Por Pedro Fernandes
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Osman Lins. Foto: Revista Manchete. |
No desfecho de
O visitante,
a narrativa, pelo ponto de vista da sua protagonista, qualifica o vivido entre
o início e o fim do convívio com Artur e linha principal do romance como
“aventura outonal”. É verdade que a manifestação das estações do ano varia
entre os dois hemisférios da Terra influindo nos significados do imaginário dos
povos. No Brasil, país situado na parte sul do globo, o outono varia
significativamente de um lugar para outro até dentro de um mesmo estado. No
romance, por sua vez, a definição não está submetida ao crivo dessas variações
ou especificidades geográficas; tem a ver com certo sentido universal que
presume os dúplices da estação de dias curtos e noites mais longas, entre o taciturno
e o sombrio; o tempo de uma passagem para a espera escura e chuvosa da
invernia.
Do início ao fim dessa estação,
Celina protagoniza uma queda sem ascensão marcada por uma obsessão amorosa que
se manifesta sorrateiramente desde quando a professora primária recebe na sala
de aula que é extensão da simples casa onde mora um colega interessado nos
serviços para o reforço na educação de seus filhos. Ainda que não se demonstre
tocada pelas constantes confissões de Artur que o perfazem um homem perdido nos
meandros de uma infelicidade e certa amargura existencial, Celina é arrastada para
o cerco ardiloso engendrado por esse professor por quem passa a nutrir ou transferir
uma idealização sacrossanta, no mesmo sentido da experimentada na formação da
vida religiosa que conserva fielmente e para a qual regressa com um intuito desconhecido
da narrativa depois de todo o mal vivido.
Mas essa leitura é apenas a
possibilidade mais superficial proposta pelo romance. Por ela, a personagem é a
vítima das artimanhas de um homem capaz do mais improvável para manter coerente
o mundo por ele forjado que por um desvio do acaso — talvez o mesmo da primeira
aparição de Artur na existência de Celina — a recoloca, mesmo que outra, no
ponto de origem e não sem descobrir antes as possíveis atitudes desse
professor. Por essa leitura, o romance encerra uma história de amor malsucedido
desde o começo uma vez que as qualidades negativas do
sapo-príncipe logo
saltam pelo ponto de vista de Rosa, a amiga íntima de Celina transformada no
ponto essencial das intrigas de Artur para manutenção de sua presa amorosa ou
mesmo a transformação dessa mulher em bode-expiatório, dado o fim trágico e o
uso disso para o ponto-limite de justificação do que para ele é apenas um nobre
interesse.
Essa leitura oferece questões das
mais diversas, sendo algumas: certo retorno à reinvenção cultural do amor como
uma forma de estender os domínios de homens sobre mulheres; o desfazimento de
certa ideia segundo a qual é às mulheres que pertence, naturalmente, a
qualidade de articular desvios no destino favoráveis aos seus próprios
interesses; as consequências negativas das atitudes de domínio do homem e como isso
implica na manutenção de uma ordem de verdade inamovível; uma expressão das
bases de certo provincianismo, extensível à dinâmica da sociedade brasileira,
quando a vida livre é feita refém dos discursos de poder ou das suas
artimanhas. O discurso religioso, por exemplo, é um desses tentáculos de poder
e das fontes promissoras para o estabelecimento da posição superior do homem em
relação à mulher; o leitor recorde que uma das leituras bíblicas de Celina é a
carta de Paulo a Efésios em que o apóstolo se utilizando em certa passagem do
símile mulher sujeita ao marido reforça a posição da Igreja em Cristo, imagem
que permite o missivista tecer considerações acerca das relações em casal.
Essa primeira leitura pode ser
sintetizada com as palavras do próprio Osman Lins, que este livro é “a história
de um indivíduo de aspecto inofensivo, cuja fraqueza contém uma terrível
capacidade de destruição. Despertando a piedade, manejando com habilidade
extrema o logro e a calúnia, exerce a ação de um ácido sobre as vidas dos que
dele se aproximam.”
1 Mas, um romance não é apenas o que conta. É
também
como conta. E para quem conheceu
Avalovara (1973), um
desses livros fundamentais às transformações de sua forma narrativa e logo um
dos pontos mais elevados da nossa pequena literatura, também o mais conhecido do
escritor pernambucano, deixar de observar essa dimensão,
como, é ler a
obra pela metade.
Várias leituras chamaram atenção
para a reiterativa presença mediadora da escrita neste romance, especialmente na
história entre Celina e Artur (cartas e diários) e como o gesto escritural irrompe
os limites da malha narrativa alcançando o plano estrutural do livro.
2
Primeiro, suas divisórias propositalmente intituladas “Primeiro”, “Segundo” e
“Terceiro caderno”, que tanto imprime por
correspondência o conteúdo ao ofício dos protagonistas (professores) como pode
constituir uma deriva dos seus interesses, principalmente, os de Celina. Sem as
pretensões de escritora que tocam Artur (um medíocre fazedor de versos que ela
os passa a limpo fantasiando-se como sua inspiração) ou o voluntário
desinteresse de Rosa para matéria do tipo, Celina mantém o registro dos seus
acontecimentos em diário. Isto é, nossa suposta ideia de despretenciosismo literário
da professora dura pouco; o período outonal da sua história confunde-se com o
curso do diário e o que temos em mãos, o próprio livro, poderia ser de autoria
dessa mulher que possui aguçado senso crítico em relação ao amadorismo poético
de Artur. Quer dizer,
O visitante remonta em estratégia um modo
recorrente na literatura encontrado, no nosso caso, em vários outros dos nossos
primorosos romances, como
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis, para citar um deles. Não está em voga o metatexto, mas a noção de
autoria, quem os escreve. Se Cubas pode ser um duplicado de Machado, Celina é
de Osman e isso não quer dizer, evidentemente, que os dois, personagem-autor, são
extensões, tampouco um só, mas engenhosas fabricações, derivas, processadas na
engenharia do exercício escritural.
Essa possibilidade não é dada
apenas por uma
implicância entre conteúdo e obra. Existe uma pista, um
traço, um salto ou um lapso. E está impressa no próprio desenvolvimento da
exposição narrativa. O desvio é mínimo — tanto que pode ser preciosismo de
leitor ou erro de tipografia. A certa altura, ainda no “Primeiro caderno”, o narrador
acompanha os passos da sua protagonista à saída de uma missa; observador,
descreve o entorno da personagem: “Na larga calçada, engraxates exerciam seu ofício:
rapazes discutiam e, mais além, ao sol, outros conversavam” e assim segue até soltar
um “pessoas debruçadas às janelas contemplavam-
nos”. A pergunta que
logo fazemos é qual o
eu aparece
incluído neste pronome se não a
persona em destaque da narrativa? E o desvio confunde-se com uma passagem importante
no desenvolvimento de Celina, quando os seus sentidos começam a se perder no
atordoamento pela presença de Artur. Pouco mais adiante, a narrativa testemunha
o
sacrifício do corpo da recatada professora nos braços do seu amante.
Se o conteúdo narrativo do romance
pertence a Celina, a história não está reduzida ao sacrifício ou calvário
amoroso imposto pelo poder do macho porque, ao contrário da amiga Rosa, essa
protagonista subverte o destino fatal quando regressa depois da pequena elipse
dos acontecimentos e não cede, recaindo no erro original, às novas investidas
de Artur. Sua existência permanece eternamente ferida pela marca do mal,
mas é apenas dela a atitude de detê-lo, expulsá-lo da sua vida. A partida de Artur
sob seu mando desencadeia no vazio circunvoluções que arrasta sua consciência para
o ponto mais profundo, um hades interior onde se encontra confrontada com a
figura primordial, o pai. O narrador prefere a imagem poética consubstanciando
sua personagem no coração solar. Ora, qual o percurso de Celina se não o de se desfazer
na narrativa imposta pelo seu algoz até se fazer morta no outro, o pai, e brotar
como luz do sol?
O desaparecimento de Artur — signo
de renascimento, libertação e contraditoriamente morte, prisão — abre a
oportunidade de uma terceira leitura, a dos simbolismos de O visitante
cuja matéria é vivamente impregnada dos motivos católicos cristãos, até mesmo
na referida tríade estrutural do romance. Se reparamos bem, desde o
desenvolvimento do encontro adúltero, o narrador redivive o episódio da anunciação;
mas Celina não recebe o anjo da vida e sim o anjo da morte. No desfecho da
narrativa, e isso é singular, ela se convence que este homem fora uma sombra do
Mal — expresso assim em maiúsculas —, entidade que desfez, citamos, “os pobres motivos
de minha vida, minha paz, minha amiga única, minha fé, tudo ele extinguiu”, e
que é permanência fácil de tomar todo aquele em nada autêntico e esses são os
seres marcados do vazio ou da aparência, tal como se reconhece. E como nada
nesse romance é definitivo, a presença do mal é, apocrifamente, também a força
perturbadora e propulsora à vida: a proibida aventura na qual essa recatada professora
se lança contra todos os costumes e as morais vigentes — sem perecer — é
exemplo dessa eficácia. Mantendo a intuição de que o romance é de Celina, a
escrita conduz a protagonista ao gesto original de se refazer pela palavra, suturando
uma condição subversiva, também, contra o domínio fálico. Recordemos sua transmutação
mítico-metafórica de mulher em sol.
Cabe reparar, por fim, aqueles cruzamentos
com o texto bíblico mais explícitos, que são os registrados nas epígrafes de
cada um dos três cadernos, elementos que, sozinhos, uma vez desenvolvidos,
servem para um aprofundamento do que aqui apenas é colocado em modo de vislumbre.
Mesmo situada fora do campo do caderno primeiro, o que pode implicar numa
epígrafe do romance e não da sua primeira parte, lemos a passagem de I Coríntios
(15, 36) com base no aparecimento das epígrafes nas duas divisões seguintes, ou
seja, como sentença de início do primeiro instante do romance. Assim, o “Primeiro
caderno” inscreve as palavras da demonstração de Paulo a Corinto de que a
ressurreição, cerne da fé cristã, é um fato inquestionável: “Insensato! O que
tu semeias não é vivificado, se primeiro não morrer.” Sua advertência é pela
vida autêntica, a que pontuamos no parágrafo acima quando dizíamos das descobertas
de Celina acerca da sua queda ante o mal. Mas o caderno, por sua vez, parece investir
no desdobramento da sentença bíblica em destaque, uma vez testemunhar o deixar-se
levar da professora pela insensatez do visitante.
A epígrafe do “Segundo caderno” é um
versículo do livro das Lamentações: “Os lábios dos que se levantam
contra mim e as suas imaginações contra mim todo dia.” Trata-se do canto
fúnebre de Jerusalém pela sua queda ante o exército da Babilônia; Jerusalém
clama a Javé por justiça. Nessa passagem do romance, a narrativa se detém no
desenvolvimento da personagem Rosa, sua primeira queda depois das investidas falsas
de Artur. Quer dizer, ao sentido simbólico experimentado na primeira epígrafe,
aqui as relações entre o conteúdo da sentença e o conteúdo da narrativa se
deixam notar por transferência o que volta a não se vislumbrar na terceira
parte, em que a tomada de consciência — chamemos assim por falta de melhor
vocabulário — funciona como o reconhecimento da matéria parabolar e abertura
para o futuro, confluindo para o apontado desenlace mítico de Celina.
O “Terceiro caderno” traz uma
passagem de Lucas: “Mas nada há encoberto que não haja de ser descoberto, nem
oculto, que não haja de ser sabido” (12, 2). A advertência de Jesus aos seus discípulos
quanto à hipocrisia dos fariseus e dos doutores da lei antecipa o conteúdo do
deslanche do romance: as descobertas de Celina favorecem à professora uma
procura pela vida autêntica e essa é descolada daquele idealismo que a
princípio enformava seu mundo em bases dogmáticas que a colocava numa posição
suprema. Vejamos como a professora se relaciona com a amiga, sempre como a
versão mais perfeita. Mas, como dissemos, O visitante é desses romances
que não permitem escolhas. O idealismo de Celina, amparado no modelo católico
que é uma simplificação do modelo platônico, permite que sua travessia pelo
escuro constitua uma via dolorosa porque não é do seu feitio o embate
com as instituições (como é para Rosa) mas com sua própria moral e uma possível
inversão do seu idealismo. Em primeiro instante, congelando as variáveis das
personagens, nota-se o deslocamento do drama social padecido por Rosa para o
drama interior vivido pela protagonista de O visitante. E o resultado já
sabemos: a amiga, embora tome um gesto nobre, perece; Celina permanece.
A edificação do sentido parabolar sugerida pela fábula do romance e amparada nos
andaimes do evangelho de Lucas, parece indicar que a vida possível é dada entre
o complexo equilíbrio do ideal e do material: os primeiros perecem por não
reconhecerem a maldade do mundo; os demais por não se descobrirem parte no mistério
da própria existência. O nome da protagonista desse romance de Osman Lins não é
gratuito. Seu campo semântico recupera o celestial, o que está acima, a
morada de Deus, o inacessível. Mas, ante o inalcançável, o ser oscila entre o
alto e o baixo, o céu e a terra, o espírito e a carne, o divino e o humano, o
ideal e o material. A personagem, portanto, é a que melhor designa o equilíbrio
que a permite transpor, subverter, ser outra. Esses deslocamentos, se
analisados detidamente, expandem a leitura para regiões ainda mais complexas,
da mesma maneira que o demonstrativo da primeira obsessão estrutural de Osman
ao calcar o funcionamento do seu objeto literário em plano triádico: os três
cadernos; as três personagens — Celina, Artur, Rosa; a reiteração simbólica do
drama litúrgico da paixão, morte e ressurreição. Ou dos duplos, da escrita, no
já evocado personagem e autor, e ainda em pares como Celina e Artur, Rosa e o
primo, a verdade e a falsidade, o diário de Celina e o caderno de poemas de
Artur, o idealismo e o materialismo, ou mesmo, as derivas dúplices assumidas
por cada uma das personagens garantindo uma mobilidade que serve às suas
complexidades que são, no fim, as nossas.
Contrariando o interregno outonal
de Celina, a trajetória de O visitante, a obra pensada originalmente
como um conto para a coletânea Os gestos (1957), tem sido luminosa e
ascendente desde a sua publicação em 1955.3 Mesmo nos tempos
vigentes, as questões suscitadas, incluindo o terrível provincianismo que
condenam essas personagens, permanecem nossas e atuais; são problemas
igualmente provocadores e inquietantes. O que dissemos — três das leituras
possíveis num primeiro contato com a obra — é uma maneira de se integrar
àqueles que, leitura após leitura, têm atestado a valiosa riqueza desse
romance, para não deixar de incorrer numa dessas obviedades repetidas com essas
ou outras letras.
Notas
1 Entrevista a Mauritônio Meira, Flan,
junho de 1954.
2 Chamo atenção para os textos “O
visitante revisitado”, de Ana Luiza Andrade, “A posse da expressão e o vulgar
da vida”, de Sandra Nitrini; e “O visitante: a palavra escrita, a
palavra lida”, de Renata Rocha Ribeiro.
3 Em 1954, o romance recebeu o
Prêmio Fábio Prado, em São Paulo, o que favoreceu sua publicação no ano
seguinte.
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