encenação. Estreada no Festival de Cinema de Veneza, quando ainda
não eram tão comuns as séries autorais,
Alma em suplício (2011) é a
adaptação do romance homônimo de James M. Cain, de 1941, que abrange a década
anterior, a da Grande Depressão.
“Você não vai me deixar. Sou eu
quem vai te deixar”, anuncia a protagonista que dá título a esta minissérie para
o marido ainda nos primeiros compassos da narrativa. A partir dessa cena
inicial e apesar do insulto da infidelidade, Mildred (Kate Winslet) exibe o seu
caráter, a sua modernidade, a sua autonomia; também seu orgulho, característica
que será herdada, em grau máximo de exacerbação, por sua filha Veda (Evan
Rachel Wood).
O casamento, mais triste do que
libertador, será o primeiro de uma série de separações que Mildred enfrenta.
Quando finalmente se descobre liberta, sua aventura amorosa é punida pelo
destino com a morte de sua outra filha, a pequena. Mais tarde ele romperá
aquela relação tórrida e tóxica, mas o corte mais doloroso será com Veda, já
maior de idade, a quem ela (também) expulsa de casa. Ao dar-lhe o que ela
talvez não soubesse dar a si mesma, aspirações e bem-estar material, ela
romperá com sua austeridade sob os gostos caros de seu amante/ gigolô
reconquistado. A falência é outro tipo de ruptura. Mildred, que manipula tanto
quanto é manipulada, perde todos ao seu redor e, embora pareça que ela tome a
decisão de cortar relações, são os outros que não a suportam. Antes de traí-la
completamente e despedaçá-la, sua viperina filha — uma
fille fatale,
dir-se-ia — a lembra da solidão em que está metida.
A história de Mildred Pierce
já havia sido adaptada por Michael Curtiz em
Alma em suplício (1945),
que acrescentava um assassinato e dispensava o que mais interessou a Haynes
naquele obscuro drama psicológico que era o romance original: os tabus e a
hipocrisia moral próprios da época, a dinâmica de poder em casais
heterossexuais, o retrato de personagens femininos multifacetados e
complexos
num mundo que não estava preparado para testemunhar os seus impulsos
desencadeados.
Carol e Therese
Todd Haynes retornaria à década de
1950 — e ao
queer — em sua obra recente mais aclamada, que volta a ser
intitulada com o nome de sua protagonista,
Carol (2015). Ou a coprotagonista,
como veremos.
Carol Aird (Cate Blanchett) é uma
mulher madura, requintada e autoconfiante, cujos olhos encontram os de Therese
Belivet (Rooney Mara), uma jovem vendedora de uma loja de departamentos,
justamente quando esta está olhando para ela. Carol é lésbica, embora essa
palavra não fosse usada na época, e está em processo de divórcio do marido.
Therese é apaixonada por fotografia, embora não saiba se tem talento e hesita
em se comprometer com o namorado. A priori, a separação de Carol impulsiona a
história, e a punição para sua audácia neste caso é a “cláusula de moralidade”
que seu marido usa para tirar seu direito à guarda compartilhada.
Para preservar o seu instinto
maternal, ela é forçada a reprimir o seu instinto sexual; mas, como em
Tudo
que o céu permite, a forçada terapia para corrigir sua orientação falhará. E
é quando decide romper com tudo, fugir, porque não lhe resta mais nada do que
chamam de lugar numa época como o Natal, tão convidativa a acender a lareira. É
outro fogo o que está ganhando forma: Therese aceita o convite para
acompanhá-la em sua fuga e estabelece as bases para sua própria separação.
Baseado em um romance de 1952 que
Patricia Highsmith publicou sob pseudônimo porque nenhuma editora aceitaria um
assunto tão polêmico,
Carol apresenta mais uma vez nos filmes de Haynes
dois personagens que se apaixonam apesar das diferenças de classe e idade, e
que enfrentam o que é socialmente aceitável.
O roteiro da dramaturga Phyllis
Nagy, amiga da célebre escritora de suspense, também sabe adaptar o texto
original e foca em como a personagem de Therese se reafirma à medida que avança
em seu processo de encantamento e maturidade. Isto culmina na tentativa de
rompimento que sofre, inesperadamente e por carta: “Acredite, eu faria qualquer
coisa para te ver feliz. É por isso que faço a única coisa que posso. Liberto
você”, escreve Carol. Mas antes disso, Therese já rompeu com sua própria forma
de olhar, revelada na sua vocação de fotógrafa que desloca o seu
objeto
de interesse para as pessoas, mesmo que isso signifique romper a intimidade. De
certa forma, vemos Carol através dos olhos de Therese.
Falávamos do amor como material
político inflamável no cinema de Haynes, mas neste filme, como em toda a sua
obra, também temos que falar do desejo. O desejo que pode acarretar fascínio,
sedução, como em
Carol, e também o seu reverso.
Gracie e Elizabeth
Segredos de um escândalo
(2023), coloca mais uma vez duas mulheres frente a frente, mas com outras
emoções em jogo. De um lado, temos Gracie Atherton-Yoo (Julianne Moore,
novamente), uma mulher de meia-idade que aos trinta e seis anos engravidou de
um menino de treze, Joe, com quem acabaria se casando depois de passar pela
prisão. Do outro lado, temos Elizabeth Berry (Natalie Portman), a famosa atriz
que interpretará Gracie em um filme sobre sua truculenta história, que já foi
assunto para a mídia sensacionalista. Elizabeth e Joe agora têm a idade de
Gracie quando estourou o
escândalo.
No momento em que a estrela da
televisão chega ao convívio com a Gracie casada para preparar sua personagem,
com sua aura de profissionalismo e respeito, tudo são sorrisos e gestos de
transparência; mas, à medida que a sua investigação sobre a intimidade se
transforma em intimidação, numa obsessão doentia, a estabilidade familiar
começa a ruir: os habituais ataques de ansiedade de Gracie pioram porque ela
nunca aceitou seus próprios atos, enquanto Joe fantasia sobre a infidelidade
porque nunca experimentou nada parecido na juventude. Elizabeth aproveita e o
seduz, mais como forma de entrar no personagem do que qualquer outra coisa,
plantando a semente de uma possível ruptura futura.
Os estilhaços do doméstico também
aparecem, como vemos, em
Segredos de um escândalo. As casas, espaços do
privado e do secreto, têm sempre uma presença significativa nos filmes de
Haynes. Cenários do que é reprimido e do que é expresso em voz baixa, ou do que
é gritado para alguém com quem se convive há muito tempo. Salas onde as frustrações
diárias são assumidas como parte de uma rotina que não é questionada; e é
melhor não questionar. Essa prisão da vida cotidiana historicamente reservada
às mulheres, que as adoeceu, tornou-as vulneráveis
e tamb
ém as fez tra
çar um plano de fuga, inventar formas de quebrar os muros. Sobre
esta quest
ão em sua obra mais recente, ambientada numa
colorida
área residencial, Haynes afirma:
“É simplesmente um ambiente mais concentrado que transform
amos num s
ímbolo da repress
ão. Por um lado, o desejo desperta em lugares onde as coisas n
ão parecem gratuitas. Mas n
ão devemos
perder de vista as restri
ções. Tudo está a
í.”
Tudo está dentro dessa jaula, e
tudo acaba vindo à tona neste filme metafílmico, perturbador e ácido que,
vagamente inspirado em uma história real, rendeu uma indicação à roteirista
estreante Samy Burch ao Oscar de 2024. Aliás, o enigmático título original,
May
December, alude a uma forma metafórica de se referir em inglês aos amantes
com grande diferença de idade: maio representa a juventude da primavera e
dezembro, o inverno da velhice. Mais uma vez, o tabu social e as relações
moralmente sancionadas são centrais no filme de Haynes; a par de uma nova
reflexão sobre a identidade, evidente no fingimento que ambas as protagonistas
partilham — a
real e a
atriz —, a máscara que usam e que, com
dificuldade, esconde as respetivas angústias. À medida que esse disfarce cai, a
tensão entre as duas mulheres ameaça romper a tela.
Versões de uma mulher
Segredos de um escândalo
apenas confirma o que vimos em trabalhos anteriores: seu interesse por
personagens femininas complexas e tridimensionais. Com elas, pode vir todo o
pack,
como demonstram os traços amorais, controladores, depressivos,
passivo-agressivos, tortuosos ou traumatizados, entre outros, das duelistas neste
filme.
À primeira vista, poderíamos
acreditar que sua filmografia passou daquelas donas de casa resplandecentes,
ousadas e sufocadas, que tentavam ser insubordinadas, para essas mulheres “ferozes
e covardes”, como as adjetivou o próprio cineasta. Mas Cathy, Mildred ou Carol
também tinham algo disso; assim como Gracie e Elizabeth elas também são
ousadas, à sua maneira, e às vezes ficam sem forças. Talvez neste momento,
quando se tornou claro para nós que as mulheres não são apenas tímidas ou
pudicas, que podem ter o seu lado sombrio e frívolo — ou jocoso e divertido,
dependendo de como o vemos — sem serem puramente as malévolas, tampouco as mulheres
exemplares, recorrentes no cinema.
Afinal, como já vimos, uma das
questões onipresentes nos filmes de Haynes (também naqueles que não mencionamos
aqui) é a da Moral Sacrossanta. É por isso que o seu retrato de mulheres
desejantes num amplo espectro é tão crucial e tão poderoso, incluindo mulheres
que desejam o mal, que, como aponta Clara Serra, é um dos piores fantasmas da
sociedade patriarcal: “Os homens podem ter desejos sombrios, os nossos deve ser
sempre luminosos”, escreve a filósofa madrilenha. As mulheres representadas por
Haynes podem pensar e agir de forma sinistra, podem tornar-se destrutivas,
especialmente quanto mais perto estão do colapso. Não são vítimas nem mártires,
são mulheres que cometem erros.
A chave talvez acabe dando uma
previsão dos seus próximos projetos, a minissérie
Trust, baseada no
romance com o qual Hernán Díaz ganhou o Pulitzer em 2023 (
Confiança, na
tradução brasileira). Sua protagonista será — novamente — Kate Winslet, que,
segundo o autor argentino, quis adaptar seu livro para “o retrato quase cubista
de uma mesma personagem”; a mesma mulher (chamada, aliás, de Mildred), cujas
diferentes versões serão interpretadas pela atriz britânica de 48 anos. Talvez
esse seja o único segredo da perspectiva feminista de Haynes: mostrar que
existem tantas versões de uma mulher quantas queiram mostrar, tantas
identidades quantas estivermos dispostas a ver.
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