Por Caio Meirelles
Aguiar
Descrever o entorno na
esperança de capturar, o objeto.
Um manual de montagem
para enxergar, a máquina.
Uma lista de compras
para saborear, o almoço.
Uma receita médica
para diagnosticar, a dor.
Um mapa topográfico
para delimitar, a alvorada.
Um anfiteatro para
iluminar, o vazio.
A cena imaginada, porém
presente, por cercamento.
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Luigi Ghirri, Salisburgo (1977) fotografia analógica |
Bons filmes, aqueles
que de fato voltam à nossa memória e onde sempre há espaço para retorno,
geralmente o são por possibilitar um contínuo desmembramento de camadas,
significados e novas interpretações. Muito além de contar uma boa história ou
nos impactar com fotografia e efeitos visuais impressionantes, acredito que os
filmes que guardamos profundamente na memória são também aqueles que friccionam
o tecido da vida; relações, comunicação, empatia, afeto e — principalmente — a
dificuldade de se obter ou transmitir tudo isso.
Anatomia de uma queda (2023), escrito e dirigido pela francesa
Justine Triet, entrega não apenas roteiro e atuações de alta qualidade, mas amplas
possibilidades de leituras. Por um lado, salta aos olhos o nítido conflito de
expectativas entre um homem e uma mulher. Casados e com um filho deficiente
visual, ambos compartilham da escrita como atividade profissional, porém
encontram-se em diferentes níveis de reconhecimento e satisfação. É a partir daí
que o tempo de dedicação à casa, ao filho e as frustrações com a profissão
levam o casal ao conflito que move a trama. Por outro lado, a morte do marido
somada às investigações e disputa de narrativas que se impõe sobre a
protagonista abrem espaço para a leitura que mais importa a este texto, em que
o objetivo é trazer à tona as potencialidades existentes entre as ideias de relato,
perspectiva e ambiguidade na reconstituição de
verdades.
A premissa do roteiro é
clara: uma morte sem testemunhas levanta dúvidas sobre a sua causa. Teria o
homem cometido suicídio ou sido assassinado pela própria esposa? Ao longo do
filme, acompanhamos defesa e acusação apresentarem seus argumentos e supostas
evidências de maneira a deixar o júri (o público) em constante indecisão, nunca
certo do que de fato ocorreu. No entanto, o que poderia ser apenas mais um
filme de tribunal, gênero quase sempre guiado pelo embate entre duas versões de
uma mesma história, revela-se ser muito mais do que isso.
Assim, proponho ler Anatomia de uma queda como um exercício acerca da
instabilidade de qualquer reconstituição, a frustrante tentativa de descrever
o entorno na esperança de capturar um objeto inacessível. Para que essa
leitura se concretize, da mesma forma que advogados trabalham em corte, busco
aqui aproximar dois argumentos na esperança de que, ao final, uma tese clara se
faça visível. Se o filme de Justine Triet é o primeiro, Leonardo Fróes, poeta e
tradutor carioca, nos oferece o segundo.
Em “A lenda do lago”,
poema em prosa publicado em 2005 no livro Chinês com sono, Fróes
descreve uma série de elementos que deveriam comprovar a existência de um certo
volume de água no topo de uma montanha. O autor menciona tanto provas físicas
quanto relatos de testemunhas sem nunca conseguir, no entanto, obter o que
seria a evidência final.
“Existe o lago, ou
seja, sua forma íntima, sua doce concavidade de cratera vazia, no topo de uma
montanha; mas não existe nem se vê água dentro, não se completando portanto,
nessa forma, a ideia de existir um lago no topo. Ao mesmo tempo o que chamamos
de lago — a coisa cheia, o espelho eventualmente sereno mas de fundo insondável
— não mostra, ou não mostra com a mesma pertinência, a forma que jaz por baixo;
a suave elasticidade com que a terra se contraiu e abriu em depressão,
enrugando as bordas. Dir-se-ia talvez um lago seco? Se o foi há séculos, não há
vestígios disponíveis. A grama cobre, de alto a baixo, todo o leito hipotético:
ou melhor: sobram clarões. Há veios minerais de permeio, há cores de terra
coagulada em rasgões na cobertura uniforme. Seja o que for que tenha sido — lago,
cratera, obra — dir-se-ia talvez que é a forma pura. Vê-se sua envolvente
intimidade; a serena ondulação do vazio que vai ao fundo e se alteia. Sente-se
a rugosidade das bordas. E falta água. Falta fogo dentro. Faltam substância e
conceito. Dizem porém os anciões que existe um lago no topo.”
“A lenda do lago” se
mantém lenda, não fato, exatamente por ser uma ideia constituída apenas de versões;
uma soma de evidências orais e físicas, histórias contadas tanto por pessoas
quanto pelo próprio solo. Poderia esta imagem proposta pelo poema de Fróes, um “leito
hipotético” cercado de indícios que não substituem o objeto em si, se
assemelhar conceitualmente ao suposto ato criminoso atribuído à protagonista de
Anatomia de uma queda? Da mesma maneira que o poeta busca chegar ao
objeto através da soma e investigação de “evidências”, observamos como o
promotor da acusação, na ausência de provas irrefutáveis que poderiam comprovar
o crime, busca cercar o “gesto hipotético” do assassinato utilizando-se de uma
série de relatos, versões e interpretações que supostamente delimitam — ou,
reconstituem — o contexto no qual teria se dado o crime.
Em ensaio publicado em
2017 no número 26 da revista Serrote, Leonardo Fróes compartilha alguns pensamentos
que nos ajudam a especular algumas das inquietações por trás do poema.
Comentando um histórico que abarca desde a Roma antiga até a cidade de São
Francisco na década de 1960, o poeta carioca tece elogios a uma certa tradição
de escritores em fuga; autores que em determinado ponto de suas carreiras
decidem abandonar as grandes cidades em busca de uma vida mais simples e
significativa no campo.
“Retirar-se da cidade é,
para toda uma linhagem de poetas, mais do que afrontar os excessos de civilização:
o que nasce no campo é um outro ‘eu’, integrado e até diluído em seu entorno.”
Fróes vai além e,
citando trechos de um texto do norte-americano Gary Snyder (1930) — uma de suas
grandes influências — traça paralelos entre a fuga das metrópoles como gesto de
negação à modos de viver pré-estabelecidos e a própria vocação da poesia como instrumento
para subverter normas linguísticas.
“Em 1994, um dos mais
conhecidos desses retirantes modernos, Gary Snyder, escreve em seu livro de
ensaios A Place in Space (1995): ‘Agora, no final do século 20, as
sociedades, em sua maioria, nem de modo mediano estão funcionando. O que então
faz a poesia? Há pelo menos um século e meio, os escritores socialmente
engajados têm assumido que seu papel deve ser de resistência e subversão. A
poesia é capaz de revelar o mau uso da língua por detentores do poder, é capaz
de atacar arquétipos perigosos empregados para oprimir e é capaz de expor a
fragilidade de falsas e surradas mitologias’.”
Resistir a padrões, duvidar
de arquétipos, contestar mitologias. O trecho final dessa citação de Snyder
parece indicar pistas para algumas das inquietações que tensionam o embate
entre mato e cidade, espaço natural e construído, que permeiam parte da produção
de Leonardo Fróes. Comentando sobre sua própria decisão de se mudar para um sítio
isolado no interior do estado do Rio de Janeiro durante a década de 1970, o
autor conclui: “creio achar mais sentido em resumir-me a um ‘detalhe da
paisagem’ do que em viver amedrontado numa’“floresta de nervos’ onde eu talvez me perdesse,
torturando-me com fabulações egocêntricas.”
Retornando à “A lenda
do lago”, é possível perceber como o autor utiliza-se de uma linguagem analítica,
técnica, quase burocrática, para tentar descrever e comprovar a existência ou não
de uma suposta formação natural. O contraste entre este olhar tecnicista,
baseado em evidências, e a efemeridade do ambiente natural não apenas evidencia
o emprego de uma estratégia desviante, onde a característica formal de certo
discurso é utilizada para enfatizar sua própria falência mas, também, traz à tona
uma antiga obsessão inerente à complexa condição humana: como capturar,
padronizar e comunicar fenômenos ambíguos que fogem das estruturas
institucionais criadas para controlar tanto o espaço quanto pessoas, fenômenos
e comportamentos.
No entanto, a
padronização em si já é uma ideia instável em sua concepção. Argumentos
presentes no excelente Salto no escuro, livro publicado pelo fotógrafo
Tuca Vieira em 2021, mostram como qualquer tentativa de sistematização e
classificação poderia estar isenta das escolhas pessoais realizadas pelo agente
produtor. Com uma diversidade de referências literárias, cinematográficas e
urbanísticas, Tuca investiga no livro as atuais configurações espaciais das
cidades sob a ótica da fotografia e da cartografia.
“Além de limitado por
sua própria natureza, o mapa é também autoral. Por mais que pareça um objeto
dotado de rigorosa objetividade, todo mapa foi feito por alguém, a mando de
alguém, e o resultado vai refletir tanto as motivações e habilidades desse
autor quanto as necessidades de quem o financiou. Ao desenhar o mapa, o autor,
de certa forma, desenha tanto a si próprio quanto sua época. Basta percebermos
que dois mapas do mesmo lugar, desenhados no mesmo momento histórico, mas por
autores distintos, serão bem diferentes um do outro. Assim, mapas muitas vezes
são mais o resultado de uma experiência espaço-temporal do que exatamente a
representação de uma localidade.”
O trecho acima revela
a ambiguidade inerente à construção de qualquer mapa. Se são construções
baseadas em experiências e escolhas pessoais, como poderiam afirmar uma suposta
verdade objetiva?
Desde o lançamento de
seu filme, Justine Triet tem mencionado em entrevistas promocionais como a “ambiguidade
da verdade” é uma das principais preocupações que estruturam Anatomia de uma
queda. Isto posto, o que poderia nos dizer o fato da diretora ter
selecionado um tribunal como cenário de desenvolvimento da trama? Uma das
principais contrapartidas do sistema de leis constitucionais — originado nas
revoluções francesas e norte-americana do século XVIII — é a de que, em consonância
com a organização e limitação do Estado, a previsão de direitos individuais
acarreta também em um restrito sistema de categorização e controle
comportamental dos cidadãos, premissa fundamental para que as leis possam ser
aplicadas igualmente a todos. Dessa maneira, os tribunais modernos se tornam o
palco onde — através de um sistema de códigos, ações e consequências pré-estabelecidas
— personagens e situações são escrutinados à exaustão para que júri e juiz
possam chegar ao veredito que aponta a suposta “verdade” por trás de cada caso.
Tuca Vieira,
novamente:
“Ao mesmo tempo em que
são autorais, a existência de mapas como instrumentos de comunicação só é possível
graças ao uso de um ‘código’ comum. Informações diferentes, procedentes de
instrumentos separados, podem unificar-se em uma só visão, porque suas ‘inscrições’
possuem todas a mesma ‘coerência ótica’, para usarmos a mesma nomenclatura do
filósofo francês Bruno Latour. Em outras palavras, o mapa é uma linguagem e,
para ser compreendido, precisa fazer uso de um mesmo ‘idioma visual’ entendido
pelo autor e pelo receptor.”
Sob essa perspectiva,
podemos inclusive entender melhor o porquê do título Anatomia de uma queda.
Como um médico que, munido de um repertório clínico estabelecido, investiga as
causas da falência de um corpo antes vivo, observamos enquanto o relacionamento
(e os momentos finais) dos protagonistas do filme são analisados e
interpretados em detalhe em busca de uma categorização comum a todos. Ainda
assim, torna-se escancarado o quão dependente de relatos, perspectivas e
leituras pessoais é essa análise. Uma das potências do roteiro está exatamente
na dificuldade de categorizar e encaixar o comportamento do casal de modo que
seja possível chegar a conclusões claras e “verdadeiras” sobre como se deu a
morte em questão. Tal qual o lago de Leonardo Fróes, nem sempre estruturas e
normas institucionais são capazes de capturar a ambiguidade e efemeridade da
vida.
Este não é um texto de
análise jurídica, de modo que o objetivo aqui não é analisar a construção de
uma acusação ou as informações precisas embutidas em cada argumento apresentado
por ambos os lados. Anatomia de uma queda é cinema e, como obra de arte,
pode ser interpretado como exercício de construção metafórica que pretende
esgarçar questões que vão muito além do roteiro em si. Até que ponto podem
fragmentos representar um todo? De que modo a soma de relatos pode
verdadeiramente reconstituir um evento passado? É possível costurar indícios
sem influenciá-los com nossas próprias intenções? Poderia o relato oral de uma
testemunha representar fielmente a maneira com que se deu o fato?
É interessante, e
fundamental, perceber como os relatos são particulares à experiência de cada
personagem e trazem mensagens filtradas por seu envolvimento e ponto de vista.
Além disso, eles apresentam também diferentes referências sensoriais e metodológicas.
Se o filho, deficiente visual, fala das coisas que ouviu e sentiu com as mãos,
o psiquiatra do marido morto fala em terceira pessoa sobre a saúde mental de
seu paciente. Por outro lado, o investigador de polícia se baseia em evidências
concretas encontradas no local, enquanto outros especialistas forenses
apresentam maquetes físicas e virtuais que coreografam o balé da morte necessário
para cada versão desta história. No entanto, sozinhos, nenhum destes relatos dá
conta do total necessário para compreender a situação. Se olharmos para cada um
destes fragmentos como evidências em diversas mídias distintas: áudios, simulações
em imagem, relatos pessoais etc., cabe ao júri absorver cada um para
traduzi-los e, em suas próprias cabeças, construir a melhor soma totalizante
possível.
Seja a história que
contamos aos amigos sobre nossas férias, a curva de nível que analisa
determinada topografia ou o depoimento dado sob investigação criminal, nenhum
relato está isento de nossas próprias intenções ou experiências. Narrar é sempre
recriar uma história refletindo nosso próprio interior. Se o lago de Leonardo
Fróes está cercado de elementos que deveriam comprovar sua existência — com
exceção de sua substância essencial, água – promotores de justiça e cartógrafos
também vivem da constante busca por descrever o entorno na esperança de
capturar — o objeto.
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Leia sobre o filme Anatomia de uma queda
Caio Meirelles
Aguiar é arquiteto e museólogo.
Desenvolve projetos que visam construir narrativas e ações para extroversão de
acervos artísticos e documentais. Além disso, organiza cursos e escreve sobre
arte contemporânea.
P.S. Este texto foi
elaborado ao som do álbum
Titanic Rising (2019), de Weyes Blood.
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