Os ossos de Lord Byron

Por Christopher Domínguez Michael
 

A Mariana Enriquez
 

Byron é uma atmosfera, um clima, um estado de espírito, mais do que um verso, ou um certo conjunto de versos.  Exclama-se: Byron! diante de uma situação, um contraste de paixões, uma saída sarcástica ou irônica, como em Werther os apaixonados, diante de um aspecto especial da natureza, exclamavam Klopstock!
Mario Praz, La casa de la vida (1958, 1979)


Você diz que seria melhor, talvez, traduzir os poemas curtos Byron: O corsário, O Giaour etc. Sem dúvida valerá a pena; mas acho que também é ruim. Você tem razão: Byron não é tão imortal quanto nos convém.
Carta de Juan Valera a Marcelino Menéndez Pelayo (1878)

 
Lord Byron, desenho de Henry Meyer, 1816


Entre as numerosas epígrafes que poderia escolher para encabeçar este ensaio sobre o bicentenário da morte de Lord Byron, creio que não há duas mais antagônicas do que a exclamação do antiquário neoclassicista Mario Praz e a objecção sincera de Juan Valera, romancista e excelente observador andaluz da literatura do seu tempo. Ou Byron (1788-1824) “é uma atmosfera, um clima, um estado de espírito”, como escreveu o italiano, ou Byron é, problematicamente, algo “que não nos convém”, pois não convinha a Don Juan nem a Don Marcelino, seu correspondente. A primeira epígrafe é contundente: Byron é o romântico diante do Todo-Poderoso, embora ele próprio tenha sido adversário dos poetas dos Lagos, que, principalmente ao longo do século XX, assumiram postumamente o cânone. E também aqueles que ensinam literatura, juntamente com os poetas devedores do romantismo inglês, assumem que William Wordsworth e Samuel Coleridge são os mestres de uma escola que não precisaram frequentar — pelo menos não regularmente — o avô William Blake, o singularíssimo John Keats ou o próprio Percy B. Shelley, mesmo que esteja separado de seu desagradável amigo George Gordon, sexto Lord Byron, que é enviado para outra seção, a dos “casos”, junto com o Marquês de Sade ou Mary Shelley, inventores de categorias amplas — o sadismo — ou criadores de mitos, como a criatura do Dr. Frankenstein, mas os estilistas considerados menores, por boas e más razões. Sade e Mary Shelley se afastam da literatura para se aprofundarem nas mitologias.
 
Byron, por outro lado, não é exatamente um mito, mas sim uma lenda. O byronianismo é distinguível em muitos dos seus imitadores, mas Byron não produziu nada além de si mesmo: ele é irrepetível porque a autoparódia, nele, era essencial. Já não é possível, se é que alguma vez foi, lê-lo sob a estrita observância de Tel Quel, isolando os textos no vazio, expulsando a presença muito colorida e intrusiva da sua avassaladora e dramática personalidade, que só poderia ser fragmentada em personagens secundários, de Childe Harold a Caim, passando por Manfred e Don Juan, uma espécie de servilismo — como aquele que acompanhava o Lord em suas viagens — que, terminada a jornada, sempre presta contas ao seu amo.
 
Se a tradução é um índice de leitura universal — e limitando-me apenas ao espanhol e ao francês — a enorme obra byroniana é pouco traduzida, com negligência, privilegiando os mais acadêmicos como O Corsário (1814), o aparentemente fáustico Manfredo (de 1817) ou a prática de organizar antologias, à vontade, reunindo seus contos ou poemas orientais. As seleções são feitas a partir de sua correspondência e diários. Por outro lado, A peregrinação de Childe Harold (cujas primeiras duas canções apareceram em 1812) não são fáceis de possuir, a menos que se obtenha The Major Works (editado em 1986 por Jerome J. McGann para Oxford) ou recorra-se às enganosas e dificilmente manejáveis obras completas quase doadas para nutrir o e-reader. Somente em 2022 apareceu uma nova tradução de Childe Harold em francês, da qual não encontrei uma edição confiável e moderna em espanhol. Quanto a O Infiel (1813), Lara (1814), as significativas Melodias hebraicas (1815), O cerco de Corinto (1816) ou Beppo (1818), é preciso cavar um pouco para lê-los. Em vez disso, e logo veremos por que, foi feita justiça editorial ao enorme Don Juan (publicado incompleto em 1819), o mais fascinante e menos explorado dos livros de Byron.
 
Para comemorar o bicentenário, não houve nenhuma nova biografia de interesse, assinada por qualquer dos ávidos e competentes biógrafos anglo-saxões, que se somasse ao enorme número de vidas já publicadas. Foi reeditada The Late Lord Byron (1961), de Doris Langley Moore, uma excepcional byromaníaca e também uma historiadora da moda, e concluiu-se, talvez com razão, que não faz sentido ir além dos três volumes absolutos de Leslie A. Marchand (Byron. A biography, 1957-1976). A relevância editorial medíocre de Byron deve-se presumivelmente à irregularidade da sua obra — da qual o poeta não só tinha consciência como também se orgulhava — e ao seu caráter de época. Depois de transformar o romantismo em satanismo — que foi o que Harold Bloom celebrou até incorrer em excessos visionários impróprios para um crítico — digamos que Byron se aposentou. Ele não está morto. Vive de pensão em algum tipo de casa de repouso, como agora são chamados os asilos para idosos. É possível visitá-lo nesse purgatório, mas com restrições, que, muito provavelmente, foram ditadas por ele. Dir-se-á que é muito. Que talvez até mereça menos. Mas para os byronianos nada é suficiente. Abaixo examino alguns livros sobre o poeta inglês, desde Byron et le kissin de la fatalité (publicado originalmente em 1929), de Charles Du Bos, La dietétique de lord Byron (1984), de Gabriel Matzneff, Byron apaixonado (2009), de Edna O'Brien, Byron’s War (2013), de Roderick Beaton, e Byron and the Poetics of Adversity (2022), de McGann. Apoio-me nos Diários e nas minhas leituras recorrentes de Don Juan. Tudo para corroborar, se em uma extremidade está a exclamação de Praz e na outra a suposta tacanhez de Valera e Menéndez Pelayo, onde hoje se encontra Lord Byron.
 
I Dieta
 
Byron não apenas nasceu com pé torto (“mistério ortopédico”, diz Matzneff) como foi submetido a tratamentos tortuosos e torturantes para corrigi-lo, mas o que o obcecava era sua propensão à obesidade (aos dezoito anos pesava cem quilos), razão pela qual se submeteu a dietas draconianas, que — como qualquer dieta — estavam prontas para serem quebradas, causando-lhe severos distúrbios gástricos. É difícil saber se ele foi bulímico. Seu horror à obesidade fez dele um grande atleta, como provou ao atravessar a nado o Estreito de Helesponto em 1810, e foi um amante do boxe, bem como das cavalgadas mais exaustivas. Esse vigor o distancia dos pálidos poetas malditos que nele se reconheceram e faz dele um poeta do gênero atlético, mais digno de Píndaro do que de Henry Murger e seus boêmios. Desde o início, o caráter esportivo de Byron surpreendeu os amantes do gosto, aqueles franceses que o poeta detestava, a ponto de evitar a França, e principalmente Paris, ao longo da vida, admirador como foi de Napoleão Bonaparte, a quem não perdoou o fato de ter evitado o suicídio após sua primeira abdicação em 1814. “Deveria seguir a nobre tradição romana”, lamentou em sua “Ode a Napoleão” de 1815; para ele não importa que seus sentimentos contrariados em relação ao imperador sirvam às delícias de seus inimigos conservadores.
 
Du Bos, que não foi um dos melhores entre os grandes críticos da Nouvelle Revue Française, dedicou um longo ensaio a Byron em 1929, no qual é evidente o desconcerto francês acerca da sua figura porque não parecia haver uma categoria satisfatória para o autor de Childe Harold. Du Bos admitiu, com Annabella Byron (a única esposa do poeta e mãe de sua única filha legítima, Augusta Ada Lovelace, um gênio da matemática nascida em 1815 que se tornaria a avó da computação), que não havia chave para abrir o coração do poeta. Só resta nos perder no labirinto de seu personagem. Concluiu o crítico de origem inglesa que nenhum dos fatos da vida de Byron possui valor em si, por mais significativos que pareçam, já que ele foi réu da fatalidade. Um herói maravilhoso da tragédia grega que fracassou na “amizade-paixão” (porque o verdadeiro amor não o conheceu), tendo sido uma “alma-eco” através da qual se expressou uma época que ressoa, como diria Praz, com “Byron!” Quis escapar à fatalidade através de decisões erráticas — como casar-se para fugir ao incesto com a sua meia-irmã Augusta Leigh — e nada correu bem, como se a sua glória fosse, sem dúvida, apenas a vaidade das vaidades repreendidas por Eclesiastes. Tudo em Byron é teatro, lemos em Byron et le besoin de la fatalité, o que não impede Du Bos de olhar para ele consternado.
 
A aventura grega que custou a vida a Byron em 19 de abril de 1824 é a conclusão lógica de uma biografia em que a poesia está, não tão curiosamente, quase completamente ausente, segundo a visão de quem fora o especialista em literatura inglesa da NRF. Elegante, e um Du Bos (1882-1939) cada vez mais católico não quis incorrer na vulgaridade de condená-lo como pecador (Robert Southey fez isso quando descreveu Byron e Shelley como satanistas), mas o joga no mundo dos pagãos onde Lord Byron, sem dúvida, sente-se muito confortável, longe do calvinismo em que foi educado e mais próximo daquele catolicismo de estilo italiano que chegou a excitá-lo desde 1816, quando o escândalo incestuoso (somado à acusação de exercer a sodomia heterossexual) o obriga a fugir da Inglaterra e viver em Pisa, Gênova, Roma e Veneza.
 
Mais interessante, de longe, é La diététique de lord Byron, onde o réprobo e repreensível Gabriel Matzneff (1936) faz de Byron um perfeito epicurista. Cristão de obediência ortodoxa, Matzneff interpreta neste sentido a escolha grega que acabaria com a vida de Byron, desenhando-o como dono de “um temperamento de direita com ideias de esquerda, um pederasta rodeado de mulheres, um discípulo de Epicuro habitando o medo do inferno cristão, um adversário do imperialismo que venerava Napoleão, um suicida amante da vida…”
 
Matzneff, um pedófilo confesso que em 1977 foi apoiado por metade da intelectualidade parisiense para descriminalizar o sexo com menores e que hoje, denunciado, está sob investigação judicial com grande parte de sua obra fora de circulação, vê na vida e na obra de Byron não apenas uma arte de amar, mas uma arte de viver que começou numa homossexualidade precoce (que os biógrafos negam) e obteve o título da mais elevada transgressão — tão aplaudida pelos franceses — com a pedofilia e o incesto. Em grande medida, Matzneff escreve uma hagiografia de Byron onde são narradas todas as virtudes do lorde, que são, seguindo Praz, algo mais do que uma atmosfera: “a vertigem do suicídio, o amor pelos corpos jovens, o a disciplina alimentar, o entusiasmo pela liberdade dos homens e das nações.”
 
É a vida de um santo epicurista cuja regra essencial, da qual se desprende sua aurora, é a alimentação, um regime rigoroso que lhe permitia chegar em muito boa forma à prática de todos os prazeres. Para ele, como para aquele herói byroniano que é Edmond Dantès de O Conde de Monte Cristo, “o mar e a morte são as duas faces de uma única libertação, de uma mesma ressurreição”. Apenas Napoleão Bonaparte está à altura de Lord Byron, conclui Matzneff. A analogia é antiga e irritava o visconde de Chateaubriand, que via no inglês um impostor que o privava da primazia romântica. Quanto ao próprio Chateaubriand e mais tarde a Léon Bloy, para Byron a ausência do imperador esvaziou o mundo do seu significado, numa operação semelhante ao reino de Deus, segundo os cristãos, depois da cruz e antes da Encarnação. O amor, conclui La diététique de lord Byron, era uma coisa pequena para Byron, “esse sibarita espartano” e de todas as suas relações apenas aquela estabelecida com Augusta, irmã suprema, vale a pena. A única, esclarece Matzneff, que entendia o “egoísmo monstruoso” de Byron — do qual se queixou sua esposa — como defeitos do próprio criador da arte, “defeitos masculinos comuns, mas hipertrofiados” porque o casamento, que vem do amor como o vinagre do vinho, atrai os dissolutos, segundo Byron em Don Juan
 
II Amor
 
Edna O’Brien (1930), romancista preferida de Bloom como biógrafa de Byron, tem outra opinião. Para ela, Byron é uma totalidade erótica, interessado no vício e na virtude, no boxe ou em se adiantar décadas ao tentar descobrir Tróia. Os soberanos orientais que o receberam, como Mahmut II, consideraram-no “uma mulher vestida de homem”, devido à sua beleza e elegância. Ao contrário de Du Bos, ela o pinta como um grande amigo de seus amigos, embora o próprio Byron tenha dito que sua admiração por Shelley era tão grande que impedia a amizade. Havia inveja.
 
Irlandesa, a autora de Byron apaixonado não esquece, com os pés no chão e com alguma amargura, que “as irregularidades de sua conduta” eram as da sua classe e credo, a aristocracia whig reunida em torno da Holland House. Sua vida erótica foi tão variada porque ele acreditava que “nossos afetos não estão em nosso poder” e que devemos vagar livremente atrás deles, mas era impossível para Byron separar-se completamente de quem havia amado: foi vampirizado, acima de tudo, pelas mulheres que o abandonavam. Não só Augusta mas a própria Lady Byron (de quem se separou judicialmente em 1816) foi sua correspondente assídua até ao fim e quem der uma corrida de olhos à enorme correspondência do poeta não hesitará em salientar que ele confiava mais na inteligência e na educação da sua ex-esposa rebelde do que na veneração de sua meia-irmã.
 
A breve biografia de O’Brien humaniza Byron. O poeta foi muito cruel com Claire Clairmont, meia-irmã de Mary Shelley e mãe de Allegra, filha ilegítima de Byron que ele tirou dela, apenas para que a menina morresse de tifo aos cinco anos, cercada por estranhos perto de Roma e longe de sua família. Em Veneza, viu-se, não só em orgias, mas apaixonado pela condessa Teresa Guiccioli, a única que dominava Byron, impondo-lhe um triângulo com o marido idoso. “A fidelidade lhe fez mais bem do que a dispersão”, admite Matzneff. A verdade é que essa comédia tinha motivos políticos: esse casamento aristocrático envolveu o poeta na conspiração carbonária, que precisava do seu dinheiro e prestígio. Era o que o exigia do lorde sob seu teto, segundo a marquesa Origo, que dedicou um livro soberbo ao amor mais firme que Byron tinha, cujas ideias sobre as mulheres, O’Brien nos lembra repetidas vezes, eram do século XIX. Já idosa, a condessa Guiccioli fez questão de fazer passar esse amor por platônico.
 
A delicadeza de Byron, conclui O’Brien, pode ser vista, apesar de tudo, na destruição de suas Memórias, jogadas no fogo em “um ato de vandalismo coletivo” que envolveu seu amigo Thomas Moore — interessado que a sua vida licenciosa ao lado de Byron não fosse divulgada — e Lady Byron, quem proclamou que esses papéis não podiam ver “nenhuma outra luz além da do fogo”. Se aquelas 78 páginas chegaram às mãos dos incendiários, foi porque o poeta permitiu que as lessem para que pudessem julgar se ele estava mentindo ou se colocava em risco a reputação deles. Em maio de 1824 quando os restos mortais de Byron ainda estavam no porto de Zante esperando para serem repatriados outros amigos seus como o fiel John Cam Hobhouse começaram a agir para que o manuscrito fosse comprado do editor que o guardava e destruído, inclusive com a aprovação de Augusta, que a princípio se opôs. Anos antes, Byron ignorara o conselho de guardar suas Memórias em segurança num cofre de banco. Não é difícil acreditar que o poeta, conhecendo os seus, confiava que eles destruiriam os papéis, poupando-lhe uma decisão difícil. Para O’Brien, desmistificando, Byron não precisa de tanta imortalidade. Ele não era um santo nem uma atmosfera, mas um revolucionário.
 
III Guerra e revolução
 
Roderick Beaton, em Byron’s War. Romantic Rebellion, Greek Revolution (2013), também e com ainda mais ímpeto, visa desmistificar. Os arquivos gregos revelam verdades incômodas que desafiam a convicção de que Byron foi um idealista ocioso cuja fortuna foi desperdiçada por facções revolucionárias e morreu como consequência da ingenuidade do romântico que quer fazer a revolução num país mítico e remoto, acreditando como acreditava, desde a sua juventude, que havia um inevitável “choque de civilizações” entre a Grécia e o Império Otomano. No seu zelo, Beaton chega a afirmar que, nos seus últimos meses, Byron, se não foi rei da Grécia, aprendeu a ser um estadista e, se não tivesse morrido, teria levado a bom termo a independência grega sem a necessidade da intervenção estrangeira que proclamou, até 1828, a Primeira República Helênica. Em contraste, Mary Beard, comentando o monumental catálogo grego (1821: Before and After, Museu Benaki, Atenas, 2021), para comemorar a revolta anti-otomana, celebra a “desbyronização” dos estudos atuais.
 
Byron, que estivera na Grécia uma década antes, conhecia o terreno, inclusive em Mesolóngi, onde morreria. As ruínas dessa antiga civilização eram para ele uma vaga promessa de futuro, legível em sua poesia e correspondência. Cada vez mais republicano, Byron, desde as suas duas únicas intervenções na Câmara dos Lordes em 1809, opôs-se à punição dos protestos dos trabalhadores com a pena capital e defendeu os direitos civis dos católicos romanos.
 
Lord Byron (“odeio até a realeza democrática”, Don Juan) pertencia à amistosa confraria daqueles que preferem morrer pelo povo que viver com ele, como dizia Stendhal, que o conheceu menos do que presumia mas sempre acertou ao julgá-lo, sem ira e com estudo. Embora não compartilhasse do extremismo igualitário dos Shelley e as questões teóricas o entediassem, o objetivo de Byron era a ação, para a qual ele tinha o temperamento e os meios. Sua obra expressa um amplo desdém pela Santa Aliança e os heróis byronianos, prometeicos, atormentados e pré-nietzschianos mantiveram-no em guarda contra uma ordem estabelecida à qual sempre se opôs, como presume numa estrofe de Don Juan, uma obra “dedicada” sarcasticamente a Southey e começa assim: “Quero um herói: um incomum desejo”.
 
A correspondência política e militar, especialmente a que manteve com o príncipe Aléxandros Mavrokordátos, que seria o primeiro-ministro da Grécia, expressa, talvez de forma um tanto repentina (embora a temporada carbonária com os Guiccioli tenha sido um curso intensivo), que se juntava com firmeza um segundo ou terceiro Byron, completamente político, como se a revolução complementasse perfeitamente o rigor das suas dietas e o seu desejo atlético. Nenhum de seus personagens literários, observa Beaton, tinha as características que Byron estava alcançando quando a morte o surpreendeu.
 
A sua morte, devido à hemorragia impiedosa a que os médicos o submeteram, foi um duro golpe para a revolução grega, tanto pelo prestígio da sua figura como pelo dinheiro em armas que só Byron poderia negociar pela causa em Londres. E quando percebeu que a geopolítica o colocava, na Grécia, no mesmo lado da sua odiada monarquia britânica, o pragmatismo prevaleceu, ao ponto de uma das fraudes seculares, especialmente na propaganda otomana, o ter apresentado durante muito tempo como um agente inglês. Os gregos, como todas as pessoas na revolução, odiavam-se, dizia o poeta.
 
IV … e a poesia
 
Enquanto desfrutava do entrecho biográfico, lia ocasionalmente Don Juan, de Lord Byron, na minha opinião um dos poemas menos valorizados do Ocidente e muito superior aos poemas da ordem satânica, porque estes são escritos em um gênero já impossível: poesia dramática que não pode ser representada e deve ser lida em voz alta, como Manfred ou Caim. São poemas que envelhecem devido a efeitos especiais de baixa qualidade, um pouco como Assim falou Zaratustra: não só a mentalidade anticristã foi totalmente popularizada — graças aos Byron e aos Nietzsche, entre muitos — mas os recursos cênicos (nos quais Byron, ao contrário de Wordsworth e Coleridge, não acreditava) que apenas convidam à imaginação do leitor foram superados por meios mais eficientes, há mais de um século, como o cinema. O mesmo acontece com Franz Liszt, esse discípulo quase literário de Byron que, quando passa do piano solo para as orquestrações, seus concertos para piano tornam-se irritantes. E assim também é o caso dos Faustos de Goethe, que são, apesar do nosso pesar, uma leitura um tanto tediosa e ainda mais, suponho, para aqueles de nós que não lemos alemão.
 
Curiosamente, ao contrário de Chateaubriand, Goethe era um admirador entusiasta de Byron e acreditava que o então conhecido fragmento do primeiro Fausto havia influenciado o poeta inglês. Foi o contrário: a primeira tradução para o inglês, atribuída a Coleridge, só saiu em 1821, quando Byron já estava longe daquelas dramatizações: graças a Matthew Lewis, autor de O monge (1796) e assim apelidado, que lendo-lhe fragmentos traduzidos à medida que avançava, Byron confrontou seu Manfred com uma certa ideia do fáustico. E Goethe, ao ler Manfred, foi encorajado a completar seu Fausto antes de morrer em 1832.
 
Tive a impressão de que Don Juan era equivalente, para o século XIX, aos Cantos de Ezra Pound, mas não tinha como corroborar com isso até que chegou às minhas mãos a verdadeira novidade do bicentenário byroniano: Byron and the poetics of adversity, de McGann. E McGann, e isso em muito claro ao lê-lo, não é um erudito como qualquer outro. É fundador de um Colégio de Patacrítica e em meio à sua erudição romântica não hesita em citar Charles Bukowski, cuja desenvoltura coloquial, segundo ele, já está em Byron, e Gertrude Stein, cujas óperas e peças também são encontradas em Byron, autor de “poemas dramáticos” e não de “dramas poéticos”.
 
De Southey em 1820 a T. S. Eliot, a poesia de Byron foi acusada de não contribuir em nada para a língua inglesa, explica McGann. Foi lido na adversidade porque a “má poesia” fazia parte do projeto byroniano. Em seu retorno a Alexander Pope, em algo que poderia ser chamado de “inovação retrógrada”, ele retorna ao inglês vernáculo, como farão os “modernistas” do século passado, introduzindo ao longo de Don Juan informações históricas, fofocas e chistes, distorções idiomáticas e então irreverentes, e enigmas que escondem o que McGann chama de suas perversifications. Recorre às palavras cruzadas e à vox populi com uma liberdade invulgar, difícil de captar nas traduções.
 
Byron queria que seu Don Juan, o herói, não fosse um monge ou um “judeu errante”, como afirma Matzneff, mas sim um Anacharsis Cloots, um dos radicais de 1789 que se apresentou, finalmente denunciado por seus camaradas jacobinos, à guilhotina, cumprimentando-a. Byron, diz McGann, fez de seu Don Juan, ao mesmo tempo, “uma torre de Babel e um rugido de muitas águas”, capaz como era de rimar “Plato” com “potato”. E embora o professor da Universidade da Virgínia cite Finnegans Wake e não os Cantos como um resultado inédito de Don Juan, mesmo quando nem Joyce nem Pound tinham consciência disso, entende-se que Byron, por suas liberdades lexicais, por os seus germanias, aleluias burlescas e não só por causa delas, permanece — finalmente concilio Praz com Valera — algo mais do que uma atmosfera: um poeta cuja imortalidade talvez não nos convenha inteiramente porque perturba demasiadas certezas. “É difícil”, conclui McGann, “sentir-se confortável com qualquer coisa que Byron escreveu” porque sua “sensibilidade defeituosa”, da qual Eliot se queixava, “era o espelho no qual os leitores podem vislumbrar nossa ‘fraqueza... mental’” e, à medida que avançava “com passo firme por terreno instável, Byron encontrou o que necessitava no inglês histórico, por mais imperial que fosse na época”.
 
No final das contas, quando se trata de milord, tudo é uma questão de ossos. Falando do seu medo de ser obeso, no diário de Londres confessou que “não devia preocupar-me tanto em comer um pouco de carne: os meus ossos aguentam” e em O Cerco de Corinto viu como “os ossos dos mortos murmuraram preguiçosamente”.
 
Dá-me a impressão de que morremos e voltamos à vida, que a nossa carne e os nossos rostos mudaram, mas que a literatura ocidental continua a ser sustentada, seja através de Poe, Baudelaire, Arthur Rimbaud, Oscar Wilde ou Ezra Pound, os ossos de Lord Byron.


Notas da tradução:
1 É possível ler uma tradução integral do Don Juan de Lord Byron na tese de Lucas de Lacerda Zaparolli de Agustini, disponível aqui. As traduções de passagens do poema neste texto foram colhidas neste trabalho.
 
* Este texto é a tradução livre de “Los huesos de lord Byron”, publicado aqui, em Letras Libres.

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