Uma citação do LP de 1968 de Caetano Veloso, a que abre o
álbum:
“Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras
brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo que
nela se planta, tudo cresce e floresce.”
E é justo o Anchieta desse texto que era um ajuste entre
formações de línguas distintas, onde tudo cresce e floresce (segundo Osman
Lins, em 1978, num de seus ensaios mais contundentes). Espanhol de nascimento,
indo defender o antigo Estado português no desespero da Contrarreforma, mas
iniciando a
nossa epopeia nas letras, José de Anchieta marca
indubitavelmente, como figura, uma chancela que somente depois, na prova do
século XX, iria subir às nossas cabeças.
A interpretação de Lins em relação ao padre é tão óbvia que
fica difícil dizer. Mas, resumidamente, era essa: existe algo de messiânico em
cada pessoa que escreve, em cada escritor, em cada tropel dos significados.
Porque a circunstância seja diferente para nós — condicionados à esfera
ultraliberal dos mares cibernéticos da pós-modernidade —, não significa que
seja absolutamente distante. A situação de aproximação que Lins outorga em “Anchieta
ou o Evangelho na taba” é a de permanência do que é essencial a quem está nas
trincheiras de frente da cultura.
Mesmo que não diretamente, ele diz: existiu, nessa taba
chamada Brasil, uma origem fascinante e determinante. A origem, sem ser
propriamente a que queríamos, foi necessária. No primeiro momento, nos
primeiros dois séculos de colonização, o turbilhão de mistura entre drama
cristão moralizante, murmúrio tupi dos nativos [e a chegada da diáspora forçada
de africanos], autenticou a expressão da prática letrada. O processo do
colonialismo da união ibérica plantou nas artes, todo retalhado porque não
existiu Idade Média para negros e índios, a questão mais que profunda de uma
virtualidade cultural, entendida como “despertar da consciência” (termo meu) em
Osman Lins.
O jesuitismo sempre esteve entre os que escrevem literatura.
O gênero do
auto não seria isso: o de perseguir um fim, uma moral, um
subterfúgio retórico para as mazelas linguísticas do diálogo? Mais ou menos
como acontece em um romance regional do século passado. Osman Lins conseguiu,
na sua breve palavra, unificar um diapasão tecnicolor: o gesto jesuíta esteve
conosco porque, justamente, em todas as situações estivemos querendo entrar em
línguas estranhas e terras bárbaras. Ser catequista não é uma simples metáfora.
Isso é
traduzir. Estamos a todo tempo fincando novas
passagens de
linguagem. Falar do
Quinhentos colonial é falar de
traduções. Apesar das convergências numa razão de Estado, subsidiadas pela
organização de pacto entre os impérios e seus serventes (Antônio Vieira e
Gregório de Matos e Guerra são uns dos exemplos), parece que Osman descobriu um
furo. Esse furo é, como falei, a
linguagem. Sujeitos do
Verbo,
que fazem e refazem o
Verbo ecoar, são os mesmos que o ajudam a ganhar
sua liberdade. O
Verbo é, acima de tudo, livre. Ele notava que, em
qualquer hora e qualquer lugar, estamos sempre Nele. Por isso tinha essa
preocupação com variações pré-românticas,
tempos nem tão perdidos.
Sim, o apontamento principal que aqui é levantado é a
predominância de certa forma gestual anchietana: todos os anchietanos sonham
com o Messias carregando a Palavra catequizando os gentios. Anchieta, um
prototropicalista, dançando com os selvagens e lendo o poema sobre a virgem
Maria [“Mas receia com a língua impura de cantar tuas glórias: inúmeras culpas
carregam-na de manchas”] em simultâneo. Osman, jornalista e professor, mas um
escritor e jesuíta!, um anchietano: falando para ouvidos estrangeiros ouvirem,
para que as pessoas donas desses ouvidos se salvem.
Acho que a virtude desse momento é acertar no seguinte
pleito: se a vocação de escrever é desvirtuada — porque, sei lá, o poeta
Vinicius de Moraes tenha se tornado o cantor Vininha —, é porque ela já nasceu
assim. Nossos escritores, nossos escritores brasileiros, estão sempre fazendo
outra coisa. E isso é mais do que ok: eles precisam falar, mesmo em tom
teatral, o que pensam, o que desejam em contextos adversos. A formação cultural
do Brasil, e Osman sugere, faz com que isso seja super normal. Tenho uma
opinião mais forte do que ele, entretanto, numa coisa: Anchieta não precisou
fazer porque queria, mas porque foi puxado. Essa é a exigência de qualquer
drama literário.
Isso me lembra a ponte que Adorno fez em relação à tradição:
ser tradicionalista (obsessivo) é diferente de amá-la [a tradição]. Portanto, o
que se esconde por debaixo dos panos do texto osmaniano é uma louvação daquilo
que ganhamos filogeneticamente nessa reprodução de culturas e culturas, mas que
não é inteiramente programado. Dessa forma, nós falamos do que seja
tradicional, mas falamos igualmente de tradição atualizada, desgarrada,
mutilada. Anchieta, jogados ao escanteio os mil asteriscos, foi além daquilo
que os outros necessitavam e do que ele próprio pedia. O mistério de escrever
reside aí. Podemos falar o mesmo ponto sobre Osman Lins e sua obra?
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