Não posso ficar com você: “Vidas passadas”
Por Cristina Aparicio
É fácil se reconhecer em Vidas passadas. Embora a história que conta seja muito específica e na maioria das
vezes adote um único ponto de vista, Celine Song encontra uma forma de
universalizar o aspecto emocional da narrativa. Aqui há espaço para os amores
perdidos, os reencontrados, os da infância, os desejados, os desejados, os
impossíveis, os casuais, os sonhados, os de luto... Todos poderão se reconhecer
como nostálgicos ou cínicos ao presenciar a história (de amor) de Nora e Hae
Sung. Um olhar para a câmera nos primeiros momentos do filme alerta para seu
caráter inconformista: Song mergulha no gênero do romance cinematográfico para
evitar qualquer clichê e propõe uma forma atípica (e realista) de representar o
amor romântico na ficção. Não há cinismo no olhar da cineasta: Vidas
passadas é um exemplo perfeito do valor do cinema como meio de decifrar e
compreender a vida a partir do terreno (não há espaço aqui para o mágico ou o
divino), a partir de algo tão simples e minúsculo como a batida de um coração.
E aqui, que remédio, é preciso falar de Richard Linklater.
Em seus filmes, Linklater tenta a
difícil façanha de capturar o tempo. Ele fez isso com a trilogia que começou
com Antes do amanhecer, 1995; três filmes separados por nove anos cada
(tanto na produção quanto na ficção) e que abriram uma janela para o romance
que Jesse e Celine foram usufruindo ao longo de quase duas décadas. E também
com Boyhood (2014), em que filmou o protagonista infantil ao longo de
doze anos. A tarefa não é fácil, porque da passagem do tempo só resta as suas
consequências, a sua evidência física: tratava-se, portanto, de tornar visível
o invisível. Mais próximo da icônica trilogia do que do filme de 2014, Vidas
passadas partilha essa procura, essa necessidade de discernir a influência
do tempo nas pessoas, nas suas histórias, embora os mecanismos que utiliza para
o fazer sejam diferentes dos do texano. Song utiliza as ferramentas narrativas
clássicas que permitem a viagem no tempo na ficção: elipses, capitulares que
alertam sobre os anos que se passaram ou paralelismos visuais que permitem
comparar diferentes momentos em imagens, trazendo cenas da infância do passado
para o presente dos protagonistas; imagens que dialogam entre si, que se
abraçam e que tornam visíveis identidades esquecidas. E assim dispensa qualquer
artifício, optando por uma atuação honesta que tende a romantizar o seu aspecto
visual embora sem nunca renunciar ao realismo em que se inscreve a proposta.
Porque na sua própria natureza existe um lirismo inalienável, uma poética que
se apoia na beleza dos espaços onde a história se passa.
Assim, os planos detalhados
infiltram-se na narrativa como inserções desconexas, mostrando recantos
indeterminados dos locais onde os acontecimentos se desenvolvem. Quase como se
a câmera mostrasse aqueles pontos mortos para onde se dirige um olhar perdido,
um ver sem ver que permite concentrar-se no pensamento, oxigenando a história,
dando-lhe o seu tempo, o seu espaço, abrandando o ritmo ou talvez acompanhando-o.
Mas há também um esforço consciente para enquadrar e compor as imagens como se
as memórias estivessem encapsuladas nelas. Talvez por isso, às vezes, os
personagens sejam emoldurados em janelas, portas ou vidros, como se estivessem
colocados dentro de uma moldura ou de um cartão postal; como se cada mudança de
plano equivalesse a virar as páginas de um álbum de fotos ou mudar de slide. E
nesse gesto de conter a vida em fragmentos, de enquadrar o que é importante
dentro do plano, o espaço cinematográfico é o destinatário de tudo o que a
geografia recolhe, o destinatário de um amor que não é regido pelas leis
físicas do contínuo espaço-tempo.
São muitos os mitos construídos em
torno do amor romântico e que o cinema, claro, contribuiu para perpetuar. Falar
de predestinado é aludir a uma dessas falsas crenças que impõe que exista uma
única pessoa para cada ser humano. Ou, o que dá no mesmo, o mito da
cara-metade. O cinema romântico soube explorar e criar uma estrutura narrativa
comum baseada nesta ideia: o final feliz foi um resultado obrigatório que
surgiu desta ideia segundo a qual o amor tem que triunfar porque é assim que
está escrito, e a única alternativa é a tragédia. Vidas passadas parece
destinado a se tornar isso que agora tem se chamado de clássico moderno (mas o
tempo dirá). A seu favor tem o que fez da trilogia de Linklater uma proposta
cativante: não desistir do amor, apenas de seus adereços idealizados, tóxicos e
impossíveis. E as ligações entre o ponto de vista de ambos os cineastas não
terminam aqui: as conversas inesgotáveis durante
os passeios à deriva como forma de redescobrir a
cidade e o outro, ou o que dá no mesmo, o
passeio linklateriano como forma de apaixonar-se; a transformação das relações como consequência do amadurecimento de seus integrantes... Song transita
entre dois tempos: o presente real e o passado lembrado. É a sua forma de
contrastar as etapas e fases vitais que o amor vivencia como um sentimento
compartilhado. Talvez por isso a tela esteja repleta de espelhos e janelas que
devolvem o reflexo, que às vezes até mostram o mesmo rosto repetido e
multiplicado no mesmo plano; também silhuetas negras, sombras criadas a partir
de contraluzes fortes... Como se dentro desta história tudo pudesse sofrer
mutação, transformar-se. O amor pode sobreviver a tantas mudanças?
Para responder a esta pergunta,
Song recorre ao conceito coreano de “in-yeon”: quando duas pessoas interagem de
alguma forma é porque existe uma conexão entre elas, elas estão eternamente
ligadas em vidas passadas, presentes e futuras. O in-yeon é o destino, é
o consolo para todas aquelas condicionais não consumadas, para as oportunidades
perdidas ou para os erros cometidos. É, portanto, a única forma de o amor
sobreviver ao passar dos anos, às mudanças de identidade, aos terceiros, aos
outros amores... É colocá-lo numa dimensão alternativa onde tudo é possível. Um
espaço, talvez cinematográfico, onde o amor é sempre possível.
* Este texto é a
tradução livre de “No consigo estar contigo: ‘Vidas pasadas’”, publicado aqui,
em Jot Down.
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