|
Lord Byron, desenho de Henry Meyer, 1816 |
Entre as numerosas epígrafes que
poderia escolher para encabeçar este ensaio sobre o bicentenário da morte de
Lord Byron, creio que não há duas mais antagônicas do que a exclamação do
antiquário neoclassicista Mario Praz e a objecção sincera de Juan Valera,
romancista e excelente observador andaluz da literatura do seu tempo. Ou Byron
(1788-1824) “é uma atmosfera, um clima, um estado de espírito”, como escreveu o
italiano, ou Byron é, problematicamente, algo “que não nos convém”, pois não
convinha a Don Juan nem a Don Marcelino, seu correspondente. A primeira
epígrafe é contundente: Byron é o romântico diante do Todo-Poderoso, embora ele
próprio tenha sido adversário dos poetas dos Lagos, que, principalmente ao
longo do século XX, assumiram postumamente o cânone. E também aqueles que
ensinam literatura, juntamente com os poetas devedores do romantismo inglês,
assumem que William Wordsworth e Samuel Coleridge são os mestres de uma escola
que não precisaram frequentar — pelo menos não regularmente — o avô William
Blake, o singularíssimo John Keats ou o próprio Percy B. Shelley, mesmo que
esteja separado de seu desagradável amigo George Gordon, sexto Lord Byron, que
é enviado para outra seção, a dos “casos”, junto com o Marquês de Sade ou Mary
Shelley, inventores de categorias amplas — o sadismo — ou criadores de mitos,
como a criatura do Dr. Frankenstein, mas os estilistas considerados menores,
por boas e más razões. Sade e Mary Shelley se afastam da literatura para se
aprofundarem nas mitologias.
Byron, por outro lado, não é
exatamente um mito, mas sim uma lenda. O byronianismo é distinguível em muitos
dos seus imitadores, mas Byron não produziu nada além de si mesmo: ele é
irrepetível porque a autoparódia, nele, era essencial. Já não é possível, se é
que alguma vez foi, lê-lo sob a estrita observância de
Tel Quel,
isolando os textos no vazio, expulsando a presença muito colorida e intrusiva
da sua avassaladora e dramática personalidade, que só poderia ser fragmentada
em personagens secundários, de Childe Harold a Caim, passando por Manfred e Don
Juan, uma espécie de servilismo — como aquele que acompanhava o Lord em suas
viagens — que, terminada a jornada, sempre presta contas ao seu amo.
Se a tradução é um índice de
leitura universal — e limitando-me apenas ao espanhol e ao francês — a enorme
obra byroniana é pouco traduzida, com negligência, privilegiando os mais acadêmicos
como
O Corsário (1814), o aparentemente fáustico
Manfredo (de
1817) ou a prática de organizar antologias, à vontade, reunindo seus contos ou
poemas orientais. As seleções são feitas a partir de sua correspondência e
diários. Por outro lado,
A peregrinação de Childe Harold (cujas
primeiras duas canções apareceram em 1812) não são fáceis de possuir, a menos
que se obtenha
The Major Works (editado em 1986 por Jerome J. McGann
para Oxford) ou recorra-se às enganosas e dificilmente manejáveis obras
completas quase doadas para nutrir o
e-reader. Somente em 2022 apareceu
uma nova tradução de
Childe Harold em francês, da qual não encontrei uma
edição confiável e moderna em espanhol. Quanto a
O Infiel (1813),
Lara
(1814), as significativas
Melodias hebraicas (1815),
O cerco de
Corinto (1816) ou
Beppo (1818), é preciso cavar um pouco para
lê-los. Em vez disso, e logo veremos por que, foi feita justiça editorial ao
enorme
Don Juan (publicado incompleto em 1819), o mais fascinante e
menos explorado dos livros de Byron.
Para comemorar o bicentenário, não
houve nenhuma nova biografia de interesse, assinada por qualquer dos ávidos e
competentes biógrafos anglo-saxões, que se somasse ao enorme número de vidas já
publicadas. Foi reeditada
The Late Lord Byron (1961), de Doris Langley
Moore, uma excepcional byromaníaca e também uma historiadora da moda, e
concluiu-se, talvez com razão, que não faz sentido ir além dos três volumes
absolutos de Leslie A. Marchand (
Byron.
A biography, 1957-1976).
A relevância editorial medíocre de Byron deve-se presumivelmente à
irregularidade da sua obra — da qual o poeta não só tinha consciência como
também se orgulhava — e ao seu caráter de época. Depois de transformar o
romantismo em satanismo — que foi o que Harold Bloom celebrou até incorrer em
excessos visionários impróprios para um crítico — digamos que Byron se
aposentou. Ele não está morto. Vive de pensão em algum tipo de casa de repouso,
como agora são chamados os asilos para idosos. É possível visitá-lo nesse
purgatório, mas com restrições, que, muito provavelmente, foram ditadas por
ele. Dir-se-á que é muito. Que talvez até mereça menos. Mas para os byronianos
nada é suficiente. Abaixo examino alguns livros sobre o poeta inglês, desde
Byron
et le kissin de la fatalité (publicado originalmente em 1929), de Charles
Du Bos,
La dietétique de lord Byron (1984), de Gabriel Matzneff,
Byron
apaixonado (2009), de Edna O'Brien,
Byron’s War (2013), de Roderick
Beaton, e
Byron and the Poetics of Adversity (2022), de McGann. Apoio-me
nos
Diários e nas minhas leituras recorrentes de
Don Juan. Tudo
para corroborar, se em uma extremidade está a exclamação de Praz e na outra a
suposta tacanhez de Valera e Menéndez Pelayo, onde hoje se encontra Lord Byron.
I Dieta
Byron não apenas nasceu com pé
torto (“mistério ortopédico”, diz Matzneff) como foi submetido a tratamentos
tortuosos e torturantes para corrigi-lo, mas o que o obcecava era sua propensão
à obesidade (aos dezoito anos pesava cem quilos), razão pela qual se submeteu a
dietas draconianas, que — como qualquer dieta — estavam prontas para serem
quebradas, causando-lhe severos distúrbios gástricos. É difícil saber se ele
foi bulímico. Seu horror à obesidade fez dele um grande atleta, como provou ao
atravessar a nado o Estreito de Helesponto em 1810, e foi um amante do boxe,
bem como das cavalgadas mais exaustivas. Esse vigor o distancia dos pálidos
poetas malditos que nele se reconheceram e faz dele um poeta do gênero
atlético, mais digno de Píndaro do que de Henry Murger e seus boêmios. Desde o
início, o caráter esportivo de Byron surpreendeu os amantes do gosto, aqueles
franceses que o poeta detestava, a ponto de evitar a França, e principalmente
Paris, ao longo da vida, admirador como foi de Napoleão Bonaparte, a quem não
perdoou o fato de ter evitado o suicídio após sua primeira abdicação em 1814. “Deveria
seguir a nobre tradição romana”, lamentou em sua “Ode a Napoleão” de 1815; para
ele não importa que seus sentimentos contrariados em relação ao imperador sirvam
às delícias de seus inimigos conservadores.
Du Bos, que não foi um dos
melhores entre os grandes críticos da
Nouvelle Revue Française, dedicou
um longo ensaio a Byron em 1929, no qual é evidente o desconcerto francês
acerca da sua figura porque não parecia haver uma categoria satisfatória para o
autor de
Childe Harold. Du Bos admitiu, com Annabella Byron (a única
esposa do poeta e mãe de sua única filha legítima, Augusta Ada Lovelace, um
gênio da matemática nascida em 1815 que se tornaria a avó da computação), que
não havia chave para abrir o coração do poeta. Só resta nos perder no labirinto
de seu personagem. Concluiu o crítico de origem inglesa que nenhum dos fatos da
vida de Byron possui valor em si, por mais significativos que pareçam, já que
ele foi réu da fatalidade. Um herói maravilhoso da tragédia grega que fracassou
na “amizade-paixão” (porque o verdadeiro amor não o conheceu), tendo sido uma
“alma-eco” através da qual se expressou uma época que ressoa, como diria Praz,
com “Byron!” Quis escapar à fatalidade através de decisões erráticas — como
casar-se para fugir ao incesto com a sua meia-irmã Augusta Leigh — e nada
correu bem, como se a sua glória fosse, sem dúvida, apenas a vaidade das
vaidades repreendidas por Eclesiastes. Tudo em Byron é teatro, lemos em
Byron
et le besoin de la fatalité, o que não impede Du Bos de olhar para ele
consternado.
A aventura grega que custou a vida
a Byron em 19 de abril de 1824 é a conclusão lógica de uma biografia em que a
poesia está, não tão curiosamente, quase completamente ausente, segundo a visão
de quem fora o especialista em literatura inglesa da
NRF. Elegante, e um
Du Bos (1882-1939) cada vez mais católico não quis incorrer na vulgaridade de
condená-lo como pecador (Robert Southey fez isso quando descreveu Byron e
Shelley como satanistas), mas o joga no mundo dos pagãos onde Lord Byron, sem
dúvida, sente-se muito confortável, longe do calvinismo em que foi educado e
mais próximo daquele catolicismo de estilo italiano que chegou a excitá-lo
desde 1816, quando o escândalo incestuoso (somado à acusação de exercer a
sodomia heterossexual) o obriga a fugir da Inglaterra e viver em Pisa, Gênova,
Roma e Veneza.
Mais interessante, de longe, é
La
diététique de lord Byron, onde o réprobo e repreensível Gabriel Matzneff
(1936) faz de Byron um perfeito epicurista. Cristão de obediência ortodoxa,
Matzneff interpreta neste sentido a escolha grega que acabaria com a vida de
Byron, desenhando-o como dono de “um temperamento de direita com ideias de
esquerda, um pederasta rodeado de mulheres, um discípulo de Epicuro habitando o
medo do inferno cristão, um adversário do imperialismo que venerava Napoleão,
um suicida amante da vida…”
Matzneff, um pedófilo confesso que
em 1977 foi apoiado por metade da intelectualidade parisiense para
descriminalizar o sexo com menores e que hoje, denunciado, está sob
investigação judicial com grande parte de sua obra fora de circulação, vê na
vida e na obra de Byron não apenas uma arte de amar, mas uma arte de viver que
começou numa homossexualidade precoce (que os biógrafos negam) e obteve o
título da mais elevada transgressão — tão aplaudida pelos franceses — com a
pedofilia e o incesto. Em grande medida, Matzneff escreve uma hagiografia de
Byron onde são narradas todas as virtudes do lorde, que são, seguindo Praz,
algo mais do que uma atmosfera: “a vertigem do suicídio, o amor pelos corpos
jovens, o a disciplina alimentar, o entusiasmo pela liberdade dos homens e das
nações.”
É a vida de um santo epicurista
cuja regra essencial, da qual se desprende sua aurora, é a alimentação, um
regime rigoroso que lhe permitia chegar em muito boa forma à prática de todos
os prazeres. Para ele, como para aquele herói byroniano que é Edmond Dantès de
O
Conde de Monte Cristo, “o mar e a morte são as duas faces de uma única
libertação, de uma mesma ressurreição”. Apenas Napoleão Bonaparte está à altura
de Lord Byron, conclui Matzneff. A analogia é antiga e irritava o visconde de
Chateaubriand, que via no inglês um impostor que o privava da primazia
romântica. Quanto ao próprio Chateaubriand e mais tarde a Léon Bloy, para Byron
a ausência do imperador esvaziou o mundo do seu significado, numa operação
semelhante ao reino de Deus, segundo os cristãos, depois da cruz e antes da
Encarnação. O amor, conclui
La diététique de lord Byron, era uma coisa
pequena para Byron, “esse sibarita espartano” e de todas as suas relações
apenas aquela estabelecida com Augusta, irmã suprema, vale a pena. A única,
esclarece Matzneff, que entendia o “egoísmo monstruoso” de Byron — do qual se
queixou sua esposa — como defeitos do próprio criador da arte, “defeitos
masculinos comuns, mas hipertrofiados” porque o casamento, que vem do amor como
o vinagre do vinho, atrai os dissolutos, segundo Byron em
Don Juan.¹
II Amor
Edna O’Brien (1930), romancista
preferida de Bloom como biógrafa de Byron, tem outra opinião. Para ela, Byron é
uma totalidade erótica, interessado no vício e na virtude, no boxe ou em se
adiantar décadas ao tentar descobrir Tróia. Os soberanos orientais que o
receberam, como Mahmut II, consideraram-no “uma mulher vestida de homem”,
devido à sua beleza e elegância. Ao contrário de Du Bos, ela o pinta como um
grande amigo de seus amigos, embora o próprio Byron tenha dito que sua
admiração por Shelley era tão grande que impedia a amizade. Havia inveja.
Irlandesa, a autora de
Byron apaixonado
não esquece, com os pés no chão e com alguma amargura, que “as irregularidades
de sua conduta” eram as da sua classe e credo, a aristocracia
whig
reunida em torno da Holland House. Sua vida erótica foi tão variada porque ele
acreditava que “nossos afetos não estão em nosso poder” e que devemos vagar
livremente atrás deles, mas era impossível para Byron separar-se completamente de
quem havia amado: foi vampirizado, acima de tudo, pelas mulheres que o abandonavam.
Não só Augusta mas a própria Lady Byron (de quem se separou judicialmente em
1816) foi sua correspondente assídua até ao fim e quem der uma corrida de olhos
à enorme correspondência do poeta não hesitará em salientar que ele confiava
mais na inteligência e na educação da sua ex-esposa rebelde do que na veneração
de sua meia-irmã.
A breve biografia de O’Brien humaniza Byron. O poeta foi muito cruel
com Claire Clairmont, meia-irmã de Mary Shelley e mãe de Allegra, filha
ilegítima de Byron que ele tirou dela, apenas para que a menina morresse de
tifo aos cinco anos, cercada por estranhos perto de Roma e longe de sua
família. Em Veneza, viu-se, não só em orgias, mas apaixonado pela condessa
Teresa Guiccioli, a única que dominava Byron, impondo-lhe um triângulo com o
marido idoso. “A fidelidade lhe fez mais bem do que a dispersão”, admite
Matzneff. A verdade é que essa comédia tinha motivos políticos: esse casamento
aristocrático envolveu o poeta na conspiração carbonária, que precisava do seu
dinheiro e prestígio. Era o que o exigia do lorde sob seu teto, segundo a
marquesa Origo, que dedicou um livro soberbo ao amor mais firme que Byron
tinha, cujas ideias sobre as mulheres, O’Brien nos lembra repetidas vezes, eram
do século XIX. Já idosa, a condessa Guiccioli fez questão de fazer passar esse
amor por platônico.
A delicadeza de Byron, conclui O’Brien,
pode ser vista, apesar de tudo, na destruição de suas
Memórias, jogadas
no fogo em “um ato de vandalismo coletivo” que envolveu seu amigo Thomas Moore —
interessado que a sua vida licenciosa ao lado de Byron não fosse divulgada — e Lady
Byron, quem proclamou que esses papéis não podiam ver “nenhuma outra luz além
da do fogo”. Se aquelas 78 páginas chegaram às mãos dos incendiários, foi
porque o poeta permitiu que as lessem para que pudessem julgar se ele estava
mentindo ou se colocava em risco a reputação deles. Em maio de 1824 quando os
restos mortais de Byron ainda estavam no porto de Zante esperando para serem
repatriados outros amigos seus como o fiel John Cam Hobhouse começaram a agir
para que o manuscrito fosse comprado do editor que o guardava e destruído, inclusive
com a aprovação de Augusta, que a princípio se opôs. Anos antes, Byron ignorara
o conselho de guardar suas
Memórias em segurança num cofre de banco. Não
é difícil acreditar que o poeta, conhecendo os seus, confiava que eles
destruiriam os papéis, poupando-lhe uma decisão difícil. Para O’Brien,
desmistificando, Byron não precisa de tanta imortalidade. Ele não era um santo
nem uma atmosfera, mas um revolucionário.
III Guerra e revolução
Roderick Beaton, em
Byron’s
War. Romantic Rebellion, Greek Revolution (2013), também e com ainda mais
ímpeto, visa desmistificar. Os arquivos gregos revelam verdades incômodas que
desafiam a convicção de que Byron foi um idealista ocioso cuja fortuna foi
desperdiçada por facções revolucionárias e morreu como consequência da
ingenuidade do romântico que quer fazer a revolução num país mítico e remoto,
acreditando como acreditava, desde a sua juventude, que havia um inevitável
“choque de civilizações” entre a Grécia e o Império Otomano. No seu zelo,
Beaton chega a afirmar que, nos seus últimos meses, Byron, se não foi rei da
Grécia, aprendeu a ser um estadista e, se não tivesse morrido, teria levado a
bom termo a independência grega sem a necessidade da intervenção estrangeira
que proclamou, até 1828, a Primeira República Helênica. Em contraste, Mary
Beard, comentando o monumental catálogo grego (
1821: Before and After,
Museu Benaki, Atenas, 2021), para comemorar a revolta anti-otomana, celebra a
“desbyronização” dos estudos atuais.
Byron, que estivera na Grécia uma
década antes, conhecia o terreno, inclusive em Mesolóngi, onde morreria. As
ruínas dessa antiga civilização eram para ele uma vaga promessa de futuro,
legível em sua poesia e correspondência. Cada vez mais republicano, Byron,
desde as suas duas únicas intervenções na Câmara dos Lordes em 1809, opôs-se à
punição dos protestos dos trabalhadores com a pena capital e defendeu os
direitos civis dos católicos romanos.
Lord Byron (“odeio até a realeza
democrática”,
Don Juan) pertencia à amistosa confraria daqueles que
preferem morrer pelo povo que viver com ele, como dizia Stendhal, que o
conheceu menos do que presumia mas sempre acertou ao julgá-lo, sem ira e com
estudo. Embora não compartilhasse do extremismo igualitário dos Shelley e as
questões teóricas o entediassem, o objetivo de Byron era a ação, para a qual
ele tinha o temperamento e os meios. Sua obra expressa um amplo desdém pela
Santa Aliança e os heróis byronianos, prometeicos, atormentados e
pré-nietzschianos mantiveram-no em guarda contra uma ordem estabelecida à qual
sempre se opôs, como presume numa estrofe de
Don Juan, uma obra
“dedicada” sarcasticamente a Southey e começa assim: “Quero um herói: um
incomum desejo”.
A correspondência política e
militar, especialmente a que manteve com o príncipe Aléxandros Mavrokordátos,
que seria o primeiro-ministro da Grécia, expressa, talvez de forma um tanto
repentina (embora a temporada carbonária com os Guiccioli tenha sido um curso
intensivo), que se juntava com firmeza um segundo ou terceiro Byron,
completamente político, como se a revolução complementasse perfeitamente o
rigor das suas dietas e o seu desejo atlético. Nenhum de seus personagens
literários, observa Beaton, tinha as características que Byron estava
alcançando quando a morte o surpreendeu.
A sua morte, devido à hemorragia
impiedosa a que os médicos o submeteram, foi um duro golpe para a revolução
grega, tanto pelo prestígio da sua figura como pelo dinheiro em armas que só
Byron poderia negociar pela causa em Londres. E quando percebeu que a
geopolítica o colocava, na Grécia, no mesmo lado da sua odiada monarquia
britânica, o pragmatismo prevaleceu, ao ponto de uma das fraudes seculares,
especialmente na propaganda otomana, o ter apresentado durante muito tempo como
um agente inglês. Os gregos, como todas as pessoas na revolução, odiavam-se, dizia
o poeta.
IV … e a poesia
Enquanto desfrutava do entrecho
biográfico, lia ocasionalmente
Don Juan, de Lord Byron, na minha opinião
um dos poemas menos valorizados do Ocidente e muito superior aos poemas da
ordem satânica, porque estes são escritos em um gênero já impossível: poesia
dramática que não pode ser representada e deve ser lida em voz alta, como
Manfred
ou
Caim. São poemas que envelhecem devido a efeitos especiais de baixa
qualidade, um pouco como
Assim falou Zaratustra: não só a mentalidade
anticristã foi totalmente popularizada — graças aos Byron e aos Nietzsche,
entre muitos — mas os recursos cênicos (nos quais Byron, ao contrário de
Wordsworth e Coleridge, não acreditava) que apenas convidam à imaginação do
leitor foram superados por meios mais eficientes, há mais de um século, como o
cinema. O mesmo acontece com Franz Liszt, esse discípulo quase literário de
Byron que, quando passa do piano solo para as orquestrações, seus concertos
para piano tornam-se irritantes. E assim também é o caso dos
Faustos de
Goethe, que são, apesar do nosso pesar, uma leitura um tanto tediosa e ainda
mais, suponho, para aqueles de nós que não lemos alemão.
Curiosamente, ao contrário de
Chateaubriand, Goethe era um admirador entusiasta de Byron e acreditava que o
então conhecido fragmento do primeiro
Fausto havia influenciado o poeta inglês.
Foi o contrário: a primeira tradução para o inglês, atribuída a Coleridge, só
saiu em 1821, quando Byron já estava longe daquelas dramatizações: graças a
Matthew Lewis, autor de
O monge (1796) e assim apelidado, que lendo-lhe
fragmentos traduzidos à medida que avançava, Byron confrontou seu
Manfred
com uma certa ideia do fáustico. E Goethe, ao ler
Manfred, foi
encorajado a completar seu
Fausto antes de morrer em 1832.
Tive a impressão de que
Don
Juan era equivalente, para o século XIX, aos
Cantos de Ezra Pound,
mas não tinha como corroborar com isso até que chegou às minhas mãos a verdadeira
novidade do bicentenário byroniano:
Byron and the poetics of adversity,
de McGann. E McGann, e isso em muito claro ao lê-lo, não é um erudito como
qualquer outro. É fundador de um Colégio de Patacrítica e em meio à sua
erudição romântica não hesita em citar Charles Bukowski, cuja desenvoltura
coloquial, segundo ele, já está em Byron, e Gertrude Stein, cujas óperas e
peças também são encontradas em Byron, autor de “poemas dramáticos” e não de
“dramas poéticos”.
De Southey em 1820 a T. S. Eliot,
a poesia de Byron foi acusada de não contribuir em nada para a língua inglesa,
explica McGann. Foi lido na adversidade porque a “má poesia” fazia parte do
projeto byroniano. Em seu retorno a Alexander Pope, em algo que poderia ser
chamado de “inovação retrógrada”, ele retorna ao inglês vernáculo, como farão
os “modernistas” do século passado, introduzindo ao longo de
Don Juan
informações históricas, fofocas e chistes, distorções idiomáticas e então
irreverentes, e enigmas que escondem o que McGann chama de suas
perversifications.
Recorre às palavras cruzadas e à
vox populi com uma liberdade invulgar,
difícil de captar nas traduções.
Byron queria que seu Don Juan, o
herói, não fosse um monge ou um “judeu errante”, como afirma Matzneff, mas sim
um Anacharsis Cloots, um dos radicais de 1789 que se apresentou, finalmente
denunciado por seus camaradas jacobinos, à guilhotina, cumprimentando-a. Byron,
diz McGann, fez de seu
Don Juan, ao mesmo tempo, “uma torre de Babel e
um rugido de muitas águas”, capaz como era de rimar “Plato” com “potato”. E
embora o professor da Universidade da Virgínia cite
Finnegans Wake e não
os
Cantos como um resultado inédito de
Don Juan, mesmo quando nem
Joyce nem Pound tinham consciência disso, entende-se que Byron, por suas
liberdades lexicais, por os seus germanias, aleluias burlescas e não só por
causa delas, permanece — finalmente concilio Praz com Valera — algo mais do que
uma atmosfera: um poeta cuja imortalidade talvez não nos convenha inteiramente
porque perturba demasiadas certezas. “É difícil”, conclui McGann, “sentir-se
confortável com qualquer coisa que Byron escreveu” porque sua “sensibilidade
defeituosa”, da qual Eliot se queixava, “era o espelho no qual os leitores
podem vislumbrar nossa ‘fraqueza... mental’” e, à medida que avançava “com
passo firme por terreno instável, Byron encontrou o que necessitava no inglês
histórico, por mais imperial que fosse na época”.
No final das contas, quando se
trata de
milord, tudo é uma questão de ossos. Falando do seu medo de ser
obeso, no diário de Londres confessou que “não devia preocupar-me tanto em
comer um pouco de carne: os meus ossos aguentam” e em
O Cerco de Corinto
viu como “os ossos dos mortos murmuraram preguiçosamente”.
Dá-me a impressão de que morremos
e voltamos à vida, que a nossa carne e os nossos rostos mudaram, mas que a
literatura ocidental continua a ser sustentada, seja através de Poe,
Baudelaire, Arthur Rimbaud, Oscar Wilde ou Ezra Pound, os ossos de Lord Byron.
Notas da tradução:
1 É possível ler uma tradução
integral do
Don Juan de Lord Byron na tese de Lucas de Lacerda Zaparolli
de Agustini,
disponível aqui. As traduções de passagens do poema neste texto foram
colhidas neste trabalho.
* Este texto é a tradução livre de
“Los huesos de lord Byron”, publicado aqui, em Letras Libres.
Comentários