Seis poemas de Robert Walser

Por Pedro Belo Clara

Robert Walser. Foto: Carl Seelig


 
O LONGE
 
Eu queria estar parado,
mas o longe chamava;
passei por árvores escuras,
sob as árvores escuras
quis parar um instante,
mas o longe chamava;
passei por prados verdes
e nesses prados verdes
eu queria parar,
mas o longe chamava;
passei por casas pobres,
e junto de uma delas
eu queria parar,
contemplando a pobreza;
e enquanto o fumo, calmo,
sobe ao céu, o que eu queria
era ficar parado, longamente.
Ia dizendo isto e ria,
e o verde dos prados ria comigo,
e o fumo ia subindo, sorridente,
mas o longe chamava.
 
 
FORA DO MUNDO
 
Faço o meu caminho a sós,
leva-me longe, bem fundo;
depois, sem um som, sem voz,
estou só e fora do mundo.
 
 
FILOSOFIA A MAIS
 
Sempre a subir e a descer,
levo uma vida assombrada.
Chamo por mim sem parar
e fujo dessa chamada.
 
Vejo-me em poses de riso,
depois em tristeza funda,
como um orador sem siso;
e tudo isso se afunda.
 
Em minha vida, quero crer,
nunca nada fez sentido.
Eu nasci para me perder
num horizonte esquecido.
 
 
O QUARTO MOBILADO
 
Quanto mais tralha tiver,
mais pequeno ele há-de ser.
Será uma selva, um sudário
de quadros, mobiliário.
Sofá, cama, cadeira, armário, a variedade
estraga toda a sua simplicidade.
Um quarto cheio de coisas a mais
dá vontade de rir, como sabeis.
Jarrinhas, estatuetas, búzios ocos,
parece que cochicham uns com os outros.
Toalhas, franjas e tanta almofada
parecem dizer que não têm nada
a ver com uma ideia de presente.
Velharias de imitação, qualquer um sente
que elas nos entram pelos dias; a sala fica
mais ampla, clara, sensata, rica,
quando não acumulamos hora a hora
sobre o seu rosto de outrora,
outras camadas de ornatos preciosos
ainda mais opíparos, sumptuosos.
É o quarto que ao próprio quarto oferece
qualidade bastante, o brilho que merece.
E muita gente acaba por perder
com o isco da fama muita arte e saber.
Seríamos bem melhores, por certo,
se não quiséssemos ter sempre por perto
tanta cangalhada,
para nada.
Esse zelo de ter e de manter
traz-nos rugas e faz-nos ver
o nosso esfriar e envelhecer.
O quarto não existe para ficar
tal como sempre foi, sem se alterar.
 
 
POR QUE NÃO HAVEMOS DE TER CALMA?
 
Por que correm eles tanto,
e não cultivam o espanto?
Como é possível andar
sempre aos saltos, sem parar,
em vez de as coisas fazer
com tempo, e mesmo a sorrir,
com uma canção a ecoar?
Para quê tanta iniciativa,
com prendinhas apressadas,
forçadas, bem comportadas,
em corrida cansativa?
Por aí não vão chegar
a alguém influenciar,
nem só com aplicação
se causa boa impressão.
 
 
A NEVE
 
P’ra cima ela não cai, não,
a neve do alto vem,
desce, estende-se pelo chão,
nunca subiu para o além.
 
Tudo nela tem um sentido,
o do silêncio sem fim:
seu ser desconhece o ruído.
Ah, pudesse eu ser assim!
 
Está aí, só conhece e espera,
é a sua mais sensível
qualidade: e persevera
em seu cair invisível.
 
Nunca regressa ao lugar
de onde caiu; pára e diz:
aspiro a nada aspirar,
no silêncio sou feliz.
 
______
 
Nasceu em Biel, na Suíça, em 1878, aquele que seria um dos escritores mais misteriosos do seu tempo. 
 
Antes de adquirir a aura algo mística que vários conhecedores da figura e seu trabalho lhe atribuem, Walser cresceu na companhia de diversos irmãos. Dada a região onde nasceu, falava sem qualquer equívoco tanto o alemão como o francês. Frequentou a escola até os pais não mais conseguirem suportar os custos da educação. Por esta altura, Robert já se revelava um entusiasta do teatro, ponderando perseguir tal carreira.
 
Com quatorze anos toma a via de aprendiz num banco local. Pouco depois, muda-se para a cidade de Basileia e a sua mãe, registando um historial de perturbações mentais, falece. Trabalhando essencialmente como empregado de escritório, inicia um percurso algo errático. Crendo falhada a sua carreira de actor, Robert tem fé que se tornará um poeta de eleição. Muda-se para Estugarda, na Alemanha, para viver com o seu irmão Karl. De seguida, regressa à Suíça, ficando a viver em Zurique. Todas estas experiências acabaram por dar fruto, tornando Walser o primeiro autor suíço a escrever sobre a vida dos assalariados.
 
Em 1898 o seu trabalho, ainda disperso, capta a atenção dum influente crítico. Os primeiros poemas são assim publicados no jornal Der Bund. Graças a essa oportunidade, abrem-se a Walser portas para patamares superiores: no caso, a revista literária alemã Die Insel, na época um palco onde diversos nomes sonantes da Art Nouveau divulgavam os seus trabalhos. Vários poemas e contos de Walser, as futuramente famosas narrativas breves, foram aí publicados.
 
A edição do primeiro livro não estaria longe: Ensaios de Fritz Kocher é lançado em 1904. No ano seguinte, muda-se para Berlim. A partir daqui, inicia-se um tempo feliz e bem-sucedido, período onde poderemos descobrir o lançamento dos seus três primeiros romances: Os Irmãos Tanner (1907), O Assistente (1908) e Jakob von Gunten (1909). Estes dois últimos, nascidos de experiências laborais vividas pelo autor, como assistente dum engenheiro e inventor suíço e como mordomo numa casa nobre, seriam, décadas depois, transpostos para a grande tela do cinema. Neste último ano, sai igualmente a primeira selecção do seu Poemas.
 
O sucesso inicial não seria duradouro. De certo modo, o entusiasmo vivido pelo público começará a esfriar, não obstante o seu trabalho continuar a merecer elogios de autores conceituados, como Robert Musil, Hermann Hesse ou o próprio Kafka. Continuando colaborações com algumas revistas suíças e alemãs, Walser sente que falhou nos seus intentos, regressando à Suíça em 1913. Estabelece-se num sótão arrendado e vivencia largos períodos de imensa pobreza. A criação literária não cessa, porém — diversos textos escritos numa prosa breve surgem nesta ocasião. No ano seguinte, o seu pai falece.
 
Continuando a inconstância residencial, persevera na publicação de novas obras. Os contos e os textos em prosa breve começam a solidificar-se como uma imagem de marca, um tipo de expressão que, com o avançar dos anos, tornar-se-ia ainda mais condensada. Em plena Grande Guerra, as dificuldades de subsistência aumentam e Walser experimenta uma vida ainda mais solitária. Um dos seus irmãos morre de doença mental e anos depois um outro comete suicídio. Nos entretantos, em 1917, surge A Caminhada, considerada a obra mais importante deste atribulado período.
 
A década de 20 irá trazer a tal mudança no seu estilo de escrita, atrás referida, tornando-se também cada vez mais abstrata. Para a exercer, opta pelo uso do lápis, capaz, como dizia, de tornar tudo “mais sonhador”, livre da ditadura do definitivo, algo que a tinta tão impiamente impõe. Vive agora em Berna e rabisca (perdoe o termo talvez menos abonatório, mas garantimos nada ter de pejorativo) poemas, novelas e outros textos breves. Desta época encontram-se diversos manuscritos totalmente cheios, numa letra mínima, de quase impossível leitura. Mas, à parte da obra A Rosa, de 1925, não voltará a editar um livro — embora mantendo breves colaborações em jornais.
 
No final da década, a sua saúde deteriora-se visivelmente. Sofrendo de ansiedade e alucinações, dá entrada numa instituição de saúde mental, onde lhe diagnosticam uma esquizofrenia catatónica. A escrita não o abandona, continuando o seu exercício de letra quase ilegível; e Walser começa por registar melhorias consideráveis. Porém, em 1933 dá-se um novo internamento, desta vez forçado. Sentindo-se contrariado, cessa enfim o ofício da escrita, passando os vinte e três anos seguintes num quase completo anonimato.   
 
Apesar das dificuldades iniciais, Walser recusar-se-á várias vezes a abandonar o asilo onde vivia, mesmo que da sua patologia psiquiátrica lograsse obter uma folga prolongada. Um admirador do seu trabalho, Carl Seelig, também escritor (curiosamente, viria a ser o primeiro biógrafo de Albert Einstein), visita-o amiúde. Nasce assim uma amizade duradora que resultará num livro e na republicação de várias obras de Walser, na tentativa de reacender o interesse na sua obra. Consegue, inclusive, a primeira tradução para língua inglesa. Depois da morte dos irmãos, Carl torna-se uma espécie de tutor de Walser, o seu representante legal.
 
Um amante de caminhadas solitárias, como em alguns dos seus poemas poderemos atestar, Robert Walser viria a falecer durante um desses passeios, muito provavelmente de ataque cardíaco. Era o dia de Natal de 1956, e o seu corpo foi encontrado sobre a neve, a poucos metros do asilo onde vivia.
 
Escritor modernista, apesar de em consciência não pertencer ou desejar aderir a qualquer movimento, produziu da melhor literatura possível de encontrar dentro do género, especialmente no que à língua germânica diz respeito. Um alemão com “toque” suíço, simples e original, exprimindo uma visão muito pessoal de tudo e de todos. Por vezes, uma escrita que nasce como jogo ou brincadeira, se considerarmos os seus célebres “textos sobre textos”, misturando fina literatura com outra, digamos, de cordel.
 
Um dos temas mais centrais da sua obra é sem dúvida a questão do lar, ou a incessante procura de casa, um lugar de pertença. Bem comprovada, aliás, pelo seu imenso registo de moradas físicas, colectadas ao longo da existência. Encontrará o idílio que buscava, e sempre longe da sociedade, num meio frugal e recluso, entre árvores e ribeiros, mas… será a paz perene? Uma farsa, somente, já que, não importando o lugar onde estamos, os problemas de sempre encontram invariavelmente um meio de voltar até nós. Isolamo-nos do mundo, mas não fugimos de nós mesmos. Amargamente, Walser descobriria o significado de tal máxima.  
 
A busca pela simplicidade da vida, de ser e estar, reflecte-se também na sua obra, procurando uma escrita despojada e apenas em aparência concreta, dado que com o tempo tenderá a revelar-se abstrata, como já discutimos. Nessa procura, talvez seja legítimo perguntarmo-nos se o autor não se buscaria igualmente a si, mesmo que em várias ocasiões parecesse querer escapar a ele próprio. A sua poesia nem sempre transmite esse lado mais existencial, mas oferece-nos certos insights nascidos de momentos de pura contemplação, facilitando um contacto com uma realidade mais pura e limpa, onde parecia capaz de remover a cortina ilusória que reveste o mundo das aparências. É o aspecto da sua obra que mais toca os limites dum certo misticismo, digamos assim, duma virtude de teor quase ascético.  
 
A sua escrita, sabendo ser irónica na ocasião propícia, aparenta espontaneidade, mas é mais complexa que isso. Com a devida atenção apercebemo-nos como o verso é apurado. O impulso na sua juventude era, sim, um “filho do momento”, mas com o passar do tempo torna-se uma espécie de “simplicidade aprendida”, decerto esforço dum exercício de desconstrução — sempre o despojo, o regresso à origem. E não há, ainda assim, tema que escape à sua atenção: questões e comportamentos sociais, temas do quotidiano, a natureza, a literatura e, claro, a autorreflexão. Uma poética, assim, da observação, encontrando um certo eco em obras mais próximas da nossa língua, como a do “mestre” Alberto Caeiro; uma “poesia de caminhante”, ou de caminho, lembrando outro amante de caminhadas, menos famoso pela sua poesia: o norte-americano Thoreau.
 
Eis Robert Walser, um apologista da aurea mediocritas e uma das figuras mais singulares da literatura; um homem simples, não obstante os seus tormentos. Redescoberto da década de setenta, novas gerações têm encontrado no trabalho de Walser outros rumos criativos e renovadas fontes de inspiração. Já em tempos mais recentes, surgem obras como Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, ou a série O Bairro, do português Gonçalo M. Tavares, onde poderemos encontrar esta figura simpática e obscura (mas num sentido luminoso), amante do breve, do frugal, do aparentemente insignificante — um descobridor do brilho das pequenas coisas.
 
 
Notas:
* Seleção a partir da tradução de João Barrento em Robert Walser – Estou Só e Fora do Mundo (Sr. Teste Edições, 2022).
 
 
 

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