Por Renzo Gómez Vega
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Julio Ramón Ribeyro em seu escritório de Paris, 1980. Foto: Jorge Deustua. |
Vasculhar a gaveta de um escritor já
falecido é perscrutar a intimidade de um criador. Entrar num universo de
dúvidas, ousadias e frustrações de quem travou inúmeras batalhas com uma página
em branco para escapar do esquecimento. É, acima de tudo, explorar um olhar
sobre a vida e testemunhar em primeira mão o milagre do nascimento da literatura.
Depois de se enraizar na Europa,
Julio Ramón Ribeyro, o contista mais importante da literatura do Peru, morreu
em Lima, aos 65 anos, no leito de um hospital oncológico, em dezembro de 1994,
justamente quando começava a ser reconhecido. Partiu antes da chegada dos
primeiros raios do sol de verão e algumas semanas depois de receber o Prêmio
Juan Rulfo, reconhecimento que fez com que o seu nome transcendesse os círculos
literários menores e ressoasse internacionalmente.
Desde então, sua comunidade de
leitores — que eventualmente se tornaram devotos — aprendeu a conviver com a
suspeita de que toda a sua obra não havia sido publicada. Baseavam-se no fato
de Ribeyro ter deixado este mundo após apresentar apenas dois volumes de seus
diários pessoais, talvez o mais célebre de seus escritos junto com seus contos
e aforismos. Outro volume foi publicado postumamente em 1995, mas entre os três
apenas cobre o período de 1950 a 1978. Era fato que
La tentación del fracaso
estava incompleta, mas a preocupação era legítima: o que mais seus arquivos
poderiam conter?
Jorge Coaguila levou trinta anos
para descobrir. Ele, a quem Ribeyro chamou de seu biógrafo, foi adotado pelo
escritor como seu assistente e com ele disputou várias de suas últimas partidas
de xadrez. A aventura em busca de inéditos era complexa porque a decisão
dependia exclusivamente dos dois herdeiros do legado ribeyriano: a viúva, Alida
Cordero, e o único filho, Julio. Construir a confiança de ambos foi um trabalho
árduo. Durante anos os dois forneceram informações sobre Ribeyro por e-mail, sem
questionar, e Coaguila mostrou que seu interesse em compreender e divulgar a
literatura do peruano era genuíno.
Uma vez essa confiança esteve em
perigo, quando numa das suas viagens a França, Coaguila visitou Alida Cordero
na companhia de um jornalista que ligou o gravador sem pedir licença e algum
tempo depois descreveu esse encontro em livro. “Você trouxe um ladrão para
minha casa”, queixou-se durante um evento público. Alida Cordero tinha um
caráter imponente, não dava entrevistas e, como outras viúvas de escritores
famosos, despertava antipatia pois não havia notícias sobre os manuscritos do
autor de
Dichos de Luder.
Seja como for, sempre que Coaguila
a visitava em Paris, no seu apartamento da Avenida Van Dyck, perto do Parque
Monceau, um dos mais elegantes da cidade, Alida Cordero mostrava-lhe
parcialmente alguma descoberta. Uma carta, um documento, um desenho. Em 2022,
Coaguila publicou
Ribeyro, una vida, volume de quase 600 páginas que
pretende ser a biografia definitiva do escritor que melhor retratou as cinzas
da classe média urbana de Lima. Um projeto há muito aguardado que provavelmente
convenceu o filho e a viúva de que ninguém havia alcançado mais mérito do que
ele para escrutinar a gaveta do Flaco, como era conhecido o autor cuja silhueta
lembrava um alfinete e tinha sempre um cigarro entre os dedos.
Durante cinco dias por semana, de
janeiro a março, Coaguila mergulhou no inexpugnável arquivo de Julio Ramón
Ribeyro, que estava numa prateleira no corredor do apartamento de Alida Cordero
e não no cofre de um banco francês, como costumava dizer para despistar os
curiosos. Um armário com porta de metal cheio de milhares de folhas soltas e
cadernos em absoluta desordem que emanavam um aroma rançoso de baunilha. Cada
um daqueles papéis amarelados era um fragmento de seus impulsos literários e de
sua trajetória. Manuscritos dos seus romances, diários que o acompanharam em
Madrid ou na Antuérpia, fotos sépia, textos inacabados, notas manuscritas,
cartas e até recibos de pagamento, radiografias e outros documentos de saúde.
Nas primeiras duas semanas, a
viúva, famosa negociante de arte, não saiu de perto de Coaguila. Até que se deu
conta de que o patrimônio do marido estava em boas mãos e baixou a guarda,
deixando-o à vontade. E o que você descobriu?, perguntavam-lhe diariamente os
herdeiros que durante décadas preferiram não bisbilhotar naquela armário. Numa
manhã de inverno, Coaguila relatou a primeira descoberta: o texto datilografado
de um conto inédito, de 1976, chamado “Monerías”. Uma joia inesperada, cheia de
borrões e desenhos a lápis nas margens que, ao contrário de outros textos
intermediários, estava finalizado.
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Edição original que reúne inéditos de Julio Ramón Ribeyro |
No final de março, já em plena
primavera, Jorge Coaguila motivou o trio a abrir um vinho branco ao anunciar
que tinha resgatado um total de cinco contos, concebidos na década de setenta,
que não tinham visto a luz: “Invitación al viaje”, “La celada”, “Las
laceraciones de Pierluca”, “Espíritus” e “Monerías”. Esperançoso, Julio Ribeyro
contatou os escritórios da Penguin Random House no Peru, editora que publicou os
contos completas há alguns anos de seu pai e concordaram que seriam submetidos
à revisão por uma equipe formada pelo diretor editorial, Johann Page, pelo
editor Arthur Zeballos e pelo pesquisador Luis Rodríguez Pastor. O resultado é Invitación
al viaje y otros cuentos inéditos (Alfaguara), o retorno póstumo de Flaco
cinco meses após trinta anos de sua morte e, além disso, a possibilidade de
chegar a cem contos publicados, completando assim uma vida dedicada à palavra.
Page estabelece uma clara
diferença com Em agosto nos vemos, romance que o colombiano ganhador do
Prêmio Nobel Gabriel García Márquez quis destruir e que acabou sendo publicado
por ordem de seus filhos. “São contos acabados, em plena forma, que
acompanharam todo o processo criativo e que o autor nunca renegou. Três desses textos
poderiam perfeitamente ser incluídos em qualquer coleção dos livros de Ribeyro
e os outros dois têm qualidade superlativa. Deslumbraram a todos que os leram.
Isso torna este um livro com o qual qualquer contista sonharia”, explica Page, destacando
que o trabalho de edição consistiu em cumprir a vontade do escritor peruano,
levando em consideração cada uma de suas anotações para conseguir a versão mais
confiável do que ele escreveu.
O jornalista Jaime Cabrera,
criador da plataforma literária Lee por gusto, adere à expectativa
positiva de quem acredita que este livro é um resgate e não uma publicação
forçada. A tal ponto que considera Invitación al viaje y otros cuentos
inéditos o grande evento da Feira do Livro de Lima (FIL) de 2024. “Não
teremos país convidado, mas teremos um autor ausente que é o grande convidado
de honra. Muita gente tem reclamado que nenhum Prêmio Nobel virá para esta feira,
mas simbolicamente Ribeyro é a estrela do evento”, diz o professor
universitário que confirmou no primeiro semestre que os contos de Ribeyro têm
muito a dizer à juventude de hoje.
Num incidente que os seus
seguidores descreveram como ribeyriano, no dia 3 de julho, Alida Cordero foi
encontrada morta em sua casa, aos 83 anos. No dia anterior, a Penguin Random
House havia anunciado o lançamento do livro. Talvez completar esta grande
missão a tivesse libertado das amarras deste mundo. Quando a Julio Ramón
Ribeyro, certa vez lhe perguntavam por que escrevia, uma de suas muitas
respostas cai como uma luva em relação à descoberta: “Continuar existindo, uma
vez morto, mesmo que seja em forma de livro, como uma voz que alguém se
esforçará para ouvir. Em cada futuro leitor, o escritor renasce.” Se nada
atrapalhar, no próximo ano ele terá outra excelente oportunidade de reviver:
Coaguila está corrigindo seus diários pessoais até 1994. A conclusão dos
volumes de La tentación del fracaso é agora o aceno ao sucesso de um
biógrafo que possui a chave mestra da gaveta.
* Este texto é a tradução de “Los
cuentos escondidos de Julio Ramón Ribeyro en su archivo de París”, publicado aqui,
em El País.
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