O voo vertical de Saint-Exupéry

Por Bruno H. Piché

Antoine de Saint-Exupéry a bordo do Caudron Simoun, 1935. Arquivo Saint-Exupéry-d'Agay.


 
Às vezes acontece que toda a vida de um homem, o seu significado mais profundo e último, ficam contidos num único dia. Na manhã de 31 de julho de 1944, o comandante Antoine de Saint-Exupéry decola a bordo de um desprotegido bimotor P-38 Lighting para realizar uma missão de reconhecimento, sua última missão: sobrevoar em alta altitude a rota Grenoble-Chambéry-Lyon. Vista do ar, a paisagem parece ainda mais familiar, quase cativante; não pôs os pés em território francês nos últimos quatro anos. A ocupação alemã se prolongava, o país está dividido entre o regime colaboracionista de Vichy, a resistência e um governo no exílio. Os ânimos declinam. Antes de partir, Saint-Exupéry escreve uma carta a um amigo: “Se eu for abatido, não me arrependerei de absolutamente nada”. Para travar a guerra, as forças conjuntas da França e dos Estados Unidos preferem prescindir das emoções dos mais famosos dos seus pilotos, ou pelo menos conseguir a sua dissolução no amplo horizonte da Grande Estratégia: abrir uma pinça de fogo que avançará contra o inimigo e será fechado pelo norte e leste da França.
 
 A busca contínua é a verdadeira e incansável vocação que Antoine demonstra desde os anos da juventude. Quer ser oficial da Marinha, engenheiro, arquiteto; sua animosidade em relação aos estudos o transforma em escritor e piloto de avião. A literatura e a aviação, profissão então incipiente, permitiram-lhe alçar voo em busca do almejado reconhecimento.
 
Ele também quer ser amado: descobre a jovem aristocrata Louise de Vilmorin, que combina o prodígio de sua beleza e elegância com um inconformismo marcante e perene. Os ficam noivos em 1923 e o casamento nunca acontece. A promessa de amor altera o curso da vida de Antoine: ele nunca deixará de amar e sentir falta de Louise, embora seu casamento em 1931 com Consuelo Suncin e seu envolvimento com outras mulheres ao longo dos anos lhe tragam um alívio intermitente.
 
Saint-Ex começa com sucesso como piloto e escritor, mas a condenação do amor não realizado nunca o abandonará; Louise de Vilmorin reaparece como Geneviéve em seu primeiro romance, Correio Sul, e mais tarde se tornará mais do que uma personagem literária: permanece para sempre com Antoine, através de seus encontros esporádicos ou da correspondência que mantêm permanentemente. O divórcio de Louise, ocorrido oito anos depois de seu casamento, revela a ambos o fiasco que existe em qualquer vida amorosa fracassada. Um contemporâneo do piloto, profundo conhecedor da mundanidade dos homens, sofre o mesmo infortúnio: François Mitterrand, o eterno amante de Marie-Louise Terrase que decidiu dedicar-se inteiramente ao comércio das paixões políticas, levado por uma aflição que não diminuiu nunca, nem mesmo na morte.
 
 Os infortúnios políticos de Saint-Ex correm paralelamente à felicidade que ele descobriu no cultivo cuidadoso da amizade. Antoine professa a fé do indivíduo, mas reivindica para si a salvação através dos outros, seus semelhantes: “Não tenho a esperança de sair sozinho da solidão. A pedra não tem esperança de ser algo mais do que pedra. Mas em união com outras, se junta para construir um templo” (Cidadela).
 
Na grande catedral da amizade, o visconde de Saint-Exupéry convoca os fiéis, dois deles queridos: Léon Werth e Jean Mermoz. O primeiro deles, um intransigente panfletário da esquerda, “guardião de uma civilização”, cumpre uma função específica: guiar o piloto em seu caminho pela terra, obrigando-o a refinar e refinar suas ideias durante conversas que duram noites inteiras. Com o segundo, outro fiel das aventuras aéreas, compartilha o exercício da ação terrestre. O vínculo com Mermoz não é menos emocional: não participa das suas convicções antirrepublicanas, que o levaram até a se tornar membro de um movimento de direita, o beligerante Croix-de-Feux, mas nunca condena a sinceridade ou comprometimento que motiva seu colega e amigo. A amizade, como o amor, surge de algo mais profundo e evasivo: ambos são o grande mistério.
 
 Antoine é quase totalmente indiferente às questões políticas. Afundando numa depressão crescente, reclama para uma nação mortalmente dividida o mesmo espírito de comunhão que anima a sua profissão amigável. Nem o marechal Pétain nem o general De Gaulle merecem a sua simpatia, não comunga com as respectivas causas, embora também não as desafie explicitamente.
 
A falta de compromisso e a falta de apetite para tomar posições revelam o seu anacronismo, os sintomas particulares de um mal anímico: a nostalgia da velha civilização europeia; anseia pela unidade perdida, exige com Drieu La Rochelle prestar contas exclusivamente à França, à Europa e ao Homem.
 
Emmanuel Chadeau, historiador econômico e biógrafo fiel, destacou que a moralidade política de Saint-Ex corresponde à prossecução dos seus interesses: Antoine não tem escrúpulos em integrar a tese da França Eterna em seus romances para receber a aprovação da Propagandastaffel, o órgão de censura das forças de ocupação em Paris e de cuja sede no Hotel Majestic oficia o mais famoso dos pretores, o coronel Ernst Jünger.
 
Porém, ninguém queria tanto e de forma tão obsessiva o fim da idade doente; se tivesse sobrevivido, não resta dúvidas que teria comparecido com alegria à festa secreta que Borges ofereceu por ocasião da libertação de Paris: “O nazismo sofre de irrealidade, como os infernos de Erígena. É inabitável; os homens só podem morrer por ele. Ninguém, na solidão central de si mesmo, pode desejar que isso triunfe. Arrisco esta conjectura: Hitler quer ser derrotado”. (Anotação feita em 23 de agosto de 1944). Sua morte, talvez precoce, poupou-o da infâmia de ocupar um lugar na Lista Negra ao lado de Montherlant, Céline e Lucien Rebatet. 


* Este texto é a tradução livre para “El vuelo vertical de Saint-Exupéry”, publicado aqui, em Letras Libres.

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